Acórdão nº 1102/09.3TVLSB.L1-2 de Tribunal da Relação de Lisboa, 18-11-2021

Data de Julgamento18 Novembro 2021
Número Acordão1102/09.3TVLSB.L1-2
Ano2021
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:

I – RELATÓRIO
1 – MARIA……………., com residência profissional na ……………., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra:
- P……….., com sede na ………. ;
- O………. ;
- M……… ;
- J…………,
todos com residência profissional na mesma morada, deduzindo petitório no sentido da sua condenação:
a) no pagamento de indemnização por danos morais em montante não inferior a 35.000,00 €. ;
b) à não publicação do livro identificado como doc. nº 2. ;
c) a não publicarem quaisquer factos sobre a vida privada da Autora.
Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:
- a Ré P……. é a proprietária do jornal ……..;
- sendo o Réu O……. o director daquele jornal ;
- os Réus M……., este exercendo a função de chefe de redacção do mesmo jornal, e J……. são os autores do livro em cuja capa se lê: A VIDA DE ……………. “…….”; Edição ……. ;
- além dos Réus saberem directamente da oposição da Autora à publicação do livro, apenas a contactaram com este já impresso, apresentando-o àquela como um facto consumado ;
- tendo apenas indagado junto da Autora acerca da sua opinião no que respeita à instituição escolhida para receber parte dos rendimentos ;
- tais Réus elaboraram e escreveram o livro, usando foto da Autora na capa e frase supostamente dita por esta, na primeira pessoa, o que induziria o público a pensar que o livro era o relato na primeira pessoa sobre a doença ;
- e, sem que tenha dado aos Réus qualquer entrevista exclusiva, sobre os factos relatados, estes enunciam factos que, de forma abusiva, não correspondem à verdade ;
- o que acontece, desde logo, com o próprio título do Livro ;
- entre 07 a 16 de Abril de 2009, os dias foram horríveis para a Autora que viveu na expectativa do livro poder ser publicado, sendo que o seu estado de ansiedade não foi saudável para a sua gravidez, facto que era do conhecimento dos Réus ;
- tendo estes tido intenção de causar dano à Autora, publicando notícias falsas, mesmo depois de terem sido desmentidas ;
- tendo, assim, a Autora sido lesada na sua tranquilidade, bem-estar físico e psíquico e intimidade ;
- causando-lhe danos e ainda se sentindo presentemente revoltada com a ameaça da publicação do livro ;
- causando-lhe lesão grave e dificilmente reparável dos seus direitos a publicação de tal livro, divulgando factos sobre a sua vida privada, sem a sua autorização prévia, sendo, ainda, muitos deles falsos ;
- sendo os Réus solidariamente responsáveis pela prática de tais factos, nos termos dos artigos 500º, nº. 1, do Cód. Civil e 29º, nº. 2, da Lei nº. 02/99, de 13/01 ;
- entretanto, em procedimento cautelar que instaurou, foi decidida a não publicação do livro, assim como sobre factos privados da vida da Autora, sem o seu consentimento prévio ;
- determinando que no dia 16/04/2009, na 1ª página daquele jornal , ao informarem que a ora Autora travou a publicação do Livro, considerando-o exemplar e que apoia a associação humanitária de doentes com cancro, tenham os Réus dado a entender que a Autora boicota um suposto rendimento a favor daquela associação humanitária ;
- afirmando que os factos constantes do Livro não invadem a privacidade da Autora, o que não corresponde à verdade, levando, inclusive, a o público a pensar que a Autora vetou tal publicação por mero capricho ;
- sempre procurou evitar quaisquer especulações sobre a sua doença, sem qualquer carácter didáctico, sendo que o Livro, contrariamente ao que os Réus pretendem fazer crer, não tem qualquer objectivo didáctico.
