Acórdão nº 0174/13.0BEVIS de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 25-01-2023
Data de Julgamento | 25 Janeiro 2023 |
Ano | 2023 |
Número Acordão | 0174/13.0BEVIS |
Órgão | Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) |
1. RELATÓRIO
1.1 A sociedade acima identificada como Recorrente, inconformada com os acórdãos proferidos pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 9 de Junho de 2021 e 19 de Maio de 2022 – o primeiro, que negou provimento ao recurso por ela interposto e manteve a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) dos anos de 2008 e 2009, consequentes à aplicação das disposições anti-abuso previstas, à data, no n.º 10 do art. 67.º do Código do IRC (CIRC) e do art. 38.º da Lei Geral Tributária (LGT) e, o segundo, que deferiu o pedido de rectificação de erros materiais e indeferiu o pedido de reforma do anterior acórdão –, deles interpôs recursos para o Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentando as alegações de recurso.
Pelos motivos que adiante exporemos, só será apreciada a admissibilidade do primeiro daqueles recursos, pelo que apenas referiremos as conclusões que nele foram formuladas e que são do seguinte teor:
«I. O presente Recurso de Revista vem interposto, nos termos do artigo 285.º do CPPT, contra o Acórdão proferido pelo TCAN, em 09/06/2021, no âmbito do recurso interposto pela ora Recorrente, no processo de impugnação judicial que correu termos, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, com o n.º de processo 174/13.0BEVIS, que teve como objecto a contestação dos actos de liquidação de IRC de 2008 e 2009 da Recorrente;
II. Tem decidido o STA que o recurso de revista excepcional “só é admissível se for claramente necessário para uma melhor aplicação do direito ou se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, sendo que esta importância fundamental tem de ser detectada não perante o interesse teórico da questão, mas perante o seu interesse prático e objectivo, medido pela utilidade da revista em face da capacidade de expansão da controvérsia ou da sua vocação para ultrapassar os limites da situação singular” (cfr. acórdão da 2ª Secção do STA, proferido em 27/11/2013, no processo n.º 01355/13);
III. Exige-se que “[a] questão a apreciar seja de complexidade jurídica superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas que cumpra efectuar, quando se esteja perante um enquadramento normativo particularmente complexo ou quando se verifique a necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis ou se exija ao intérprete e ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas. E tal relevância jurídica não pode ser meramente teórica, medida pelo exercício intelectual que seja possível praticar sobre as normas discutidas, mas uma relevância prática, com interesse e utilidade objectiva.”;
IV. Segundo o acórdão do STA, de 10 de Setembro de 2014, proferido no processo n.º 01013/14: “A admissão para uma melhor aplicação do direito justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, com recurso a interpretações insólitas, ou por aplicação de critérios que aparentem erro ostensivo, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa é reclamada para dissipar dúvidas acerca da determinação, interpretação ou aplicação do quadro legal que regula certa situação”;
V. No caso vertente, a relevância social das questões controvertidas resulta, em primeiro lugar, da necessidade de aferir se existem ou não limites à actuação da AT e aos poderes de natureza pública que a mesma exerce perante os contribuintes, nomeadamente no que respeita à forma como realiza o procedimento de inspecção tributária, sobretudo numa situação em que esteja em causa a aplicação de medidas mais castradoras dos direitos dos contribuintes, como a aplicação da cláusula anti-abuso;
VI. E isto é relevante para evitar que a situação se repita e que outros contribuintes sejam afectados por comportamentos da AT que não obedecem ao princípio da boa-fé e também ao princípio da legalidade;
VII. Nessa medida, importa aferir se a AT deve ou não pautar-se pelo cumprimento escrupuloso das normas, dos prazos e dos procedimentos previstos, por exemplo, na LGT e no RCPIT ou, pelo contrário, tem a liberdade de as interpretar e (re)adaptar, a seu favor, por forma a justificar a arrecadação de impostos. Se deve ou não a AT colocar-se na posição do contribuinte, previamente à aplicação da cláusula anti-abuso;
VIII. No que se refere à questão mais substantiva, teremos necessariamente que perceber – porque se trata de uma questão que ultrapassa em muito o âmbito do presente recurso – se a AT pode agir de forma leviana, não cuidando sequer de confirmar se o facto tributário em que assentou a sua correcção se verificou;
IX. Até que ponto está a AT sujeita ao ónus probatório que decorre do disposto no artigo 74.º da LGT numa situação como esta e quando, em concreto, tinha inúmeras evidências de que aquele facto tributário não se verificou porque o negócio que supostamente estaria subjacente à aplicação da cláusula geral anti-abuso nunca se verificou?
