Acórdão nº 07P4472 de Supremo Tribunal de Justiça, 27-11-2007

Data de Julgamento27 Novembro 2007
Case OutcomePROVIDO
Classe processualHABEAS COPRUS
Número Acordão07P4472
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça


Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA, arguido no processo nº 858/06.0 PASXL da 2º Juízo Criminal da comarca do Seixal, apresentou, em 19 de Novembro de 2007, na comarca do Seixal, uma petição de habeas corpus
Invocando o disposto no art. 31º nº 3 da Constituição da República e os arts. 222º e 223º nº 4 al. d) do Código de Processo Penal, alega que se encontra ilegalmente preso. Refere que está acusado da prática de um crime de homicídio previsto no art. 131º do Código Penal, por factos ocorridos em 26 de Dezembro de 2006, e que, tendo sido sujeito a Termo de Identidade e Residência (TIR) após interrogatório pelas autoridades, assim se manteve durante um período de, aproximadamente, 11 meses, durante o qual sempre cumpriu todas as notificações que lhe foram enviadas, comparecendo perante as autoridades e em juízo. Em 15 de Novembro de 2007, foi sujeito a interrogatório, no tribunal, com vista à alteração do estatuto coactivo a que estava sujeito: pelo Ministério Público foi então requerido que, além do TIR, lhe fossem aplicadas as medidas de coacção de apresentações periódicas tri-semanais, a proibição de se ausentar para o estrangeiro, bem como fosse fixada caução de valor não superior a € 1.000,00; o defensor oficioso discordou da existência de perigo de fuga, invocado pelo Ministério Público, mas aceitou as medida de apresentação periódicas e de proibição de ausência para o estrangeiro; todavia, por despacho do juiz do 2º Juízo Criminal da comarca do Seixal o arguido ficou sujeito a prisão preventiva. Perante o despacho judicial que aplicou tal medida, considera o requerente que não têm o mínimo cabimento, legal nem factual, os pressupostos e juízos de prognose, que partem de que “à medida que fica mais próxima a data de julgamento, é altamente provável que na mente do arguido fertilize a ideia de se eximir à Justiça, atendendo à possibilidade de lhe ser aplicada uma pesada pena de prisão (art. 195º do CPP)”. Diz acerca deste fundamento, que tendo o arguido sido notificado da acusação há 4 meses, se tivesse em mente a fuga à Justiça já a teria colocado em prática, e logo acrescenta que, atendendo à génese dos autos, que não foi ignorada pela Magistrada do Ministério Público, pode configurar-se, em face ao teor da acusação deduzida, uma situação de legítima defesa, ou, no limite, um excesso de legítima defesa. A partir da afirmação feita no despacho de que “não se pode transmitir à comunidade uma mensagem de que poderia eventualmente estar o arguido a beneficiar de um regime coactivo pouco gravoso”, alude a que uma das razões alegadas pelo autor do despacho se prende com factores de eliminação e combate a traços de racismo e xenofobia, em virtude de o arguido ser cidadão nacional branco e a vítima ser cidadão estrangeiro e negro. Crítica, por sua vez, o trecho do despacho, segundo o qual “indiciam os factos imputados, os meios probatórios da douta acusação, designadamente os depoimentos da assistente e das testemunhas aí referidas, assim como a prova pericial e documentação nele mencionada”, por o autor do despacho, antes do início da julgamento, revelar “já ter formado e fertilizado um pré-juizo na sua mente de que o arguido irá ser condenado a uma pena de prisão efectiva”. Insinua que, ainda antes de o arguido ter sido ouvido e de a acusação e a defesa se terem pronunciado acerca da medida de coacção, já as autoridades policiais se encontravam no átrio do tribunal para conduzirem o arguido ao Estabelecimento Prisional do Montijo e afirma ter fortes razões para crer que só foi sujeito a prisão preventiva por o autor do despacho ter reassumido funções, após um período de suspensão. Refere, por fim, que antes de alterada a medida de coacção, o arguido, que é primário, se encontrava a trabalhar, encontrando-se pessoal, profissional e socialmente integrado, e que com o despacho posto em crise foram violados os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo .
O juiz do processo, na informação a que se refere o art. 223º nº 1 do Código de Processo Penal, limitou-se a elencar as datas da prisão preventiva, de formulação da acusação do Ministério Público e da apresentação da acusação particular, da distribuição dos autos ao juízo criminal, do despacho nos termos do art. 311º e da data em que foi decretada a prisão preventiva, tudo fazendo supor que a prisão se mantém.

Consigna-se que, não foi dado cumprimento estrito ao art. 223º nº 1 do Código de Processo Penal, pois tendo a petição de habeas corpus dado entrada, no Tribunal do Seixal, em 19 de Novembro de 2007, os autos só foram conclusos ao juiz no dia seguinte e, tendo sido despachados nessa mesma data, à noite, a passagem da certidão e a remessa petição e demais documentação ao Supremo, só ocorreram em 22 de Novembro.

2. Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência a que se refere os arts. 223º nº 3 e 435º do Código de Processo Penal.
Tudo visto, cumpre decidir.

3. O instituto do habeas corpus, previsto já na Constituição de 1911, mas só introduzido no ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei 45.033, de 20 de Outubro de 1945, consiste “na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade. Providência de carácter extraordinário ... é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade”, assim se afirmava na exposição de motivos do referido diploma.
A Constituição de 1976 estabelece, no art. 31º, que haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente. Em anotação a esta norma, referem os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa – Anotada, 4ª edição revista, 2007, pág. 508), que, “a prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27º, quando efectuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.”.
O habeas corpus visa, portanto, reagir contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, constituindo, segundo o Prof. Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal, II, pág. 321) “não um recurso, mas uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”, sendo certo que “a qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e nesse sentido fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial de detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal” (Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, pág. 343). Mas, mesmo a considerar-se, como propugnam os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, que “o habeas corpus se aproxima, por vezes, de um modo de recurso em processo penal”, terá de assentar “em nulidade do processo ou na violação de pressupostos jurídico-normativos (constitucionais e legais) da determinação ou manutenção da prisão preventiva” (op. cit., pág. 510).
Sendo um meio de fazer cessar uma situação de ofensa ilegítima à liberdade pessoal, e devendo ser entendido como “remédio de urgência” e não propriamente como “recurso dos recursos”, conforme se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 423/03, de 24 de Setembro de 2003, o habeas corpus visa, assim, concretizar uma reacção imediata e urgente ao “abuso de poder”, o que, todavia, não lhe retira carácter de excepcional, entendido este “não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendido, mas como providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional, haja sido, ou não, ainda aberta a via dos recursos ordinários … e com uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários,” conforme se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 1 de Fevereiro de 2007 – proc. 353/07-5, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira.
Este entendimento, que o Supremo havia começado a adoptar, teve, a partir da reforma do Código de Processo Penal, operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, consagração legal. As decisões que apliquem, mantenham ou substituam medidas de coacção são, agora, impugnáveis por de via recurso ou através da providência de habeas corpus, não existindo, entre os dois modos de impugnação, relação de litispendência ou de caso julgado, independentemente dos respectivos fundamentos (art. 219º nº 2 CPP). Isto significa, conforme se referiu no recente acórdão de 11-10-2007 – proc. 3782/07-5, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, que “não obsta à apreciação desta providência a circunstância de
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