Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2021

ELIhttps://data.dre.pt/eli/acstj/3/2021/08/16/p/dre
Data de publicação16 Agosto 2021
SeçãoSerie I
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2021

Sumário: Quando o administrador da insolvência do promitente vendedor optar pela recusa do cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, o promitente comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efetuada, nos termos dos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março.

Processo n.º 872/10.0TYVNG-B.P1.S1-A (Recurso para Uniformização de Jurisprudência)

***

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça no pleno das Secções Cíveis - art. 688 do CPC.

1 - Na sequência da sentença que declarou a Sociedade Santos & Pereira da Silva - Sociedade de Construções, Lda. em estado de insolvência, sentença que transitou em julgado, veio a Sra. Administradora da Insolvência apresentar a lista dos créditos a que se refere o artigo 129, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), tendo sido apresentadas várias impugnações, nomeadamente a do ora recorrente AA e da sua mulher BB.

2 - Após efetivação da audiência de julgamento em 1.ª Instância, foi proferida sentença (em 04.05.2018) decidindo, no que ao presente recurso releva:

"- Declaro verificado o crédito de AA e BB no montante de 10.000 (euro) e qualifico-o como garantido".

A mesma sentença procedeu à graduação dos créditos e, no que ao presente recurso releva, decidiu:

"- Procedo à graduação dos créditos verificados, nos seguintes termos (por referência ao auto de apreensão a fls. 21-29 do apenso A):

i)- Quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial da ...sob o n.º 13...2/200l1 009-A (verba n.º 9):

2º) - O crédito garantido (por direito de retenção) de AA e BB".

3 - Desta decisão recorreram AA e BB impugnando a matéria de facto fixada, tendo o Tribunal da Relação ...(por acórdão de 07-06- 2018) julgado procedente a apelação, alterando a matéria de facto [dando como provada a matéria da alínea a) referente à factualidade não provada, do seguinte teor: "Os impugnados AA e BB entregaram à Insolvente outras quantias para além da indicada em 6), como reforço do sinal, no total de 52.900,00(euro)"], alterando parcialmente a sentença (na parte em que decidiu "declaro verificado o crédito de AA e BB no montante de 10.000 (euro) e qualifico-o como garantido"), declarando "verificado o crédito de AA e BB no montante de 125.800,00(euro)" e qualificando-o como garantido.

4 - Inconformada recorreu de revista a credora CONSULTEAM - Consultores de Gestão, Lda., sendo proferido o Acórdão recorrido, com a seguinte decisão:

"Acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista parcialmente procedente, alterando o acórdão recorrido apenas quanto ao montante do crédito a reconhecer aos Recorridos AA e BB, que se fixa no valor de 62.900,00(euro) (sessenta e dois mil e novecentos euros)".

5 - Irresignado com a decisão do Acórdão, o credor AA veio interpor o presente recurso para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça com vista à uniformização de jurisprudência, nos termos do art. 688 e seguintes do Código de Processo Civil, invocando como fundamento a contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2014, proferido no Processo n.º 1206/11.2TBLSD-H.P1.S1 (que a fls. 7 identifica de forma incorreta).

6 - Apresentou as seguintes conclusões:

"I - Embora os Tribunais sejam livres de seguirem a Jurisprudência que julguem mais adequada, deve seguir-se a filosofia do Acórdão Uniformizador acolhido com o n.º 4/2014, salvo se forem aduzidos novos argumentos, não considerados na decisão que fixou a Jurisprudência ou que, considerando a legislação no seu todo a Jurisprudência já se encontra ultrapassada.

II - O não acatamento da Jurisprudência fixada em A.U.J. e argumentação jurídica que lhe serve de base, representa uma quebra injustificada do valor da Segurança jurídica e das legítimas expectativas dos interessados e causa danos na celeridade processual e eficácia dos Tribunais.

III - O promitente comprador do imóvel para sua habitação é um consumidor que tem proteção Constitucional- arts. 60 e 65.

IV - O artigo 106 n.º 2 do CIRE apenas tem aplicação aos contratos promessa com eficácia obrigacional, mas sem tradição da coisa ao promitente comprador.

V - No caso dum contrato promessa, sem eficácia real mas com tradição da coisa, em que o promitente comprador é um consumidor, a recusa do A.I. em cumprir esse contrato, confere-lhe o direito ao sinal em dobro.

VI - Devendo ser proferido, na esteira do A.UJ. n.º 4/2014, Acórdão Uniformizador no sentido que:

No âmbito duma insolvência não tendo sido cumprido um contrato promessa de compra e venda de imóvel destinado a habitação por recusa do Administrador de insolvência, em que o promitente comprador é um consumidor que tinha prestado um sinal e ocorrera a "traditio" da coisa, goza do direito de retenção e tem direito ao sinal em dobro, nos termos do n." 2 do art. 442 do C.C..