X. Por outro lado, é imperioso, no entendimento da Recorrente, que o STA afira da legitimidade da AT para acusar contribuintes de práticas abusivas, apenas porque implementaram operações de reestruturação, no âmbito de um grupo económico, com relevância no seu sector de actuação, como foi o caso, quando existem racionais económicos que justifiquem as várias etapas dessa reestruturação;
XI. A decisão proferida pelo TCAN exige uma clarificação quanto ao âmbito de aplicação da norma anti-abuso prevista no artigo 63.º do Código do IRC e, em concreto, quanto à avaliação se essa aplicação exige a obtenção de uma efectiva vantagem fiscal ou se pode ser meramente potencial;
XII. Ou seja, a utilidade jurídica da revista vai muito para lá deste caso concreto e assume, em termos sociais, uma repercussão que justifica lançar mão desta via de recurso excepcional, principalmente no que se refere ao estabelecimento de limites à actuação da AT em situações que já são elas próprias excepcionais;
XIII. Por fim, a necessidade da melhor aplicação do direito, em concreto, resulta ainda da necessidade de proteger, por um lado, a liberdade de cada contribuinte gerir o seu negócio, da forma que considerar mais adequada ao seu florescimento, desde que não tome decisões ruinosas (o que não foi sequer o caso, pois a situação das empresas em causa após a reorganização mantém-se inalterada até hoje), também de proteger a liberdade das partes definirem os termos dos negócios que pretendem celebrar e, por fim, de impedir uma nefasta e inaceitável ingerência da AT nas decisões dos empresários;
XIV. O recurso excepcional de revista depende, nos termos do n.º 2 do artigo 285.º do CPPT, da verificação de um requisito complementar, que é a violação de lei substantiva ou processual, sendo que a decisão proferida pelo TCAN colide frontalmente com as normas plasmadas no artigo 63.º, n.º 4, da LGT, no artigo 63.º, n.º 3, do CPPT e com o princípio da boa-fé, bem como, com as normas que disciplinam o regime de neutralidade fiscal e, nessa medida, com o princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento real;
XV. No que se refere à violação de lei, quanto às normas que regulam o procedimento de inspecção e a caducidade do prazo de aplicação da cláusula anti-abuso, resulta da factualidade apurada nos autos que a AT procedeu à realização de duas acções de inspecção, por referência ao mesmo imposto e período de tributação, em manifesta violação da lei substantiva e, em concreto, do disposto no artigo 63.º, n.º 4, da LGT;
XVI. A situação de excepção consagrada nessa norma nunca foi invocada pela AT, para justificar a realização destes segundos procedimentos inspectivos;
XVII. Nada justificava esta actuação por parte da AT, que já tinha determinado a abertura de procedimentos inspectivos, para análise das informações fiscais e da contabilidade dos anos de 2008 e 2009, e que podia ter lançado mão nessa sede, caso assim o entendesse, da cláusula anti-abuso, quer a que se encontra prescrita no n.º 10 do artigo 73.º (à data dos factos, no artigo 67.º) do Código do IRC, quer a que foi consagrada no n.º 2 do artigo 38.º da LGT;
XVIII. Mas não o fez, decidindo iniciar novo procedimento inspectivo, em 23.10.2012, apenas para poder apresentar as conclusões da anterior inspecção, porquanto a mesma já se encontrava manifestamente caducada;
XIX. Esta é uma das primeiras questões que necessita de ser avaliada na presente revista: pode a AT agir nesta matéria, da forma que bem entender, prorrogando e realizando sucessivamente acções inspectivas com o mesmo objectivo, que é o de arrecadar impostos a todo o custo, sem apresentar justificações ao contribuinte?
XX. A resposta a essa questão não se afigura determinante apenas para o presente caso, mas para todos os outros, pois a AT terá encontrado a partir de agora a fórmula para prolongar ad aeternum os procedimentos inspectivos, em manifesta violação e desrespeito do disposto no artigo 63.º, n.º 4, da LGT e também no artigo 36.º, n.º 2 e n.º 3, do RCPIT;
XXI. Não só nunca foi invocado pela AT, conforme exigido pelo n.º 3 (actual n.º 4) do artigo 63.º da LGT, qualquer facto ou pressuposto novo que pudesse justificar a abertura de um novo procedimento de inspecção externa ao IRC dos anos de 2008 e 2009, como, nem o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, nem o próprio TCAN, identificaram qualquer justificação para tal;
XXII. A AT não o fez por mera incúria, porquanto não...
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