Acórdão nº 1079/22.0T8GRD.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 08-05-2024
Data de Julgamento | 08 Maio 2024 |
Número Acordão | 1079/22.0T8GRD.C1 |
Ano | 2024 |
Órgão | Tribunal da Relação de Coimbra - (GUARDA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA – J1)) |
Adjuntos: Maria Alexandra Guiné
Isabel Valongo
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório
1. Nos autos de contra-ordenação com o n.º ...... do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Criminal da Guarda – Juiz ..., “A..., Lda.”, identificada nos autos, impugnou judicialmente a decisão administrativa da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), que lhe aplicou, pela prática de uma contra-ordenação ambiental qualificada de muito grave, p. e p. pelos arts. 49.º, n.º 1, al. b), e 184.º, n.ºs 2, al. r), e 5, ambos do DL n.º 108/2018, de 03-12, e pelo art. 22.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29-08, a coima de 24 000,00€ (vinte e quatro mil euros).
2. Por despacho proferido nos termos do art 64.º, n.º 2, do RGCOC[1], foi julgada improcedente a impugnação judicial e mantida a decisão administrativa proferida.
3. Inconformada com essa decisão, interpôs a arguida o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«8.1)- Para a efetivação do direito de audição, o arguido tem de ter conhecimento da descrição dos factos imputados, o que implica a “descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante e essa descrição deve contemplar a caraterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate”;
8.2)- No caso, a descrição constante do “auto de notícia” não contém os elementos subjetivos da infração imputada;
8.3)- Por isso que, mesmo em matéria contra-ordenacional, da narração acusatória devem constar os factos relativos à culpabilidade, onde se reconheça o conhecimento (representação) e a vontade de realização do facto material típico - do tipo objectivo (elementos objectivos, naturalísticos ou normativos) de uma infracção;
8.4)- Acontece que o auto de notícia nada refere quanto a factos suscetíveis de preencher este elemento;
8.5)- E o mesmo se diga relativamente à decisão administrativa, que, nos factos provados que descreve limita-se ao tratamento genérico e conclusivo da negligência;
8.6)- E, depois da decisão administrativa, o Tribunal de 1ª instância, na Sentença proferida e no que tange ao elemento subjetivo, também se limita a considerações de carácter genérico e conclusivo, tipicamente doutrinárias, sem qualquer suporte factual;
8.7)- A Sentença revidenda omite a factualidade respeitante ao elemento subjetivo da contraordenação, o que viola o disposto nos arts. 374º e 97º, n.º 5, Cód. Proc. Penal, aqui aplicáveis “ex vi” dos arts. 2º, Lei n.º 50/2006, de 29/08, e 41º, n.º 1, DL n.º 433/82, de 27/10;
8.8)- Vício este que, aliás, nunca poderia suprir, remetendo neste particular para o Acórdão Uniformizador proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27/01/2015 e integralmente aplicável ao caso;
8.9)- Assim, nunca a ausência de factos integradores do elemento subjetivo da contraordenação, quer no auto de notícia, quer na decisão administrativa, quer ainda na Sentença de 1ª instância, poderá ser suprida;
8.10)- E daqui decorrerá, desde logo e necessariamente, a absolvição da arguida da prática da contraordenação que lhe foi imputada;
8.11)- Na sentença sob recurso em lado algum se encontra identificado quem foi o autor da conduta/omissão contraordenacional em causa nos autos;
8.12)- Tal identificação e imputação factual mostram-se imprescindíveis à imputação (orgânica) da ação ou omissão à pessoa coletiva, por se não revelar minimamente indiciado o preenchimento do pressuposto exigido pela 2ª parte do n.º 2 do art. 7º do RGCO, transcrito (praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções);
8.13)- No caso dos autos, percorrida a matéria de facto provada verifica-se que em lado algum é identificado(s) o(s) responsável(eis) que deveria atuar no âmbito da conduta pretensamente imputada à recorrente como constituindo uma contra ordenação;
8.14)- Ou seja, nada consta dos factos provados que nos permita ajuizar se podemos imputar a uma pessoa que integre os órgãos da pessoa coletiva a conduta ilícita aqui em causa, bem como que a pessoa que representa a arguida terá atuado no exercício das suas funções;
8.15)- Não sendo a matéria de facto suficiente para sustentar a imputação à arguida/recorrente da conduta ilícita geradora de responsabilidade contraordenacional impõe-se concluir pela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conforme previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal;
