Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2022

ELIhttps://data.dre.pt/eli/acstj/9/2022/11/24/p/dre/pt/html
Data de publicação24 Novembro 2022
Data01 Junho 2013
Número da edição227
SeçãoSerie I
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça
N.º 227 24 de novembro de 2022 Pág. 2
Diário da República, 1.ª série
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º
9/2022
Sumário: «A cláusula contratual geral inserta em contrato de seguro, mesmo facultativo, em que
se define o sinistro ‘Incêndio’ como ‘combustão acidental’, não cobre, no seu âmbito e
alcance, o incêndio causado dolosamente por terceiro, ainda que não seja identificado
o seu autor.»
R.U.J n.º 933/15.0T8AVR.P1.S1
Autor: Bar Salinas do Mar, Unipessoal, L.da
Réus: Fidelidade — Companhia de Seguros, S. A., e Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da
I — Relatório.
Instaurou Bar Salinas do Mar, Unipessoal, L.da, com sede em Praia da Barra, freguesia ..., ...,
acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Fidelidade — Companhia
de Seguros, S. A., sendo ainda Ré nos autos a sociedade Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da
Essencialmente alegou:
Tendo celebrado, em Janeiro de 2005, com a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) um
contrato de concessão de utilização do domínio público hídrico para implantação e exploração dum
equipamento de praia, passou a ocupar uma parcela de terreno na Praia da Barra, com a área de
300 metros quadrados, onde implantou um edifício em madeira e vidro (com as respetivas infraes-
truturas em betão e madeira, constituído por sala, cozinha, bar, quatro casas de banho, chuveiros,
sala de primeiros socorros, armazém de apoio e esplanada), destinado a apoio de praia, com a
mesma denominação da A., equipando -o com todo o mobiliário e maquinaria indispensáveis a
funcionar como estabelecimento comercial, cuja exploração, em 1 de Junho de 2013, cedeu, pelo
período de 7 meses, à 2.ª R..
No dia 22 de Outubro de 2013, de noite, deflagrou um incêndio em tal edifício/estabelecimento,
incêndio que o consumiu, assim como a todo o seu recheio, rápida e integralmente, ascendendo a
reconstrução do edifício a € 147.350,00 + IVA e o valor dos móveis e equipamentos a € 45.956,38
+ IVA.
Ocorrência esta que, segundo a A., está coberta pelos dois contratos de seguro celebra-
dos — ambos no dia 6 de Junho de 2013, um pela A. e o outro pela 2.ª R., sendo este relativo aos
bens móveis que constituíam o recheio do estabelecimento — com a R. Fidelidade, uma vez que,
“[...] nos termos dos mencionados contratos, a 1.ª R. está obrigada a indemnizar a A. por todos os
danos causados no equipamento de praia, no respetivo equipamento e no inventário, entre outras
causas por incêndio e actos de vandalismo, [assim como] a indemnizar a A. por perdas de rendas
relativas ao aludido equipamento de praia e também por interrupção da actividade, pelo prazo de
30 dias, à razão de € 150 por dia”.
Deverá assim a R. Fidelidade — Companhia de Seguros, S. A., ser condenada a pagar -lhe os
montantes necessários à reconstrução do edifício, o valor dos móveis e equipamentos que cons-
tituíam o recheio do estabelecimento; o que perdeu e irá perder de rendas; o que perdeu com a
paralisação da actividade e os prejuízos resultantes da impossibilidade de poder continuar a exercer
a sua actividade; e a 2.ª R., Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da, condenada a pagar -lhe o valor dos
móveis e equipamentos que constituíam o recheio do estabelecimento, em virtude desta se haver
obrigado, segundo o contrato de cessão de exploração celebrado entre ambas, a celebrar contrato
de seguro “que cobrisse qualquer dano causado por incêndio, roubo ou acto de vandalismo”.
