Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2017

Data de publicação16 Junho 2017
SeçãoSerie I
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2017

Pº 821/12.1PFCSC.L1-A.S1 (II)

Rel. Souto de Moura

O Ministério Público (MP), junto da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, veio interpor recurso de fixação de jurisprudência, no caso, obrigatório por força do n.º 5, do art. 437.º, do Código de Processo Penal (CPP), afirmando a oposição do acórdão de que recorreu, proferido em 5/11/2015, no processo em epígrafe do Tribunal da Relação de Lisboa, 9.ª Secção, e o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 17/12/2014 (Pº 99/13.7GAVNC.G1, também da 9.ª Secção), transitado em julgado em 16/1/2015, o qual elegeu, assim, acórdão fundamento.

A divergência em questão é a seguinte:

No caso de condução de um veículo automóvel na via pública em estado de embriaguez, tendo sido tomada a opção de suspender provisoriamente o processo, com a injunção de entrega da carta de condução, devido à proibição de conduzir veículos com motor por determinado período, o que foi cumprido, no caso de vir a ter lugar a revogação da suspensão do processo, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução deve ser descontado, ou não, no tempo de proibição da faculdade de conduzir, estabelecido como pena acessória, na sentença condenatória que tiver lugar?

A norma a ter em conta é, antes do mais, o art. 281.º, n.º 3 do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.

A - RECURSO

a) Foram as seguintes as conclusões da motivação do recurso do MP:

"1 - No acórdão recorrido proferido no dia 5/11/2015, a questão jurídica que vinha colocada era a de se saber se o tempo em que a arguida esteve inibida de conduzir, por injunção, ao abrigo do disposto no art.º 281.º, n.º 3 do CPP, imposta no âmbito da suspensão provisória do processo, devia ser descontado na pena acessória fixada por força do disposto no artigo 69.º do C.P., tendo sido decidido que tal tempo deve ser descontado.

2 - Sobre a mesma questão de direito e no âmbito da mesma legislação foi proferido Acórdão a 17/12/2014, no Processo n.º 99/13. OGTCSC.L1-9, da Relação de Lisboa, que considerou não ser possível proceder ao desconto, do período de inibição de conduzir imposto no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena acessória fixada por força do disposto no artigo 69.º do C.P., consagrando solução oposta.

3 - Tendo ambos os Acórdãos transitado em julgado, e não sendo nenhum deles, já, susceptível de recurso ordinário, impõe-se a fixação da jurisprudência."

b) A arguida, ora recorrida, respondeu nos termos do art. 439.º, n.º 1 do CPP, dizendo que no acórdão recorrido foi decidido, e a seu ver bem, que "o período de inibição do exercício da condução de veículos, cumprido, entretanto, na fase de suspensão provisória do processo, será sempre levado em conta e descontado, na futura condenação que venha a ser imposta ao arguido, na sequência da revogação da mesma suspensão, sob pena de violação do Princípio ne bis in idem."

Mas, depois acrescentou que o acórdão fundamento, invocado pelo Recorrente sobre a mesma questão decidiu em sentido contrário, ou seja, que o tempo em que a arguida esteve sem carta de condução, em cumprimento de injunção aplicada em sede de suspensão provisória do processo, por condução em estado de embriaguez, em caso da revogação da suspensão e sujeição a julgamento, não deve ser descontado na pena acessória fixada em sede de sentença condenatória.

Por isso, achou por bem adiantar, a seguir, a jurisprudência que abona cada uma das teses em confronto, para terminar afirmando o preenchimento de todos os pressupostos de que depende a admissão e prossecução do presente recurso.

O MP sediado neste Supremo Tribunal de Justiça (STJ) teve vista nos autos, de acordo com o art. 440.º, n.º 1 do CPP, e proferiu douto parecer em que, para além do mais, demonstrou a tempestividade do presente recurso e enunciou os argumentos apresentados em abono das teses em confronto, nos dois acórdãos recorrido e fundamento. Face ao preenchimento de todos os pressupostos requeridos, terminou concluindo também que "[...] deverá ser reconhecida a oposição de julgados e, consequentemente, ordenado o prosseguimento do recurso - art. 441.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal."

Colhidos os vistos os autos foram submetidos a conferência, e por acórdão de 20/10/2016 proferido nos presentes autos ao abrigo do art. 440.º, n.º 4, do CPP, foi então decidido "[...] estarem verificados os requisitos formais e substanciais previstos nos arts. 437.º e 438.º do CPP, de que depende a continuação do presente recurso, por o acórdão recorrido e o acórdão fundamento indicado assentarem em factos que se equivalem, havendo oposição de julgados quanto à mesma questão de direito, e daí que o presente recurso deva prosseguir, nos termos do n.º 1 do art. 442.º do CPP."

