Acórdão nº 030/16 de Tribunal dos Conflitos, 24-05-2017

Data de Julgamento24 Maio 2017
Número Acordão030/16
Ano2017
ÓrgãoTribunal dos Conflitos
I – Relatório

1. A "A…………, S.A." intentou em 2015.06.19, na Instância Central de Cascais, 2.ª Secção Cível, J4, Comarca de Lisboa Oeste, acção declarativa sob a forma de processo comum, contra "B…………, S.A.", pedindo, a final, que fosse a Ré condenada a:
«I - Pagar à Autora o montante de €160.818,11, correspondente aos VPV devidos pela Ré relativamente à transferência da responsabilidade pela gestão de embalagens secundárias e terciárias que colocou no mercado, ao qual deverão ser acrescidos os juros de mora vencidos desde a data do vencimento de cada uma das facturas até à presente data, no montante global de € 67.203,49, bem como os juros vincendos até efectivo e integral pagamento, calculados de acordo com as sucessivas taxas supletivas legais aplicáveis a créditos de que sejam titulares sociedades comerciais, actualmente fixada em 7,25%;
II - Serem reconhecidas as obrigações da Ré de:
(i) Pagar à Autora os VPV referentes às embalagens secundárias e
terciárias que declarou e que vier a declarar à A…………; e
(ii) Declarar os pesos relativos aos sacos de caixa nos campos específicos para este tipo de embalagem e pagar os VPV correspondentes.»
Para o efeito, em síntese, alegou possuir uma licença para a gestão dos resíduos de embalagens não reutilizáveis, e nessa qualidade, isto é, enquanto única entidade gestora do Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens (SIGRE), celebrou com a Ré - sociedade comercial que desenvolve a sua actividade no sector da distribuição e retalho - um «contrato de embalador» - contrato de adesão ao sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens - pelo qual a Ré transferiu para a A. as suas responsabilidades relativamente à gestão dos resíduos de determinadas embalagens (de que é responsável pela colocação no mercado nacional), mediante o pagamento de contrapartidas financeiras.
Alegou ainda ter prestado à Ré, ao abrigo do referido contrato, os serviços identificados nas facturas que discriminou e, ter direito, em contrapartida, ao pagamento das prestações financeiras (Valor ……… - VPV) devidos a título de embalagens secundárias e terciárias a partir de 2006 (E ainda a factura FG n.º 200509863 com data de vencimento de 16-11-2005 e com excepção da factura FG 200909002, de 22-05-2009, com data de vencimento a 29-06-2009.), não tendo ainda obtido da parte da Ré os respectivos valores, apesar de a ter interpelado para tal.
Por último, alegou que a Ré apesar de obrigada, nos termos da lei e do contrato celebrado, a declarar à Autora o peso dos sacos de caixa (cuja autonomização em campo específico ocorreu no modelo da Declaração anual de 2010 - aprovada pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA)) não declarou as referidas embalagens nem pagou os VPV correspondentes a este tipo de embalagens.

2. A Ré apresentou contestação, deduzindo defesa por excepção e por impugnação.
Por impugnação, alegou, em síntese, que inexiste obrigação por parte da Ré no pagamento de qualquer prestação financeira (VPV) relativamente às embalagens secundárias e terciárias, por estas se transformarem em resíduos nas instalações da Ré e ser a Ré a suportar todas as operações de gestão de resíduos dessas embalagens. Entende que como a Autora não assegura qualquer das operações de gestão de resíduos que integram o conceito legal - art. 3.° do DL 178/2006, de 05-09, relativamente àquelas embalagens secundárias e terciárias, não é devido pagamento algum de contraprestação. Conclui que a Autora não oferece o respectivo sinalagma isto é, não assegura a gestão daqueles resíduos pelo que não tem direito ao pagamento do serviço.
Por excepção, invocou a incompetência material do tribunal e a prescrição.
Quanto à excepção de incompetência, alegou que a Autora tem a sua intervenção, ao abrigo do contrato que celebrou com a Ré, suportada em decisões administrativas: a licença e as decisões administrativas relativas a valores de prestação financeira (o VPV é aprovado pela APA - Agência Portuguesa do Ambiente) e às categorias específicas de embalagens criadas à margem da definição legal. Alegou ainda que a adesão da Ré aos termos contratuais propostos pela Autora é a concretização de uma imposição legal. Concluiu que a relação que se estabeleceu entre Autora e Ré deve ser qualificada como de natureza jurídico-administrativa (art. 1°, n° 1, do ETAF e art. 21°, n° 1, da CRP e art. 40°, nº 1, da LOSJ) devendo ser atribuída à jurisdição administrativa a competência para conhecer deste litígio.
3. A Autora respondeu às excepções invocadas pela Ré na contestação.
Quanto à excepção de incompetência em razão da matéria, alegou que a relação emergente dos contratos é uma simples relação contratual entre dois particulares, não intervindo qualquer entidade pública e também não está em causa uma entidade que possa utilizar, quando e se necessário, prerrogativas de jus imperii. Mais alegou que a Autora possui uma relação de cariz supra-infra ordenada como é o caso da Autora com as diversas autoridades administrativas e possui uma relação de cariz paritário com a Ré no âmbito e contexto contratual e normas de direito privado. Por último, defende que a ré na contestação ao invocar a falta de sinalagma invoca a excepção de não cumprimento prevista no art. 428° do CC e o enriquecimento sem causa art. 473° CC, estando na base uma relação de direito privado.

