Acórdão nº 1102/09.3TVLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 26-10-2022

Data de Julgamento26 Outubro 2022
Case OutcomeCONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Classe processualREVISTA
Número Acordão1102/09.3TVLSB.L1.S1
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça



Processo n. 1102/09.3TVLSB.L1.S1

Recorrente: AA

Recorridos:

- PRESSELIVRE – Imprensa Livre, S.A.

- BB,

- CC

- DD

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA, residente em ..., propôs ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra:

“PRESSELIVRE – Imprensa Livre, S.A.”, com sede em ...; BB, CC, e DD, todos com domicílio profissional em ....

2. A autora pediu a condenação dos réus:

a) no pagamento de indemnização por danos morais em montante não inferior a 35.000,00 Euros;

b) à não publicação do livro identificado como doc. nº 2;

c) a não publicarem quaisquer factos sobre a vida privada da Autora.

Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:

A Ré PRESSELIVRE é a proprietária do jornal “C...”, sendo o Réu BB o diretor desse jornal.

Os Réus CC (exercendo a função de chefe de redação do mesmo jornal) e DD são os autores do livro em cuja capa consta o seguinte título: «... AA “VENCI O CANCRO”», Edição C....

Apesar de os Réus saberem da oposição da Autora à publicação do livro, apenas a contactaram quando este já estava impresso, apresentando-lho como um facto consumado, tendo apenas indagado junto da Autora acerca da sua opinião no que respeita à instituição escolhida para receber parte dos rendimentos.

Os Réus elaboraram e escreveram o livro, usando uma foto da Autora na capa e frase supostamente dita por esta, na primeira pessoa, o que induziria o público a pensar que o livro era o relato na primeira pessoa sobre a sua doença.

Sem que a autora tenha dado aos Réus qualquer entrevista exclusiva sobre os factos relatados, estes enunciam factos que, de forma abusiva, não correspondem à verdade. O que acontece, desde logo, com o próprio título do Livro.

Entre 07 a ... de ... de 2009, os dias foram horríveis para a Autora, que viveu na expectativa de o livro poder ser publicado, sendo que o seu estado de ansiedade não foi saudável para a sua gravidez, facto que era do conhecimento dos Réus; tendo estes tido intenção de causar dano à Autora, publicando notícias falsas, mesmo depois de terem sido desmentidas. Tendo, assim, a Autora sido lesada na sua tranquilidade, bem-estar físico e psíquico e intimidade; causando-lhe danos e ainda se sentindo presentemente revoltada com a ameaça da publicação do livro. Causando-lhe lesão grave e dificilmente reparável dos seus direitos a publicação de tal livro, divulgando factos sobre a sua vida privada, sem a sua autorização prévia, sendo, ainda, muitos deles falsos.

Sendo os Réus solidariamente responsáveis pela prática de tais factos, nos termos dos artigos 500º, nº 1, do Cód. Civil e 29º, nº. 2, da Lei nº. 02/99, de 13/01.

Entretanto, em procedimento cautelar que instaurou, foi decidida a não publicação do livro, assim como sobre factos privados da vida da Autora, sem o seu consentimento prévio;

A autora sempre procurou evitar especulações sobre a sua doença, sem qualquer carácter didático, sendo que o Livro, contrariamente ao que os Réus pretendem fazer crer, não tem qualquer objetivo didático.

3. Os réus contestaram a ação, alegando, em síntese, o seguinte:

O deduzido pedido de não publicação de “quaisquer factos sobre a vida privada da Autora” não é legalmente admissível, por traduzir um “pedido genérico”; decorrendo, igualmente, tal ilegalidade, do facto de o mesmo pedido constituir uma violação da liberdade de expressão e informação, bem como da liberdade de criação cultural e do princípio da livre concorrência.

Por exceção, o réu BB, enquanto diretor do jornal, é parte ilegítima, pois não escolhe os produtos a vender conjuntamente com o jornal, desconhece o conteúdo dos artigos comercializados e não tem obrigação de o conhecer; não teve qualquer conhecimento prévio do teor do Livro objeto dos presentes autos, não teve qualquer influência na sua elaboração nem foi elaborado a seu pedido; prevendo a Lei da Imprensa que o diretor superintenda e determine o “conteúdo da publicação”, mas não dos produtos acessórios a esta.

É igualmente ilegítima a Ré editora Presselivre, S.A., não alegando a Autora um único facto constitutivo da sua responsabilidade; limitando-se a alegar a sua qualidade de editora do Livro e, como tal, deve ser responsabilizada pelo seu conteúdo. Ademais, a mesma Ré desconhece a natureza dos factos descritos no Livro, nomeadamente se constituem factos da vida pessoal, íntima ou pública da Autora, pois limitou-se a publicá-lo. Sendo que nos termos do nº. 2, do artº. 14º, do Código dos Direitos de Autor, apenas os autores dos livros podem responder civilmente pelo seu conteúdo. Não prevendo a lei uma qualquer responsabilidade automática ou objetiva das editoras.