De acordo com este último preceito, o MP alegou, defendendo a tese da obrigatoriedade de desconto na pena acessória que tenha vindo a ser aplicada, do tempo em que o arguido ficou privado de carta de condução devido à injunção em referência. Concluiu assim:

"1. A SPP traduz-se na manifestação do princípio do consenso uma vez que o consentimento do arguido é, para além da decisão do Ministério Público e da concordância do juiz, requisito essencial.

2. As regras de conduta e injunções têm natureza diferente das penas: as primeiras exigem a colaboração do arguido, enquanto as segundas têm ab initio carácter coercivo e são executadas mesmo contra a vontade do arguido.

3. Porém, as regras e injunções são medidas relacionadas com a administração da justiça criminal enquadrando-se, constitucionalmente, no exercício da função jurisdicional.

4. A injunção de proibição de conduzir veículos com motor é de aplicação obrigatória para os crimes dos artigos 291.º e 292.º do Código Penal, por se entender que no âmbito da circulação rodoviária a SPP cumpre um importante papel ao nível das necessidades de prevenção especial e geral de intimidação, contribuindo para a consciência cívica dos condutores.

5. Com a Lei n.º 20/2013, de 21.02, a injunção de proibição de conduzir está para as injunções e regras de conduta previstas no n.º 2 do artigo 281.º do CPP como a pena acessória de proibição de conduzir está para a pena principal.

6. Aliás, reconhecendo este paralelismo, a PGR emitiu a Directiva n.º 1/2014, de 15.01, versando sobre matéria de estrita interpretação jurídica, uniforme para o Ministério Público, onde relativamente à injunção de proibição de conduzir determina quais devem ser os seus limites máximos e mínimos, com observação do artigo 69.º, n.º 1 do Código Penal.

7. A injunção em causa visa garantir, de forma reforçada, a tutela do bem jurídico violado e prevenir a prática de factos da mesma natureza não devendo, portanto, ser desvalorizada e tratada como algo em relação ao qual o arguido possa "optar" por cumprir ou não cumprir.

8. A partir do momento em que o juiz homologa a decisão do Ministério Público, o arguido fica, imediatamente, obrigado ao cumprimento das injunções e regras de conduta, já que tal decisão, na medida em que pressupôs o seu consenso, não é impugnável.

9. O incumprimento da injunção e a sua revogação terá, necessariamente, como consequência o prosseguimento do processo para julgamento, impossibilidade de repetição das prestações feitas, bem como, eventualmente, de beneficiar de nova suspensão.

10. A alínea a) do n.º 4 do artigo 281.º [ter-se-á querido dizer art. 282.º] do CPP, ao estabelecer que as prestações feitas não podem ser repetidas, refere-se somente a prestações que sejam suscetíveis de ser repetidas e não àquelas cuja restituição é impossível, em razão da sua própria natureza, como é o caso das alíneas b), g) ou e) do n.º 2.

11. A injunção de proibição de conduzir, se cumprida pelo arguido, tem carácter sancionador e corresponde, em termos práticos, ao cumprimento de uma pena, pois restringe-lhe a liberdade de conduzir, constituindo um sacrifício idêntico àquele que sofreria se lhe fosse aplicada uma pena acessória de proibição de conduzir, resultante de uma condenação.

12. No âmbito da SPP, o legislador, com esta injunção, afiançou serem alcançadas as finalidades de prevenção sem necessidade de julgamento, ou seja, que o arguido interiorizaria a falta cometida e ganharia consciência de que a mesma seria irrepetível.

13. Posto que esta injunção assume a natureza de uma verdadeira pena acessória, não há razão para que, na situação em apreço, não se proceda ao desconto, na pena acessória, do período de tempo de proibição de conduzir já cumprido pelo arguido, por injunção, no período que durou a suspensão.

14. Solução contrária levaria a que, de forma incompreensível, o agente fosse submetido a um duplo e desproporcional sacrifício.

15. O legislador, mesmo consciente de que as razões de justiça material que justificam o desconto podem estar em conflito com princípios fundamentais do direito penal, nomeadamente, com as exigências de prevenção, essencialmente, de prevenção especial de socialização, optou por dar prevalência a imperativos de justiça material sobre exigências de prevenção.

18. Não havendo norma expressa que determine o desconto, e uma vez que este não constitui um mecanismo que agrave a situação do arguido ou que defina positivamente a sua responsabilidade, ou a prática de um crime, dever-se-á, perante caso omisso, nos termos do artigo 10.º, n.º1, do Código Civil, aplicar-se analogicamente o artigo 80.º do Código Penal."

Deve, pois, fixar-se jurisprudência no seguinte sentido:

"Em caso de revogação da SPP por falta de cumprimento integral das injunções impostas e da sequente prossecução para julgamento, vindo o arguido a ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (artigo 69.º do Código Penal) deverá ser descontado, nesta pena, o período de tempo de proibição de conduzir por si já cumprido, por injunção, durante o período que durou a suspensão (n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal)."

Também a arguida e ora recorrida alegou e concluiu:

"I - No acórdão da Relação de Lisboa de...

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