Acórdão nº 02614/23.1BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 25-01-2024
Data de Julgamento | 25 Janeiro 2024 |
Ano | 2024 |
Número Acordão | 02614/23.1BELSB |
Órgão | Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) |
Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I – RELATÓRIO
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Supremo Tribunal Administrativo (STA), em seu nome próprio e na defesa da legalidade, veio interpor recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do STA, do acórdão proferido, em 19/10/2023, pela Secção de Contencioso Administrativo, que declarou a incompetência deste Supremo Tribunal para julgar a presente ação administrativa de contencioso pré-contratual e competente para o efeito o juízo de contratos públicos do Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa.
2. A CONSELHEIRA PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA, Entidade Demandada nos presentes autos, interpôs, também para o Pleno da Secção do STA, recurso do citado acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste STA.
3. Na ação administrativa pré-contratual respeitante ao concurso público, com publicação no Jornal Oficial da União Europeia (JOUE), para Aquisição de Hardware, que A..., S.A., SUCURSAL EM PORTUGAL intentou no Juízo dos Contratos Públicos, do Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa, contra o ESTADO PORTUGUÊS, “em virtude de figurar como Entidade Adjudicante a Procuradoria-Geral da República, conforme decorre do ponto 2 do Programa do Concurso, por via do Ministério Público”, foi proferida sentença, em 29/09/2023, em que o TAC de Lisboa se declarou incompetente, em razão da hierarquia, para julgar o presente litígio, julgando competente a Secção Administrativa do Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 1, alínea a), subalínea viii) do ETAF e absolveu da instância o ESTADO PORTUGUÊS, considerando a ação regularmente proposta contra a CONSELHEIRA PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA e ordenou a remessa do processo a este STA.
4. Em 19/10/2023, a Secção de Contencioso Administrativo deste STA, em 1.º grau de jurisdição, com um voto de vencido, proferiu o acórdão, contra o qual vêm os dois recursos jurisdicionais interpostos, em que, considerando a ação intentada contra a Conselheira Procuradora-Geral a República, declarou a incompetência deste STA para julgar a ação de contencioso pré-contratual e declarou competente o Juízo dos Contratos Públicos do TAC de Lisboa, ordenando, após trânsito, o cumprimento do disposto no artigo 14.º, n.º 1 do CPC.
5. O MINISTÉRIO PÚBLICO, ora Recorrente, formula, nas respetivas alegações, as seguintes conclusões:
“1) O Ministério Público junto deste Supremo Tribunal Administrativo, a agir em nome próprio, na defesa da legalidade, não se conformando com decidido pelo referido Acórdão de 19/10/2023, proferido pela Secção do Contencioso Administrativo em 1º grau de jurisdição, vem apresentar recurso para o Pleno da mesma Secção, por considerar, em suma, e salvo o devido respeito, que, ao julgar o Supremo Tribunal Administrativo absolutamente incompetente em razão da hierarquia para conhecer da presente ação de contencioso pré-contratual, incorreu em erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação do disposto no art. 24º, nº 1, alínea a), subalínea viii), do ETAF.
2) Efetuando uma interpretação teleológica restritiva deste normativo que não é consentida pelos princípios gerais que devem estar subjacentes à interpretação da lei, nos termos do disposto no art. 9º, do Código Civil, bem como pelo princípio da hermenêutica jurídica segundo o qual ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus;
3) A interpretação efetuada pelo Acórdão Recorrido não tem, desde logo, na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso,
4) A qual, ao invés, e sem fazer qualquer distinção em razão da matéria subjacente a essas ações ou omissões, estatui claramente que compete à Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo conhecer dos processos em matéria administrativa relativos a ações ou omissões das entidades seguidamente elencadas, entre as quais figura o Procurador-Geral da República.
5) Ademais, também não se mostra defensável que tal interpretação corresponda ao pensamento legislativo, que, alegadamente, “quis (só pode querer em conformidade com as directrizes constitucionais e de direito europeu)” consagrar essa solução;
6) Quando, em divergência, se verifica antes que o legislador, quer na redação original da norma, quer nas diversas alterações que foi introduzindo ao ETAF, nunca aproveitou esse ensejo para fazer a distinção preconizada no Acórdão Recorrido, no sentido de subtrair à aplicação daquela norma as situações em que – como nos autos – estejam em causa ações e omissões da Procuradora-Geral da República em matéria de contencioso pré-contratual. E, certamente, se fosse essa a sua intenção, tê-lo-ia feito;
7) Segundo entendemos, a solução legislativa consagrada nessa norma, sem qualquer distinção quanto à matéria, corresponde a uma clara opção legislativa político-legislativa, em razão da finalidade que lhe subjaz;
8) Assim, independentemente de as razões esgrimidas no Acórdão Recorrido poderem ser porventura relevantes de lege ferenda, afigura-se-nos claro que não poderão ser atendidas face ao teor literal da norma em vigor e à teleologia que lhe subjaz (v. Acórdãos do STA de 30/11/2011, proc. 01021/11, e de 18-01-2018, proc. 01445/17, acima citados);
9) Sendo forçoso considerar que razões protocolares que estão subjacentes a essa norma – que desaconselharam que “as «entidades» mencionadas no dito artigo litiguem nas instâncias – já que se entendeu curial que as disputas em que elas estejam envolvidas sejam apreciadas, «ab initio», pelo mais alto tribunal da jurisdição administrativa” –ocorrem sempre que essas entidades sejam demandadas pelas suas ações ou omissões, independentemente da matéria que a estas subjaz.