4. O Tribunal judicial, por despacho de 2015.12.16, julgou procedente a excepção de «incompetência material» do Tribunal Judicial (da Comarca de Lisboa Oeste - Instância Central de Cascais) para conhecer da matéria dos autos, considerando ser competente a jurisdição administrativa e consequentemente, absolveu a Ré da instância.

5. Inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 2016.06.30, julgou improcedente a apelação, mantendo a decisão impugnada que julgou o tribunal cível «incompetente em razão da matéria», concluindo que os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de pedido de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de embalador/importador celebrado no âmbito do SIGRE - Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens, nos termos do art. 212°, n° 3 da CRP e art. 1°, n° 1 e art. 4°, n° 1, al. f), ambos do ETAF.

6. A Autora, inconformada ainda com esta decisão sobre a «incompetência material» da jurisdição comum, considerando que o litígio em causa é da competência material da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 101°, n° 2, do CPC interpôs este recurso para o Tribunal de Conflitos.

7. Concluiu nos seguintes termos as suas alegações (transcrição):

A). A decisão recorrida aplica erradamente a alínea f) do artigo 4°/1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ("ETAF"), que sujeita à jurisdição administrativa as "questões relativas à ( ... ) execução ( ... ) de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo".
B). Ao abrigo desta norma, o Tribunal a quo julgou que a jurisdição administrativa seria competente para apreciar uma questão respeitante a contratos de embalador/importador entre a A………… e o B…………. Através deste contrato, a A………… assume as responsabilidades legalmente atribuídas ao B…………, enquanto produtor de embalagens. Em contrapartida, o B………… paga um valor à A…………, o chamado VPV. Ao abrigo do contrato, a A………… emitiu faturas, respeitantes a um certo volume de embalagens. O B………… não pagou o valor correspondente a tais faturas.
C). O Tribunal a quo entendeu que o contrato seria substancialmente regulado por normas de direito público essencialmente por considerar que a A………… se dedica à satisfação de necessidades de interesse público, tendo licença para tanto, e porque as contrapartidas financeiras, apesar de propostas pela A…………, serem aprovadas pela APA.
D). Esta matéria tem sido alvo de ampla e contraditória jurisprudência - entre as quais se conta um Acórdão deste Tribunal de Conflitos, de 22.02.2016. Nessa ocasião, o Tribunal decidiu no sentido do acórdão aqui em apreço, entendendo que os tribunais administrativos seriam materialmente competentes para apreciar uma questão relativa a um contrato com teor praticamente idêntico ao presente (celebrado entre a A………… e o C…………). E decidiu-o também com base na alínea f) do n° 1 do artigo 4° do ETAF.
E). Com todo o respeito, a A………… pede uma nova ponderação a V. Exas.
F). A interpretação constante de um e outro acórdão incorre num erro fundamental: é que a al. f) do nº 1 do artigo 4° do ETAF, quando sujeita à jurisdição administrativa as "questões relativas à ( ... ) execução ( ... ) de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo", refere-se ao regime substantivo do contrato (ou seja, a todos, mas apenas aos contratos administrativos) e não ao regime legal da atividade objeto do contrato.
G). Ou seja, para que o regime substantivo do contrato seja especificamente regulado por normas de direito público é necessário que, através do contrato, se realize um interesse público legalmente definido. É necessário que no contrato esteja presente a lógica da função administrativa, que implica a disponibilidade permanente, para a Administração, do objecto do contrato em questão.
H). Ora, a atividade de gestão de resíduos de embalagens exercida pela A………… é uma atividade puramente privada, atribuída por lei a privados e só a privados.
I). A A………… é a sociedade gestora do Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens. O Decreto-Lei nº 366-A/97, de 20 de dezembro (que regula a gestão de embalagens e resíduos de embalagens, doravante DL n. ° 366-A/97) consagra, no seu artigo 4°, o princípio da coresponsabilização dos...

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