Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 149/2017

Data de publicação10 Abril 2017
SeçãoSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 149/2017

Processo n.º 180/17

Plenário.

Relatora: Conselheira Maria Clara Sottomayor.

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira vem, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade da norma constante do artigo 13.º, n.º 2, do Decreto que lhe foi enviado para assinatura como Decreto Legislativo Regional, recebido em 23 de fevereiro de 2017, que pretende criar e regulamentar as carreiras especiais de inspeção de pescas e de agricultura da Região Autónoma da Madeira.

2 - O teor da norma é o seguinte:

«Artigo 13.º

Competências

1 - [...].

2 - Aqueles que, por qualquer forma, dificultarem ou se opuserem ao desempenho das funções inspetivas a que, por lei, o inspetor esteja obrigado, incorrem no crime de desobediência qualificada previsto na lei penal.»

3 - O requerente invoca a inconstitucionalidade orgânica da norma constante do artigo 13.º, n.º 2, do citado decreto, por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea c), 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 228.º, n.º 1, da CRP, apresentando os seguintes fundamentos:

«I

A Norma Objeto do Pedido

1 - O Decreto enviado para assinatura do Representante da República como Decreto Legislativo Regional (doravante, simplesmente 'Decreto') pretende criar e regulamentar as carreiras especiais de inspeção de pescas e de agricultura da Região Autónoma da Madeira (1), procedendo à segunda alteração ao Decreto Legislativo Regional n.º 19/2010/M, de 19 de agosto, que aplica à Região Autónoma da Madeira o Decreto-Lei n.º 170/2009, de 3 de agosto, que estabelece o regime da carreira especial de inspeção e opera a transição dos trabalhadores integrados nos corpos e carreiras de regime especial das Inspeções-Gerais.

2 - O artigo 13.º do Decreto em apreço, respeitante às competências dos inspetores de pescas no exercício da sua função inspetiva, na parte relevante, dispõe como se segue (sublinhado nosso):

'Artigo 13.º

Competências

1 - [...].

2 - Aqueles que, por qualquer forma, dificultarem ou se opuserem ao desempenho das funções inspetivas a que, por lei, o inspetor esteja obrigado, incorrem no crime de desobediência qualificada previsto na lei penal.'

3 - Esta norma não tinha paralelo no citado Decreto Legislativo Regional n.º 19/2010/M, de 19 de agosto (alterado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/2011/M, de 10 de janeiro, que aprovou o Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2011), inserindo-se numa parte sistemática do Decreto que é inovadora.

4 - A norma em causa pretende ter aplicação apenas em situações de perturbação do exercício de funções dos inspetores de pescas (não se estendendo à perturbação do exercício de funções dos inspetores de agricultura).

5 - Em todo o caso, é o disposto no artigo 13.º, n.º 2, do Decreto que, incidindo sobre matéria penal, suscita o presente pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade que se requer ao Tribunal Constitucional, nos termos que se seguem.

II

Da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 13.º, n.º 2, do Decreto em apreço

6 - Nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, tipifica-se o crime de desobediência, determinando-se o seguinte: 'Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.'

7 - De harmonia com o n.º 2 deste mesmo artigo 348.º do Código Penal, a moldura penal aplicável é superior perante crimes de desobediência agravada, dispondo o Código que: 'A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.'

8 - Entende-se que a norma constante do artigo 13.º, n.º 2, do Decreto enviado para assinatura do Representante da República, que aqui está em causa, pretende claramente assumir-se como 'disposição legal' para efeitos do disposto no artigo 348.º, n.º 2, do Código Penal.

9 - Consequentemente, e caso o artigo 13.º, n.º 2, do Decreto em análise viesse a vigorar na Região Autónoma da Madeira, aqueles que, por qualquer forma, dificultassem ou se opusessem ao desempenho das funções inspetivas a que os inspetores de pescas estão legalmente obrigados, incorreriam no crime de desobediência qualificada, previsto no Código Penal (doravante, 'CP').

10 - Está em causa a aprovação de uma norma com natureza legislativa. Com efeito, nos termos do artigo 112.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante, 'CRP'), os decretos legislativos regionais são atos legislativos, e foi como decreto legislativo regional, provindo da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, que o Decreto em causa foi aprovado e enviado para assinatura do Representante da República.

