Acórdão nº 01864/23.5BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 20-06-2024

Data de Julgamento20 Junho 2024
Número Acordão01864/23.5BELSB
Ano2024
ÓrgãoSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. Relatório

1. Nos presentes autos de recurso de revista vindos do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”), vem AA, com os sinais dos autos, recorrer do acórdão daquele tribunal de 25.01.2024, que, negando provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (“TACL”), de 26.06.2023, manteve esta decisão, a qual, depois de convidar sem êxito, ao abrigo do disposto no artigo 110º-A, nº 1, do CPTA, o ora recorrente a substituir a petição para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada na ação de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias intentada e em que se peticionava, com referência ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (agora Agência para a Integração, Migrações e Asilo – AIMA, IP) a intimação do então requerido, aqui recorrido, a decidir a pretensão por si formulada em 29.09.2022 e, em consequência, a emitir o título de residência com carácter urgente ou, subsidiariamente, não se entendendo que aquele pedido fora objeto de deferimento, que fosse declarado, por força do prazo legal para a decisão, o deferimento tácito do mesmo.

2. O ora recorrente sustentou a sua pretensão, alegando, no essencial o seguinte:
– Em 29.09.2022, apresentou o seu pedido de autorização de residência junto do ora recorrido, não tendo este proferido qualquer decisão no prazo de 90 dias;
– Trabalha há mais de 8 meses indocumentado, sob ameaça de despedimento, e não revê a sua família há mais de 3 anos, estando em causa a sua segurança no emprego e o direito à família;
– Pode, em qualquer momento, ser objeto de fiscalizações e ser mandado parar pela polícia, estando em causa o seu direito à liberdade e segurança;
– Apenas tem acesso ao sistema de saúde se pagar a integralidade das taxas, estando em causa o seu direito à saúde;
– A discricionariedade do Requerido encontra-se reduzida a zero, devendo decidir de imediato e emitir o respetivo título de residência;
– Ainda que assim não se entenda, o seu pedido encontra-se tacitamente deferido.
Como mencionado, o TACL rejeitou liminarmente o requerimento inicial, por considerar inobservado o requisito da subsidiariedade que inere à intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias.
Inconformado, o requerente, ora recorrente, apelou para o TCAS. O recorrido, embora citado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 641.º, n.º 7, do CPC, nada disse. Decidindo a apelação, o TCAS manteve a sentença recorrida, por entender, em síntese, que o requerente podia, por via de providência cautelar, seguida da interposição da competente ação principal obter o efeito pretendido com o presente meio processual (seguindo a orientação jurisprudencial do TCA Sul, que reputa dominante).
Não se conformando, mais uma vez, o requerente interpôs recurso de revista, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
«179°) A tese constante no Douto Acórdão do TCA Sul revela-se atentatória de um valor fundamental do Estado de Direito.
180°) Existe uma violação clara do direito à tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 268°,4 da Constituição da República Portuguesa.
181°) O Acórdão em apreço consiste num obstáculo, desproporcionado no acesso ao Direto e ao processo previsto no artigo 20° da Lei Fundamental.
182°) A providência cautelar é precária e enxertada a uma ação ordinária que visa somente decidir.
183°) Não tem sentido, emitir um título de residência para vir à posteriori decidir sobre o uso do mesmo, é de uma enorme contradição, um paradoxo.
184°) A providência a decretar excederia o efeito jurídico propiciado pela procedência da causa principal.
185°) Não é possível formular em processo cautelar, juízo sobre o preenchimento do requisito do fumus boni iuris previsto no n°1 do artigo 120° do CPTA.
186°) O Acórdão recorrido traduz claramente num benefício ao infrator AIMA IP que assume uma posição clara de inércia e de clara irresponsabilidade nos presentes autos.
187°) Ademais, existe uma evolução jurisprudencial no sentido de aclamar a Intimação para Defesa de Direitos, Liberdades e Garantias como o meio processual mais idóneo.
189°) A primeira evidência é promanada no Ac. do TCA SUL em 15.02.2018.
190) Seguidamente o Acórdão da Suprema Instância de 11.09.2019 no âmbito do processo n° 1899/18.0BELSB, que ditou que a Intimação, para Defesa de Direitos, Liberdades e Garantias constitui o meio processual idóneo para obter a emissão de uma decisão de autorização de residência em caso de decisão sonegada em virtude da inércia administrativa.
191) O Recorrente tem uma proteção multinível no que respeito a direitos fundamentais, sendo-lhe aplicada a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
192°) Violou-se o Código Europeu da Boa Conduta Administrativa.
193°) Violou-se a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
194°) Violou-se o Tratado de Lisboa de Dezembro de 2009.
195°) Violaram os Ac. do STA de 1.2.2017, processo n° 01338/16, e o Ac. STA, de 16.05.2019, proferido no processo n° 02762/17.7BELSB.
196°) Quanto maior o tempo da indocumentação, maior a sua exposição à clandestinidade, à precariedade e à exploração.
197°) Não é legalmente possível a tese da autonomia da urgência em matéria de Intimações para Defesa de direitos, liberdades e garantias.
198°) Não existe prazo legal para intentar uma Intimação Defesa de direitos, liberdades e garantias.
199°) Aquilo que se discute é de uma Justiça em tempo útil, rápida, eficaz, definitiva.
200°) A falta de um título de residência coloca em causa a dignidade da pessoa humana.
201°) o Recorrente está coibido de se movimentar, celebrar negócios civis, alcançar trabalho e até invocar apoio policial, sob o risco de expulsão.
202°) O Recorrente aguarda há mais de um ano por uma decisão.
203°) Está debaixo de intenso sofrimento, em pânico.
204°) A qualquer momento pode perder o seu emprego.
205°) Não revê a sua família há mais de dois anos no ... que de si dependem.
206°) A jurisprudência dominante em matéria de decisões por inércia administrativa por parte do SEF nos tribunais portugueses de primeira instância, e no TCA SUL e TCA NORTE é no sentido de o presente meio legal ser o mais idóneo para melhor acautelar a nossa Constituição da República Portuguesa.
207°) O TCA Sul tem onze acórdãos atuais considerados provados e procedentes em situação idêntica com recurso ao presente meio legal.
208°) O Ac. do TCA SUL cria um entrave, obstáculo desproporcionado e injustificado no acesso ao Direito e ao processo previsto no artigo 20° da Lei Fundamental, retirando em definitivo o acesso a qualquer via processual, o que é profundamente injusto.
209°) Sentimento de Injustiça que cresce quando a Recorrida AIMA IP assume uma postura de inércia nos presentes autos.
210°) O Recorrente não sabe quanto tempo mais terá de aguardar.
211°) Vai ter de viver o resto da sua vida na ilegalidade, na clandestinidade.
212°) O TCA SUL não teve consciência.
213°) Demorou cerca de cinco meses para decidir, prejudicando o Recorrente.
214°) O Recorrente ROGA por uma aplicação correta da Lei, por JUSTIÇA, por Humanismo.
215°) Violaram-se os artigos 1°,20,120,13°, 15°, 20°, 26°, 27°,36°, 44°, 53°, 58°,59°, 64°, 67°,68°, 268°,4 da Constituição da República Portuguesa, artigos 7o, 15° e 41° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 6o e 14° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e ainda o artigo 109° CPTA, 120°,1 CPTA, e ainda os artigos 82°, 1 e artigo0 88,2 das leis 23/2007 de 04/7, lei 59/2017 de 31/7 e lei 102/17 de 28/08 e lei 18/2022 de 25/08 e ainda os artes 5o,8°,10°,13° todos do CPA e ainda o artigo 607°, 4, do CPC. Violaram-se ainda a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamado pelo Parlamento Europeu, o Código Europeu da Boa Conduta Administrativa, violou-se o Tratado de Lisboa.».

