Acórdão nº 10328/2006-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 24-04-2007

Data de Julgamento24 Abril 2007
Número Acordão10328/2006-1
Ano2007
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, na Secção Cível da Relação de Lisboa:

Nas Varas Cíveis de Lisboa, V e A intentaram contra J e R acção declarativa de condenação, com processo comum na forma ordinária, peticionando que os RR. fossem solidariamente condenados a pagar-lhes uma indemnização: a) a título de danos morais sofridos por Rute pelo dano morte de € 240 000 e pelo período que antecedeu a morte de € 60 000; b) pelos danos morais sofridos pelos AA. de € 150 000 para cada um; e c) pelos danos patrimoniais causados à Rute pela perda do direito de adquirir de € 150 000.
Para tanto, alegaram, resumidamente:
- que a sua filha Rute se decidiu submeter a uma lipoaspiração;
- que, na sequência de fármacos ministrados pelos RR. para actuação da anestesia local, a Rute sofreu problemas cardíacos, na sequência dos quais veio a falecer;
- que os RR. não dispunham no local dos meios adequados à reanimação;
- que os RR. tardaram em chamar o INEM;
- que o R. J se arroga a qualidade de cirurgião plástico, não o sendo;
- que os actos em causa tiveram lugar num consultório e não numa clínica, como indevidamente o local era designado;
- que a morte sobreveio em consequência destes factores;
- que a Rute sofreu antes de morrer;
- que os próprios sofreram com a perda da filha.

Os RR. contestaram separadamente, impugnando o alegado pelos AA., no tocante à respectiva responsabilidade, considerando, em síntese, poder o R. J praticar os actos para os quais se sentisse habilitado, estar o local devidamente equipado para a intervenção em causa, terem sido observados todos os deveres de cuidado e ter a Rute Francisco falecido em consequência de um choque anafilático.

Requereram ambos a intervenção principal provocada da seguradora “C.ª de Seguros, S.A.”, com fundamento na circunstância de terem transferido para a esta a responsabilidade emergente da prática de actos da sua profissão, o que foi admitido, tendo a interveniente impugnado o aduzido pelos AA. no tocante à responsabilidade dos RR..

O processo foi saneado, fixaram-se os factos assentes por acordo das partes e por documentos dotados de força probatória plena e organizou-se a base instrutória, após o que se seguiu a instrução dos autos.

Foi interposto recurso do despacho que indeferiu o depoimento de parte do R. R à matéria indicada pelo co-réu J, que foi admitido como de agravo, a subir com o primeiro que depois dele houvesse de subir imediatamente, com efeito devolutivo.

Discutida a causa em audiência de julgamento (com gravação da prova testemunhal produzida) e decidida a matéria de facto controvertida, veio a ser proferida (em 5/6/2006) sentença final que, julgando a acção totalmente improcedente, por não provada, absolveu os RR. e a interveniente do pedido.

Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação da referida sentença, tendo extraído das alegações que apresentaram as seguintes conclusões:
I - O douto Tribunal de lª instância julgou improcedente a acção declarativa sob a forma de processo ordinário intentada pelos Apelantes contra os Apelados com o fundamento de que "... tendo presente os princípios expostos e face à matéria fáctica que foi possível apurar em julgamento, não se pode considerar que a morte de Rute tenha origem em comportamento activo ou omissivo dos R.R";
II - O presente recurso versa sobre matéria de direito, por erro do douto Tribunal de lª instância, na interpretação e aplicação face à matéria de facto dada como provada, das normas jurídicas (artigo 69°, n.° 2, alinea a) do Código de Processo Civil);
III - O douto Tribunal de lª instância deu como provados, entre outros, os seguintes factos:
- Em 9 de Dezembro de 1999, a Rute foi para a sala de operações e sujeita a anestesia local;
- O Hospital de São José emitiu o relatório de fls. 120 e 121 a propósito do internamento da Rute Francisco;
Os serviços de anatomia patológica do Hospital de São José emitiram o relatório aná-tomo patológico de fls. 122 a 125;
IV - A primeira questão que se coloca é apurar-se se estávamos perante uma cirurgia de resultados ou uma cirurgia de meios. A este respeito, o Prof. Esperança Pina, in "Responsabilidade dos Médicos", Editora Lidel é da opinião, sem margem para dúvidas, que neste tipo de intervenção cirúrgica estamos perante uma cirurgia de resultados.
O prof. Esperança Pina, uma das pessoas mais respeitadas nesta matéria, na página 100 da referida publicação diz: "A obrigação de um cirurgião plástico não difere da do cirurgião geral, mas já deve ser feita uma distinção entre cirurgia ética e cirurgia reparadora, parecendo, neste caso, deve haver uma obrigação de meios e, no primeiro caso, uma obrigação de resultados";
V - Com efeito, um paciente que tem de se submeter a uma intervenção cirúrgica sob pena de ver agravado o seu estado de saúde, sujeita-se à intervenção independentemente dos resultados obtidos. O paciente deve submeter-se à intervenção cirúrgica sob pena de perder qualidade de vida ou até de perder a vida.
Situação diferente, como sucedeu no caso em apreço, é a paciente submeter-se à intervenção cirúrgica por uma questão meramente estética, ou seja, para tornar mais bonito o seu aspecto fisico. A paciente visava a parte estética, pelo que estamos perante uma cirurgia de resultados;
VI - A falecida Rute assinou um "consentimento operatório", documento 6 da petição inicial, o qual é bem elucidativo quando diz: "O Médico informou-me que todos os procedimentos técnicos médico-cirúrgicos são com vista a um bom resultado. Fui também informado, apesar disso, de possíveis complicações no pós operatório, nomeadamente hematomas, cicatrizes alargadas, etc... Foi-me garantido todo o acompanhamento pelo médico de forma a obter os melhores resultados" ;
VII - O referido documento apenas alude a pequenas complicações pós-operatórias e que o procedimento médico visava obter "um bom resultado". Neste documento, não se coloca a mínima hipótese da morte da Rute ou de qualquer outra complicação grave;
VIII - O douto Tribunal a quo deu também como provado:
"No período necessário à actuação de anestesia local a Rute bracardizou (retardamento das contracções cardíacas)",
"A Rute sofreu uma paragem cardio-respiratória aquando da ministração da anestesia local com sedação",
"O R. J iniciou a administração da anestesia local", "A Rute bracardizou na sequência da sedação e do início da administração da anestesia local" e
"Aquando da chegada ao local do INEM tomou a responsabilidade pela reanimação, tendo designadamente ministrado atrofia e adrenalina, tendo sido obtida pulsação decorridos 5 minutos e, mediante a ministração de mais fármacos, pulsação e pressão arterial volvidos mais cinco minutos";
IX - A Rute recorreu aos serviços do Réu J para que este lhe prestasse serviços médicos. O Réu J era o cirurgião e o responsável pelo resultado final dos serviços que se propôs prestar;
X - O acto cirúrgico já se tinha iniciado, inclusive com a intervenção do Réu J.
Importa ainda ter em conta que a Rute bracardizou e entrou em assistolia (coração não batia) e foi o médico do INEM, que quando chegou ao local reanimou a Rute, administrando-lhe novos fármacos e usando técnicas de reanimação;
XI - A Rute esteve mais de trinta minutos em assistolia e basta apenas dez minutos para que os danos sejam irreversíveis e o desenlace fatal;
XII - Os Réus, ora Apelados, apesar de todas as evidências, alegaram, nos respectivos articulados da contestação, que a Rute sofreu um "choque anafilático" situações que não se veio a provar porque efectivamente a Rute não veio a falecer na sequência dum choque anafilático (reacção alérgica aos fármacos administrados na anestesia).
XIII - Levados estes factos à base instrutória (artigo 19°), o douto Tribunal deu como não provados. Nesta parte, o ónus da prova incumbia aos Réus, nos termos do artigo 342°, n.° 2 do Código Civil.
XIV - Resulta dos autos que a reacção da Rute não é típica dum choque anafilático, pois não se verificaram quaisquer sinais compatíveis com choque anafilático, nomeadamente de natureza cutânea, respiratória ou circulatória;
XV - Incumbia aos Réus provar, sem margem para dúvidas, que a morte da Rute não resultou de qualquer acto negligente e essa prova não foi feita;
XVI - A Rute recorreu a serviços do Réu J convicta que este era médico cirurgião plástico;
XVII - O douto Tribunal a quo deu como provado: "O R. J não é reconhecido pela Ordem dos Médicos como cirurgião plástico ou como tendo outra especialidade de médica (documento de. Fls. 67)" e
"A Rute recorreu ao R. J na sequência de indicações de amigas de que se tratava de cirurgião plástico e na sequência da convicção gerada por este de que estava habilitada para o efeito";
XVIII - Obviamente que a Rute não tinha recorrido nos serviços do Réu J se tivesse conhecimento que este não era cirurgião plástico. Parece óbvio que os pais da Rute despenderam uma elevada quantia (à data 700.000$00) para suportar a intervenção cirúrgica da Rute e só o faziam com recurso a um cirurgião plástico e não a um eventual candidato a cirurgião plástico;
XIX - O Réu J omitiu intencionalmente que não era médico cirurgião plástico;
XX - A Rute submeteu-se a uma intervenção cirúrgica aos culotes e ia ficar internada durante uma noite.

XXI - O douto Tribunal a quo entende que o consultório do Réu J, à data dos factos, estava devidamente apetrechado, fundamentando a sua posição com base num parecer da Ordem dos Médicos (fls. 194 dos autos).
XXII - Sucede que esse parecer foi elaborado com base numa vistoria ao local, realizada meses depois da data em que tivessem lugar os factos. Essa vistoria e respectivo parecer tinha todo o sentido se tivesse sido efectuada antes da ocorrência dos factos; XXIII - O Réu J, por documento junto a fls. 112 dos autos, informa a Ordem dos Médicos que aquele local está "preparado e equipado não só para a efectivação de consultas, mas também para a
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