11 - A questão central que aqui se suscita diz respeito a saber se a 'disposição legal' constante do artigo 348.º, n.º 2, do CP, pode, à luz do disposto na CRP, ser objeto de aprovação pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira ou, numa outra perspetiva, se as regras de reserva e repartição da competência legislativa presentes na CRP não determinam uma leitura mais restrita da expressão 'disposição legal', constante do artigo 348.º, n.º 2, do CP. Vejamos.

12 - Nos termos do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP, integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a 'definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, bem como processo criminal', significando isto que, apenas quando munido de autorização legislativa para o efeito, pode o Governo da República legislar sobre tais matérias.

13 - A possibilidade de as Regiões Autónomas legislarem sobre matérias elencadas no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP, coloca ainda outras questões. É sabido, que as Regiões Autónomas podem legislar sobre matérias da reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta. Porém, sobre a matéria em causa (definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, bem como processo criminal), não é possível que as Regiões Autónomas sejam sequer autorizadas a legislar (cf. artigo 227.º, n.º 1, alínea b), da CRP).

14 - Posto isto, seria necessária a imediata conclusão pela inconstitucionalidade orgânica da norma contida no artigo 13.º, n.º 2, do Decreto, em apreço, dado o seu objeto penal, absolutamente vedado à competência do legislador regional.

15 - Contudo, sempre se poderia tentar alegar que a norma que constitui objeto do presente pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade não procede à definição de qualquer crime, pena, medida de segurança ou respetivos pressupostos, nem sequer a qualquer alteração ou adaptação de elementos dessa natureza para o âmbito regional. Por outras palavras, a norma em causa não viria bulir com nenhum aspeto do tipo de crime de 'desobediência' ou com a sua qualificação, limitando-se a dar concretização a uma hipótese já normativamente prevista pelo legislador penal, a saber, o preenchimento de uma condição normativa - a existência de uma 'norma legal' - para a verificação da qualificação do crime de desobediência. Esta questão já foi apreciada, no passado, pelo Tribunal Constitucional, que a analisou, mutatis mutandis, no Acórdão n.º 187/2009, de 22 de abril de 2009. O que estava então em causa (num processo de fiscalização abstrata sucessiva, na sequência do julgamento de inconstitucionalidade da norma em três casos concretos) era uma norma do Código da Estrada que alargava as situações puníveis como crime de desobediência qualificada.

Como o Tribunal Constitucional então clarificou, 'A razão pela qual o Tribunal, em sede de fiscalização concreta nas decisões invocadas pelo requerente, julgou organicamente inconstitucional a norma do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, foi o facto de ela ter alargado o âmbito de aplicação da norma que pretendeu substituir, sem que houvesse na Lei n.º 53/2004, de 4 de novembro, que concedeu ao Governo a autorização para proceder à revisão do Código da Estrada ao abrigo da qual foi publicado o Decreto-Lei n.º 44/2005, qualquer referência à possibilidade de o fazer'. (sublinhado nosso).

16 - Neste caso, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade da norma objeto por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP, em razão de uma alteração da qualificação de certos factos, de forma inovadora, com o consequente alargamento da condenação penal como crime de desobediência qualificada, sem que houvesse para tanto autorização legislativa parlamentar.

17 - Como esclareceu a Senhora Conselheira Maria João Antunes, na sua declaração de voto junta com este Acórdão, 'A reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, em matéria de definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição), abrange necessariamente a opção de inserir determinada incriminação no Código Penal ou, antes, em legislação extravagante. Trata-se de uma opção que o legislador constitucional reservou ao Parlamento, salvo autorização ao Governo, dado o significado político-criminal de uma tal escolha'.

18 - No caso ora em apreço, o artigo 13.º, n.º 2, do Decreto, procede à qualificação, inovadora de certas condutas como puníveis em sede de desobediência qualificada: dificultar ou obstar ao desempenho de funções inspetivas a que os inspetores de pescas estão legalmente obrigados. Questiona-se então se tais condutas seriam puníveis como crime de desobediência qualificada na Região Autónoma da Madeira. Julga-se que a...

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