Termos em que, por erro de interpretação e aplicação do disposto no Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, artigos 60 e 65 da C.R.P., n.º 2 do art. 106 e 104 n.º 1 do CIRE, art. 755 n.º 1 al. f), 799 n.º 1 e 442 n.º 2 todos do C.C. deve o Acórdão ser revogado e substituído pelo Acórdão Uniformizador que reconheça ao Recorrente o valor do sinal em dobro".

7 - Contra-alegou a credora CONSULTEAM - Consultores de Gestão, Lda., concluindo nos seguintes termos:

"1. Ficou definitivamente assente pelo Acórdão proferido no âmbito do recurso de Revista que que contrato promessa em causa nos presentes autos se mantinha em vigor à data de declaração de insolvência da promitente vendedora, subsistindo todos os seus efeitos jurídicos, não tendo ocorrido incumprimento definitivo.

2 - Assim sendo, os promitentes compradores terão que fazer valer os seus direitos no quadro do instituto dos "Efeitos sobre os negócios em curso", nos termos previstos no art. 102 n.º 3 do CIRE, aplicável ex-vi do art. 106 n.º 2 e 104 n.º 5 do CIRE, e não nos termos previstos no art. 442 do Código Civil, como seria norma.

3 - Ao administrador de insolvência foi conferido um direito de escolha ou de opção - o direito de dar ou recusar cumprimento aos contratos - que aquele deve exercer sempre em função dos interesses da massa insolvente e que se enquadra perfeitamente no quadro das suas funções típicas do administrador de insolvência, sendo um direito potestativo.

4 - Ainda que se admita que houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, a favor dos promitentes compradores, ao contrato promessa não foi atribuída eficácia real, ficando afastada a aplicabilidade da norma do n.º 1 do art. 106 do CIRE.

5 - A Administradora de Insolvência optou pelo não cumprimento do contrato promessa, tendo procedido à apreensão da fração objeto do contrato promessa a favor da massa insolvente e, posteriormente, à sua venda em sede de liquidação do ativo.

6 - Sendo tal recusa lícita, legítima e adequada aos fins do processo de insolvência, face ao disposto no artigo 106 do CIRE, ao direito potestativo de recusa de cumprimento dos negócios em curso.

7 - Será de aplicar o disposto no n.º 2 do art. 106 do CIRE que, ainda que indiretamente, remete para as regras gerais quanto aos efeitos da recusa de cumprimento do contrato pelo administrador de insolvência (cf. art. 104 n.º 5 e 102 n.º 3 do CIRE).

8 - Os promitentes compradores não têm direito à indemnização correspondente ao sinal em dobro, por falharem os pressupostos da ilicitude e da culpa, plasmados no art. 442 n.º 2 do Código Civil; têm apenas um direito de crédito, qualificado como crédito sobre a insolvência, calculado com base na diferença de valor entre as prestações.

9 - O Acórdão fundamento foi inexoravelmente condicionado pela doutrina perfilhada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014 de 20.03.2014.

10 - É inaceitável que seja conferida força vinculativa às alegadas premissas da decisão de uniformização tendo em consideração que nem os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência gozam de força vinculativa quanto à questão, a não ser no âmbito do processo em que são proferidos (art. 4, n.º 1, da LOSJ).

11 - Até porque na situação em que recaiu o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014 não estava em causa saber se o credor tinha direito ao sinal em singelo ou em dobro.

12 - Do confronto do n.º 1 com o n.º 2 do artigo 106 do CIRE resulta, que o legislador quis tão só distinguir os casos em que a recusa do Administrador da Insolvência em cumprir o contrato é ilegítima (contratos-promessa com eficácia real, acompanhados da tradição da coisa) das situações em que tal recusa é legitima (contratos-promessa com eficácia real sem haver tradição da coisa e todos os contratos-promessa com eficácia obrigacional, com ou sem traditio).

13 - O elemento histórico reforça esta ideia, na medida em que o CIRE veio alterar o paradigma anterior do CPEREF, no que respeita aos efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso.

14 - O legislador de 2004 afastou o regime previsto no artigo 164-A n.º 1 do CPEREF, segundo o qual o contrato-promessa sem eficácia real que se encontrasse por cumprir à data da declaração de falência extinguia-se com esta e, sendo o falido o promitente-vendedor, dava lugar à restituição em dobro do sinal recebido, como dívida da massa falida.

15 - Assim, as consequências da recusa, legitima, do Administrador da Insolvência em cumprir o contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional são as que resultam da conjugação do artigo 119 n.os 1 e 2, com o artigo 106 n.º 2, o qual remete para o artigo 104 n.º 5, que, por seu turno, remete para o artigo 102 n.º 3 al. c), do CIRE.

16 - Por todo o exposto, o Acórdão proferido no âmbito do recurso de Revista fez uma correta aplicação do direito, ao apoiar a decisão nos artigos 119 n.os 1 e 2 com o artigo 106 n.º 2, o qual remete para o artigo 104 n.º 5, que por sua vez remete para o artigo 102.º n.º 3 alínea c) do CIRE.

Termos em que deve ser...

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