8.16)- Acontece que a insuficiência detetada não é já suprível, o que eventualmente determinaria o reenvio dos autos para novo julgamento (arts. 426º, n.º 1, e 426º-A) a fim de determinar a pessoa que representa a arguida e a pessoa que concretamente agiu e/ou praticou os factos, bem como se o fez no exercício das suas funções ou de ordens transmitidas pelo representante da arguida;
8.17)- Acontece, no entanto, que o reenvio resultaria na violação do princípio da vinculação temática do tribunal, pois não pode a 1ª instância indagar factos que não constem da decisão administrativa impugnada, que vale como acusação mediante a sua apresentação em juízo pelo Ministério Público na sequência de impugnação deduzida (art. 62º, n.º 1, do RGCO);
8.18)- Os factos em falta extravasam, por outro lado, os conceitos de alteração não substancial e de alteração substancial dos factos, não cabendo no caso recurso aos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal;
8.19)- Assim, outra solução não resta senão a absolvição da arguida;
8.20)- Só podia a aqui impugnante ser sancionada pelo não envio à Agência Portuguesa do Ambiente, até 31 de janeiro de 2020, de cópia do inventário da fonte radioativa selada que detinha, acompanhado da cópia da apólice do seguro de responsabilidade civil e fotografias da fonte, do seu contentor, da embalagem de transporte, dispositivo ou equipamento, caso tivesse sido dado como provado que, durante o ano de 2019, a recorrente era detentora de uma fonte radioativa selada -o que manifestamente não foi dado como provado…, e também não se pode presumir…;
8.21)- A Sentença revidenda violou, entre outras (salvo o devido respeito e melhor opinião), as normas dos arts. 2º, Lei n.º 50/2006, de 29/08; 58º, DL n.º 433/82, de 27/10; 97º, n.º 5, 283º, n.º 3, alínea b), 374º e 379º, Cód. Proc. Penal; e 32º, n.º 10 e 205º, CRP.
Termos em que, e nos melhores de direito cujo suprimento antecipadamente se pede, deve a Sentença revidenda ser substituída por outra decisão que contemple tudo quanto vem de alegar-se, assim se fazendo Justiça.»
4. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, na qual conclui (transcrição):
«1. Recorre a arguida da douta sentença proferida nos autos, a qual julgou improcedente a impugnação judicial por aquela apresentada e decidiu manter a decisão administrativa proferida pela autoridade administrativa.
2. O recurso a que se responde não merece, salvo o devido respeito, provimento, devendo manter-se, na íntegra, a douta sentença recorrida, cujos fundamentos não são abalados pela motivação e conclusões de recurso apresentados pela arguida.
3. O Auto de Notícia contém a descrição completa dos factos imputados à recorrente, assim como da decisão administrativa e da sentença constam todos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito contra-ordenacional em causa.
4. Para que a fundamentação de uma decisão administrativa cumpra o disposto no art. 58.º do RGCO, é necessário tão-somente que da sua leitura sejam perceptíveis, para um cidadão de são e normal entendimento, as razões pelas quais o arguido foi sancionado com uma coima, de modo a possibilitar a sua defesa e impugnação, não sendo necessário que detenham o mesmo grau de rigor de uma sentença penal, na medida em que, no processo de contra-ordenação, não existe a possibilidade de aplicação de sanções privativas da liberdade, não existindo, portanto, o mesmo grau de lesão de bens jurídicos fundamentais do cidadão que se verifica no processo penal.
5. Ao contrário do sustentado pela Recorrente, na sentença sob recurso está claramente identificado o autor do ilícito contra-ordenacional, sendo este claramente imputado à arguida, ora Recorrente.
6. Nestes termos, bem andou a douta sentença recorrida ao julgar improcedente a impugnação judicial do arguido, mantendo a decisão proferida pela autoridade administrativa, nos seus precisos termos.
Nestes termos e nos mais de Direito, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, não merece quaisquer reparos a douta sentença recorrida, pelo que deverá a mesma manter-se na íntegra, com as legais consequências,
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!»
5. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11118536).
6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
7. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Em processo contra-ordenacional, o Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCOC), sem prejuízo do aludido conhecimento oficioso relativamente aos vícios previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.
In casu, a recorrente considera, em primeiro lugar, que a decisão recorrida omite a factualidade respeitante ao elemento subjectivo da infracção, em violação do disposto nos arts. 374.º e 97.º, n.º 5, do CPP,...
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