O requerido, ora recorrido, não contra-alegou.

3. O presente recurso foi admitido por acórdão de 11.04.2024, proferido nos termos do artigo 150.º, n.º 6, do CPTA, tendo a formação de apreciação preliminar fundamentado a sua decisão com base nas seguintes ordens de razão:
«Esta Formação de Apreciação Preliminar teve já oportunidade de se pronunciar sobre as questões que o Recorrente pretende ver apreciadas nesta revista, em casos em tudo semelhantes.
Assim, v.g., no acórdão de 28.09.2023, Proc. n° 0455/23.5BELSB expendeu-se, nomeadamente, o seguinte: “Compulsados os autos, importa apreciar ‘preliminar e sumariamente’, como compete a esta Formação, se estão verificados os ‘pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista – referidos no citado artigo 150° do CPTA […]
Feita uma tal apreciação, impõe-se-nos concluir pela admissão do presente recurso de revista. Efetivamente, e desde logo, a sintonia dos ‘tribunais de instância’ no sentido da decisão de indeferimento liminar assenta em ‘diferentes fundamentos’, (...). Estas discrepâncias jurídicas traduzem claramente, aliás, a divergência existente nas instâncias sobre a questão aqui litigada, a qual se mostra resolvida em aparente divergência com acórdão deste STA —AC STA de 11.09.2019 R° 01899/18.0BELSB.
Assim, para além de estarmos perante uma ‘questão’ de relevância jurídica, acresce a necessidade de clarificar e solidificar o sentido da sua resolução, no âmbito dos ‘casos concretos trazidos a juízo’, o que é múnus do órgão máximo desta jurisdição.” (cfr. ainda os acórdãos desta Formação todos de 04.04.2024, Proc. n°s 180/23.7BECBR, 477/23.6BELSB e 741/23.4BELSB e de 22.03.2019, Proc. n° 02762/17.7BELSB).
Estes considerandos são absolutamente transponíveis para o caso em presença, sendo de toda a conveniência que o SIA se pronuncie sobre a problemática dos pressupostos do meio previsto no...

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