10) Relevando, portanto, e exclusivamente, para esse efeito, a demanda de qualquer das entidades elencadas pelo legislador e não a matéria sobre a qual incidam as suas ações ou omissões.
11) Pelo que, em conformidade com o estatuído no art. 9º, nº 3, do Código Civil, se deverá presumir que, no caso, o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados;
12) E, como tal, não poderá ser invocada a aludida interpretação teleológica restritiva para arredar da previsão do art. 24º, nº 1, alínea a), subalínea viii), do ETAF, as ações e omissões da Procuradora-Geral da República em matéria de contencioso pré-contratual, quando o legislador não fez – podendo fazê-la, se o tivesse querido – tal distinção.
13) Aderindo-se integralmente à declaração de voto do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Pedro Machete, que melhor explicitou – fazendo-o, a nosso ver, de forma lapidar – as razões da discordância quanto à tese que fez vencimento no Acórdão recorrido, que acima transcrevemos;
14) Pelo que, não havendo dúvidas que, nos presentes autos, a ação interposta tem por objeto ações ou omissões da Exma. Senhora Conselheira Procuradora-Geral da República, considera-se que, por aplicação do disposto no art. 24º, nº 1, alínea a), subalínea viii), do ETAF, é competente para dela conhecer, em razão da hierarquia, a Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo;
15) Tal como foi oportunamente suscitado nas contestações e decidido pelo Juízo dos Contratos Públicos do TAC de Lisboa;
16) Decidindo de forma divergente, o Acórdão Recorrido violou o disposto no art. 24º, nº 1, alínea a), subalínea viii), do ETAF, e no art. 9º, do Código Civil.”.
Pede a procedência do recurso, com a consequente revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que considere que a Secção de Contencioso Administrativo do STA é competente, em razão da hierarquia, para conhecer da presente ação pré-contratual.
6. Também a Entidade Demandada, CONSELHEIRA PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA, interpôs recurso do acórdão do STA, de 19/10/2023, reproduzindo-se as conclusões formuladas nas respetivas alegações:
“I. O douto acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento de direito ao julgar incompetente o Supremo Tribunal Administrativo para julgar a presente ação de contencioso pré-contratual, que tem por objeto a apreciação da validade de atos praticados pela Procuradora-Geral da República, e competente para o efeito o juízo dos contratos público do TAC de Lisboa.
II. Isto porque, nos termos do artigo 24.º/1, a), vii) do ETAF é efetivamente competente a Secção de Contencioso Administrativo do STA, em primeiro grau de jurisdição, para conhecer “dos processos em matéria administrativa relativos a ações ou omissões do Procurador-Geral da República”.
III. No sentido da atribuição da competência ao STA não temos apenas essa norma, relativamente à qual o tribunal a quo entendeu adotar uma solução jurídica interpretativa de redução teleológica, mas temos também a constante do art.º 19º, n.º 8 do Estatuto do Ministério Público, a que o tribunal a quo não fez menção na decisão ora recorrida.
IV. Assiste integral razão ao Senhor Juiz Conselheiro Pedro Machete, ao concluir no seu voto de vencido que a competência para conhecer da presente ação pertence à Secção de Contencioso Administrativo do STA, nos termos dos artigos 24º, n.º 1, al. a), vii) do ETAF e 19º, n.º 8 do Estatuto do Ministério Público.
V. Com base em tais normas, qualquer interpretação no sentido de pretender retirar ao STA a competência para conhecer da impugnação de atos administrativos praticados pelo Procurador-Geral da República não tem, com o devido respeito, a mínima correspondência com a letra da lei – que é objetiva, clara e expressa, sem consagrar quaisquer exceções – não respeitando dessa forma os critérios da hermenêutica jurídica.
VI. Perfilhando, com a devida vénia, a douta argumentação de tal voto de vencido, cumpre referir que, em termos teleológicos, os motivos que estão na base da solução legal...
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