Concluiu pedindo:
[...] que a primeira R. (Fidelidade) seja condenada a pagar -lhe
1 — A quantia global de € 262.035,82, por todos os prejuízos descritos, verificados até à data
da propositura desta ação;
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2 — A quantia a liquidar em execução de sentença correspondente aos danos futuros que a
A. vier a sofrer com a perda de rendas correspondentes ao apoio de praia destruído ou de rendi-
mentos resultantes da sua exploração, até integral pagamento da indemnização a que tiver direito, a
qual lhe é indispensável à recuperação do mencionado apoio de praia e à retoma da sua actividade;
3 — Juros de mora à taxa legal para operações comerciais, sobre as quantias indemnizatórias
que vierem a ser fixadas, desde a citação até integral pagamento
4 — Juros de mora, à mesma taxa, sobre a quantia de € 204.000,00, desde 7 de Fevereiro de
2014, até à data da sua citação;
Quando assim não se entenda, o que só por hipótese se admite, deverá a segunda R. ser
condenada a pagar à A.:
5 — A quantia de € 56.519,44, como compensação pela perda dos móveis e equipamentos
que constituíam o recheio do estabelecimento de apoio de praia a que os autos se referem em 4.º
e 17.º da petição inicial;
E ainda
6 — Juros de mora à taxa legal para operações comerciais, sobre o valor da indemnização que
vier a ser condenada a pagar, desde a citação para contestar esta ação, até integral pagamento. [...]
Citadas as Rés, apenas a R. Fidelidade — Companhia de Seguros, S. A., apresentou con-
testação.
Invocou que o contrato de seguro celebrado com a A. tinha por objecto apenas o imóvel — e
não “o estabelecimento comercial, o seu recheio, equipamento e/ou mobiliário ou a atividade ali
exercida” — até ao limite de capital de € 170.000,00, com as franquias contratuais estabelecidas
e cobrindo os riscos identificados na apólice e condições particulares, estando assim “excluído
expressamente das coberturas do contrato de seguro os lucros cessantes ou perda semelhante e
não se apresent[ando] abrangidos os danos emergentes ou consequentes a atuação dolosa; e que
o contrato celebrado com a 2.ª R. Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da, do ramo multirriscos negócios,
tinha como objeto o mobiliário do estabelecimento até ao limite de capital de € 3.000,00, mercado-
rias até ao limite de capital de € 7.500,00 e equipamentos até ao limite de capital de € 17.500,00
e, ainda, a cobertura de “danos em bens do senhorio” até ao limite de capital de € 1.500,00, pelo
que, segundo a R. Fidelidade, deste seguro apenas esta última cobertura pode aproveitar à A.,
estando o restante que se peticiona excluído da sua responsabilidade.
O incêndio não ficou a dever -se a “causa eléctrica no quadro, devido a infiltrações”, mas teve
origem intencional/dolosa, sendo que, nas definições das condições gerais, incêndio é a ‘combustão
acidental’, pelo que o sinistro, quanto ao contrato de seguro celebrado pela A., não se encontra
abrangido pelas coberturas da apólice em causa”; sendo que, quanto ao contrato de seguro cele-
brado pela 2.ª R., Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da, “atenta a cobertura de actos de vandalismo”,
foi o sinistro considerado coberto e “regularizados os danos verificados, por pagamento à 2.ª R.,
segurada nessa apólice, do valor de € 27.994,84”, tendo todo o mobiliário e o equipamento cuja
existência foi comprovada sido contemplados nos valores indemnizatórios pagos, pelo que, “se a
A. tem contas a acertar com alguém, esse alguém será apenas a 2.ª R.”.
Concluiu pela total improcedência da acção e pela absolvição em relação a todos os pedidos
contra si formulados.
A A. respondeu (ao abrigo do art. 3.º, n.º 4 do Código de Processo Civil), alegando que nunca
afirmou que o incêndio tenha tido origem “no quadro eléctrico do edifício” e que sempre alegou
desconhecer a origem do incêndio em questão”, acrescentando que a responsabilidade da segu-
radora só é excluída no caso de actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado
ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis, situação que não se verifica no caso dos
autos e que não é alegada pela R., tendo assim o acidente que ser considerado acidental.
Quando a R. Fidelidade decidiu pagar à 2.ª R. a indemnização referida na contestação, “estava
ciente que o mobiliário e equipamentos em causa pertenciam à A.” e que tal contrato de seguro
fora celebrado a favor da A., pelo que devia pagar tais valores/indemnizações à A..