2 – Citados os Réus, vieram deduzir contestação, alegando, em súmula, o seguinte:
- o deduzido pedido de não publicação de “quaisquer factos sobre a vida privada da Autora” não é legalmente admissível , por traduzir um “pedido genérico” ;
- decorrendo, igualmente, tal ilegalidade, do facto do mesmo pedido constituir uma violação da liberdade de expressão e informação, bem como da liberdade de criação cultural e do princípio da livre concorrência ;
- por excepção, o Réu O……., enquanto director do jornal, é parte ilegítima, pois não escolhe os produtos a vender conjuntamente com o jornal, desconhece o conteúdo dos artigos comercializados e não tem obrigação de o conhecer ;
- não teve qualquer conhecimento prévio do teor do Livro objecto dos presentes autos, não teve qualquer influência na sua elaboração nem foi elaborado a seu pedido ;
- prevendo a Lei da Imprensa que o director superintenda e determine o “conteúdo da publicação”, mas não dos produtos acessórios a esta ;
- é igualmente ilegítima a Ré editora P…….., não alegando a Autora um único facto constitutivo da sua responsabilidade ;
- Limitando-se a alegar a sua qualidade de editora do Livro e, como tal, deve ser responsabilizada pelo seu conteúdo ;
- Ademais, a mesma Ré desconhece a natureza dos factos descritos no Livro, nomeadamente se constituem factos da vida pessoal, íntima ou pública da Autora, pois limitou-se a publicá-lo ;
- Sendo que nos termos do nº. 2, do artº. 14º, do Código dos Direitos de Autor, apenas os autores dos livros podem responder civilmente pelo seu conteúdo ;
- Não prevendo a lei uma qualquer responsabilidade automática ou objectiva das editoras ;
- Por impugnação, referenciam a forma como a Autora divulgou, em vários meios de comunicação, a doença de que padeceu ;
- Pelo que, a partir do momento em que fala publicamente de um facto do foro privado, este deixa de ter tal natureza, sujeitando-se a que sejam escritos textos sobre as circunstâncias em que tais factos ocorreram ;
- A Autora relatou o diagnóstico, os casos da família com a mesma doença e a sua luta, falando abertamente da sua doença e autorizando várias reportagens em revistas cujo tema de capa era a sua doença ;
- Marcou conferências de impressa, o procedimento médico a que foi sujeita, a forma como a doença afectou o convívio com os filhos e revelou os pormenores íntimos da doença, bem como dos episódios ocorridos no seio familiar privado ;
- Tendo sido a Autora quem decidiu tornar público todos os pormenores da sua doença, para que servisse de exemplo “para outros anónimos falarem” ;
- Todos os factos constantes do livro objecto dos presentes autos foram retirados das entrevistas que a Autora concedeu aos meios de comunicação social ;
- Sendo que alguns factos resultam de informação expressamente divulgada pela Autora, enquanto que outros resultam da interpretação que os autores fizeram sobre as circunstâncias em que os factos relatados pela Autora ocorreram ;
- O que a Autora põe em causa é o rigor em que os detalhes são descritos, mas não o facto central que consta em cada uma das passagens que transcreve ;
- Todavia, a causa de pedir da Autora não é a falta de rigor ou detalhe, da informação, nem mesmo a veracidade, mas antes a violação do seu direito à reserva da vida privada, e o facto de no livro constarem factos que não foram revelados directamente pela Autora aos Réus ;
- Ora, tendo sido os factos concretos relatados expressamente divulgados pela Autora, que os trouxe a público, não tem esta de autorizar que os mesmos sejam publicados numa compilação ou obra biográfica ;
- Desta forma, a leitura do livro não pode ter provocado qualquer dos danos alegados pela Autora ;
- E, mesmo os alegados não possuem a intensidade ou gravidade susceptível de merecer a tutela do direito ;
- Inexiste, assim, qualquer culpa ou ilicitude na conduta dos Réus e, mesmo que estes tivessem violado um qualquer direito da Autora, a aparente ilicitude estaria afastada, pois aqueles actuaram no exercício legítimo de um direito, que é o Direito à Liberdade de Expressão e Criação Cultural, constitucionalmente previstos.
Concluem, nos seguintes termos:
- pela procedência da excepção de ilegitimidade do Réu O……., devendo ser absolvido da instância ;
- pela procedência da excepção de ilegitimidade da Ré P……., devendo ser absolvida da instância ;
- pela improcedência da acção, com a consequente absolvição dos Réus dos pedidos ;
- pela procedência do pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé, no pagamento de multa e indemnização adequada a reembolsar os Réus, das despesas e honorários dos seus mandatários, a determinar nos termos do nº. 2, do artº. 457º, do Cód. de Processo Civil.
3 – Devidamente notificada, a Autora apresentou réplica, na qual respondeu à matéria de excepção invocada pelos Réus, no sentido do não acolhimento das excepções de ilegitimidade invocadas, bem como na improcedência do pedido da sua condenação como litigante de má fé – cf., fls. 396 a 399.
4 – Os Réus apresentaram tréplica – cf., fls. 407 a 411 -, na qual aduziram, em resumo, o seguinte:
- na petição inicial, a Autora fundamenta a responsabilidade da Ré P……., no facto desta ser proprietária do jornal “…….” e editora do livro objecto dos presentes autos ;
- Todavia, na réplica a Autora invocou a norma com base na qual, no seu entender, resulta a responsabilidade do Director do Jornal e da Ré P……. – o nº. 2, do artº. 29º, da Lei da Imprensa ;
- O que configura alteração da causa de pedir, no que concerne á responsabilidade da Ré P……. ;
- Não foram alegados quaisquer factos constitutivos da responsabilidade da Ré P……., nomeadamente os factos constitutivos do direito da Autora exposto9s naquele normativo, nomeadamente que o director teve conhecimento do teor do Livro antes da sua publicação e que, mesmo assim, não se opôs a que o mesmo fosse publicado ;
- Ademais, aquele normativo não é aplicável, pois o Livro não constitui um “escrito ou imagem inseridos numa publicação periódica”.
Concluem, no sentido da improcedência do pedido, com a sua consequente absolvição.
5 – Designada data para a realização da audiência preliminar, veio esta a realizar-se conforme acta de fls. 421 a 442, no âmbito da qual:
- Relativamente à invocada ilegitimidade dos Réus O……. e P……., considerou-se estar
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