Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2016

Data de publicação28 Outubro 2016
SeçãoSerie I
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2016

P.752-f/1992.e1-A.s1-A

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, no Pleno das Secções Cíveis:

1 - Moisés Levy Bendráo Ayash, na qualidade de administrador da massa falida de Vítor Manuel Ribeiro Gonçalves Moço, intentou contra Bairro Azul-Agência de Leilões Lda., Leonel Pedro e Ana Maria Franco Pedro e Carlos Henrique Ribeiro Melon acção de condenação, invocando que o 2.º R. marido adquiriu por escritura pública de compra e venda realizada no dia 28/06/2001, no 4.º Cartório Notarial de Lisboa, perante o 4.ºR., na veste de notário, para o casal que constitui com a 2.ª Ré mulher, determinado prédio rústico, apreendido para a massa falida; de tal escritura constava que a 1.ª R. teria a qualidade de encarregada de proceder à venda do referido bem, o que não correspondia à verdade, já que era mero auxiliar do administrador da falência, sendo essencial a intervenção deste no negócio, à face da lei então aplicável (cf. os arts. 1211.º, n.º 2, e 1248º, do C. P. C); sucede que o A. não recebeu o preço de 40.500. 000$00 que, na dita escritura, consta ter sido pago pelo 2.º R. marido à R. Bairro Azul, Lda.

A A. termina a petição, formulando os pedidos de declaração de ineficácia, em relação a si, da venda pretensamente titulada pela dita escritura pública de compra e venda, em que a 1.ª Ré outorgou invocando a qualidade que não tinha de encarregada da venda, devendo, em consequência, os 2os RR. serem condenados a restituir o prédio em causa à A. livre e desocupado de pessoas e bens.

Os RR. Leonel Pedro e Ana Maria Franco Pedro contestaram, impugnando a factualidade alegada e invocando que o A. bem sabia que a Bairro Azul vinha realizando escrituras de venda dos imóveis apreendidos para a massa falida, pelo que a presente acção constituiria um reprovável a venire contra factum proprium, envolvendo manifesto abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.

A outorga de escritura, por parte dos R. R., foi celebrada de boa-fé, mediante documento/certidão exarada pelo Tribunal onde corria o processo de falência, de onde constava a qualidade de encarregada da venda, sem que qualquer dúvida tivesse sido levantada.

O liquidatário judicial, bem sabendo ser a primeira R. quem outorgava as escrituras em representação da massa falida, nunca alertou os segundos R. R. para qualquer possível irregularidade, nem antes, nem após a celebração por estes, da escritura de compra e venda.

Na sequência de tal negócio, efectuaram o pagamento do respectivo preço, como consta da escritura de compra e venda, no valor de (euro) 202.013,15 (antes PTE 40.500.000$00), bem como a quantia de 10 % sobre tal valor (acrescida de IVA), a título de comissão de agência, conforme condições lidas na altura do leilão.

Atendendo a que, no mínimo, só por negligência grosseira do liquidatário judicial no controle das vendas as mesmas poderiam ter acontecido nos termos em que se verificaram, requereram a intervenção principal provocada do Estado Português, representado pelo Ministério Público, bem como do próprio liquidatário judicial, Moisés Levy Bendrão Ayash - sendo tal requerimento admitido no âmbito da intervenção acessória.

Não se tendo logrado efectuar a citação pessoal da R. Bairro Azul, Lda., foi ordenada a respectiva citação edital, sem que tenha sido apresentada contestação.

O Estado Português, notificado do incidente de intervenção acessória deduzido, contestou, aderindo à contestação dos RR.

A massa falida, representada pelo seu actual liquidatário - Leonel Calheiros dos Santos, - notificada da contestação apresentada pelo Estado Português, replicou e ampliou o pedido, de modo a nele incluir o cancelamento do registo de aquisição, pugnando pela procedência da acção.

Foram entretanto habilitados como herdeiros do interveniente acessório Moisés Levy Bendráo Ayash, Ilda Eduarda Lopes Silva Ayash e Jaime Giro Ayash, prosseguindo estes autos com estes sucessores/habilitados na posição que era ocupada pelo falecido.

Finda a audiência, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.

2 - Inconformada, apelou a A./massa falida, tendo a Relação julgado procedente o recurso, considerando improcedente a excepção de abuso de direito e revogando a sentença recorrida, em função do que:

a) declarou a ineficaz em relação à A. a venda titulada pela escritura pública de compra e venda, realizada em 28/06/2001 no 4.º Cartório Notarial de Lisboa, que teve por objecto o prédio rústico descrito no n.º 2 da exposição da matéria de facto e em que a 1.ª Ré outorgou invocando a qualidade que não tinha de encarregada da venda;

b) condenou os 2os RR. a restituir o prédio em causa à A. livre e desocupado de pessoas e bens;

c) ordenou o cancelamento da inscrição da propriedade dos AA concretizada pela inscrição G-l e ficha n000437/250604 da conservatória do Registo Predial de Coruche (Ap. 16/250604);

As instâncias fixaram o seguinte quadro factual, subjacente ao litígio:

1 - Vítor Manuel Ribeiro Gonçalves Moço foi declarado falido por sentença proferida em 23 de Outubro de 1992 proferida nos autos apensos e transitada em julgado.