Contudo, posteriormente, em requerimento apresentado em 3 de Novembro de 2015, veio a
A. reduzir os pedidos, dizendo:
— Reconhece que o contrato de seguro por si celebrado com a R. Fidelidade — Companhia de
Seguros, S. A., tem como único objeto seguro o imóvel referido nos autos, até ao limite de capital
de € 170.000,00;
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— Reconhece que o contrato de seguro celebrado entre a R. Fidelidade — Companhia de
Seguros, S. A., e a 2.º R. Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da, tem as coberturas referidas nos arti-
gos 17.º e 18.º da contestação apresentada pela R. Fidelidade.
— Em função do que reduz os pedidos que formulou para o seguinte:
A) Deverá a primeira R. ser condenada a pagar à A.:
1 — A quantia de € 170.000,00 m pela perda total do edifício a que os autos se referem, objecto
do contrato de seguro titulado pela apólice ME...30;
2 — A quantia de € 1.500,00, correspondente à perda de “bens do senhorio”, com referência
ao contrato de seguro titulado pela apólice ME...30;
3 — Juros de mora, à taxa legal para operações comerciais, sobre as quantias indemnizatórias
que vierem a ser fixadas, desde 07 -02 -2014, até integral pagamento.
B) Deverá a segunda R. (Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da)ser condenada a pagar à A.:
1 — A quantia de € 56.519,44, como compensação pela perda dos móveis e equipamentos
que constituíam o recheio do estabelecimento de apoio de praia a que os autos se referem, iden-
tificado em 4.º e 17.º da petição;
2 — Juros de mora, à taxa legal das operações comerciais, sobre o valor da indemnização que
vier a ser condenada a pagar, desde a citação para contestar esta acção, até integral pagamento.
Cumprido o contraditório, foi admitida a referida redução do pedido.
Realizou -se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“A) Condenar a primeira ré (Fidelidade) a pagar à autora o valor de €1.500,00 (mil e quinhentos
euros), deduzida do valor da franquia de € 150,00, acrescido de juros de mora, calculados desde
a citação, à taxa legal de 4 %, até efetivo e integral pagamento (tendo a ver com a “perda de bens
do senhorio, com referência ao contrato de seguro celebrado entre a 1.ª Ré (Fidelidade) e a 2.ª Ré
(Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da que continha uma cláusula de cobertura do seguro em relação
a “actos de vandalismo” — cf. ponto 26 dos “factos provados”);
B) Absolver a primeira ré (Fidelidade) de todos os restantes pedidos contra si formulados.
C) Absolver a segunda ré (Piadas Perfeitas Unipessoal, L.
da
) dos pedidos contra si formulados.”.
Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, o qual, por acórdão da
Relação do Porto de 27 de Outubro de 2020, foi julgado parcialmente procedente, tendo -se [...]
alter[ado] a sentença recorrida e além da condenação da 1.ª Ré (Fidelidade), condenado a 2.ª Ré
(Piadas Perfeitas Unipessoal, L.da) a pagar à autora a quantia de €56.526,34 — deduzindo -se a
quantia a liquidar pela 1.ª Ré — acrescida de juros à taxa de 4 % contados desde a citação e até
integral liquidação [...].”
Interpôs a A. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a título de revista excecional, visando
a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que condenasse a recorrida
a indemnizar a Recorrente por todos os danos emergentes do incêndio a que os autos se referem.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“1 — Dando como provado que o incêndio a que os autos se referem foi intencionalmente
provocado por terceiros, o douto acórdão recorrido considera que ele não foi acidental, argumento
com que absolve a Seguradora do pedido de indemnização, ao ora Recorrente, pelos prejuízos
decorrentes do incêndio em questão.
Porém,
2 — Conforme decidiu o douto acórdão deste Venerando Supremo Tribunal, de 16.12.1999,
em que se fundamenta a presente Revista Excecional, “O sentido relevante da expressão ‘incêndio-
-combustão acidental’, inserto nas condições gerais do contrato de seguro contra riscos de incêndio,
é, do ponto de vista de um declaratário medianamente diligente, instruído e sagaz, o de incêndio
para o qual o segurado não tenha contribuído, por si ou por quem seja civilmente responsável”.

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