Por impugnação, referenciam a forma como a Autora divulgou, em vários meios de comunicação, a doença de que padeceu, pelo que, a partir do momento em que fala publicamente de um facto do foro privado, este deixa de ter tal natureza, sujeitando-se a que sejam escritos textos sobre as circunstâncias em que tais factos ocorreram.

A Autora relatou o diagnóstico, os casos da família com a mesma doença e a sua luta, falando abertamente da sua doença e autorizando várias reportagens em revistas cujo tema de capa era a sua doença. Marcou conferências de impressa, revelou o procedimento médico a que foi sujeita, a forma como a doença afetou o convívio com os filhos e revelou os pormenores íntimos da doença, bem como dos episódios ocorridos no seio familiar privado. Tendo sido a Autora quem decidiu tornar público todos os pormenores da sua doença, para que servisse de exemplo “para outros anónimos falarem”.

Todos os factos constantes do livro objeto dos presentes autos foram retirados das entrevistas que a Autora concedeu aos meios de comunicação social, sendo que alguns factos resultam de informação expressamente divulgada pela Autora, enquanto que outros resultam da interpretação que os autores fizeram sobre as circunstâncias em que os factos relatados pela Autora ocorreram.

O que a Autora põe em causa é o rigor em que os detalhes são descritos, mas não o facto central que consta em cada uma das passagens que transcreve. Todavia, a causa de pedir da Autora não é a falta de rigor ou detalhe, da informação, nem mesmo a veracidade, mas antes a violação do seu direito à reserva da vida privada, e o facto de no livro constarem factos que não foram revelados diretamente pela Autora aos Réus.

Ora, tendo sido os factos concretos relatados expressamente divulgados pela Autora, que os trouxe a público, não tem esta de autorizar que os mesmos sejam publicados numa compilação ou obra biográfica.

Desta forma, a leitura do livro não pode ter provocado qualquer dos danos alegados pela Autora. E, mesmo os alegados não possuem a intensidade ou gravidade suscetível de merecer a tutela do direito.

Inexiste, assim, qualquer culpa ou ilicitude na conduta dos Réus e, mesmo que estes tivessem violado um qualquer direito da Autora, a aparente ilicitude estaria afastada, pois aqueles atuaram no exercício legítimo de um direito, que é o Direito à Liberdade de Expressão e Criação Cultural, constitucionalmente previstos.

4. Houve réplica e tréplica, seguindo-se audiência preliminar e audiência de julgamento, vindo a sentença a decidir nos seguintes termos:

«Face ao exposto, julgando a acção parcialmente procedente, decide-se:

a) condenar os réus PRESSELIVRE - Imprensa Livre, S.A., BB, CC e DD, solidariamente, a pagar à autora AA a quantia de vinte e cinco mil euros, a título de danos não patrimoniais;

b) condenar ainda os réus PRESSELIVRE - Imprensa Livre, S.A., BB, CC e DD a não proceder à publicação e distribuição do livro que constitui o documento n.º 2 junto aos autos de procedimento cautelar em apenso [e oferecido com o respectivo requerimento inicial];

c) sem prejuízo do decidido em b), absolver os réus do pedido na parte restante, nomeadamente de condenação “(…) a não publicarem quaisquer factos sobre a vida privada da Autora.”

d) absolver a autora do pedido indemnizatório fundado na invocada litigância de má fé;

e) condenar a autora e os réus no pagamento das custas, na proporção de 10% para a primeira e de 90% para os segundos.»

5. Inconformados, os réus interpuseram recurso de apelação. Fizeram-no com sucesso, pois o acórdão do TRL veio a ser-lhes favorável, ao decidir como se transcreve:

«Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes/Recorrentes/Réus PRESSELIVRE - Imprensa Livre, S.A., BB, CC e DD, em que figura como Autora/Recorrida/Apelada AA e, consequentemente, decide-se:

I) revogar parcialmente a sentença recorrida/apelada, nos segmentos integrantes do objecto recursório, a qual se substitui por outra que, relativamente às alíneas a) e b) do dispositivo daquela, passe a ter a seguinte redacção:

“a) absolver os Réus PRESSELIVRE - Imprensa Livre, S.A., BB, CC e DD, do pagamento à Autora de indemnização/compensação a título der danos não patrimoniais;

b) condenar os mesmos réus PRESSELIVRE - Imprensa Livre, S.A., BB, CC e DD a não proceder à publicação e distribuição do livro que constitui o documento n.º 2 junto aos autos de procedimento cautelar em apenso [e oferecido com o respectivo requerimento inicial], salvo se fizerem constar do mesmo um diferenciado título, bem como, de forma expressa e visível, tratar-se de uma biografia ou trabalho não autorizado pela Autora”.»

6. Inconformada com o acórdão do TRL, que revogou a decisão da primeira instância, a autora interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso é interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou procedente a apelação dos Réus, ora Recorridos, alterando a sentença recorrida.

2. O Tribunal de Primeira Instância condenou, em março de 2013, os Réus, ora Recorridos, solidariamente, a pagar à Autora, ora Recorrente, a quantia de vinte e cinco mil euros, a...

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