2 - Para a massa falida de Vítor Manuel Ribeiro Gonçalves Moço foi apreendido, entre outros, identificado como verba n.º 1, o prédio rústico, sito em Foros da Branca Pelados, com a área de 16,975 há, inscrito na matriz sob o artigo 18 da Secção BC e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche, sob a ficha n.º 02982 da freguesia de Coruche.

3 - No apenso da liquidação da massa falida o seu administrador -Moisés Ayash - foi encarregado, por despacho proferido a fls. 696 deste apenso de proceder à venda dos bens que a integravam por negociação particular.

4 - Este administrador foi autorizado no mesmo despacho a ser coadjuvado na venda dos bens por uma agência de leilões especializada, a 1.ª ré "Bairro Azul - Agência de Leilões, Lda.".

5 - Como coadjuvante do administrador e por encargo deste a 1.ª ré realizou um leilão particular dos bens que integravam a massa falida em 24 de Novembro de 2000, como acto integrante da negociação particular e no sentido de se encontrar, para esses bens, o melhor preço.

6 - Nesse leilão, esteve presente o administrador da falência.

7 - Nesse leilão foi objecto de licitações o prédio urbano apreendido sob a verba n.º 1, identificado em 2.

8 - A maior licitação para aquisição deste bem foi feita por Leonel Pedro, 2.º réu, que ofereceu 40.500.000$00 (quarenta milhões e quinhentos mil escudos).

9 - Por despacho proferido a fls. 672 do apenso de liquidação do activo, o administrador foi autorizado a adjudicar os imóveis pelas ofertas mais elevadas obtidas no leilão realizado.

10 - Na sequência desta autorização o administrador da falência deu instruções à 1.ª ré "Bairro Azul, Lda." para que fosse preparando a escritura, trabalho que envolvia a recolha de toda a documentação necessária juntos dos serviços públicos, contactos com o promitente comprador e marcação da escritura no notário.

11 - O administrador da falência requereu nos autos de liquidação do activo a passagem de certidões judiciais para outorga das escrituras de compra e venda dos imóveis apreendidos, tendo sido emitida, designadamente, a que consta de fls. 77-78, nos termos da qual é escrito o seguinte, após breve resenha dos autos de falência n.º 752/92, do 2.º Juízo Cível, do Tribunal da Comarca de Santarém: "É quanto me cumpre certificar em face do que consta nos mencionados autos aos quais me reporto em caso de dúvida e do que me foi ordenado, destinando-se a presente certidão a outorgar a escritura de venda dos prédios a seguir indicados, pela encarregada da venda nomeada nos autos "BAIRRO AZUL -Agência de Leilões, Lda.»: (.)

6.º - Prédio rústico, inscrito na matriz sob o artº 18 da Secção BC e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coruche sob a ficha n.º 02982 da freguesia de Coruche. (.) Santarém, 06 de Fevereiro de 2001".

12 - Em faxes enviados pelo administrador da falência à 1.ª ré, datados de 25 de Junho de 2002, 28 de Junho de 2002, 27 de Julho de 2002, 23 de Outubro de 2002 e 15 de Janeiro de 2003, aquele insistia para que a 1.ª ré diligenciasse no sentido de obter toda a documentação necessária e marcasse a data da escritura de compra e venda no Cartório Notarial.

13 - A estes faxes a 1.ª ré respondeu dizendo ainda não ter marcado a escritura em causa por falta de documentos ou disponibilidade do comprador.

14 - Iam sendo realizadas outras escrituras dos imóveis apreendidos.

15 - Em faxes datados em 5 de Fevereiro de 2003, 6 de Março de 2003, 28 de Maio de 2003, 5 de Junho de 2003, 18 de Junho de 2003 e 26 de Junho de 2003 o administrador intimou a 1.ª ré a proceder à convocatória imediata das escrituras em falta.

16 - Em faxes datados de 23 de Maio de 2003 e 26 de Junho de 2003 a 1.ª ré respondeu justificando a não realização da escritura com a dificuldade de obtenção de documentos necessários e com as dificuldades financeiras do comprador, anunciando que a escritura teria lugar em 11 de Julho de 2003.

17 - A escritura pública de compra e venda do imóvel apreendido sob a verba n.º 1, não se realizou no dia 11 de Julho de 2003.

18 - Por escritura pública realizada em 28 de Junho de 2001 no 4.º Cartório Notarial de Lisboa, perante o Licenciado Carlos Henrique Ribeiro Melon, Notário do cartório, aqui 3.º réu, o réu Leonel Pedro já havia adquirido para si e sua mulher, a 2.ª Ré mulher, com quem era casado em comunhão geral de bens, o prédio rústico identificado em 2.

19 - Na referida escritura de compra e venda consta que a 1.ª ré tinha a qualidade de mandatária judicial e que fora encarregue de proceder à venda.

20 - A autora nunca recebeu o preço de 40.500.000$00 (quarenta milhões e quinhentos mil escudos = (euro)202.013,15) que da escritura consta como pago pelo 2.º réu Leonel Pedro à 1.ª ré "Bairro Azul Lda.".

21 - Além do valor do prédio o réu Leonel Pedro pagou (euro)159,73 de registo, (euro)2.368,04 (474.750$00), de escritura e (euro)16.161,05 de imposto municipal de sisa.

22 - O réu Leonel...

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