Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2024
Data de publicação | 09 Maio 2024 |
ELI | https://data.dre.pt/eli/acstj/5/2024/05/09/p/dre/pt/html |
Número da edição | 90 |
Seção | Serie I |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
1/39
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2024
09-05-2024
N.º 90
1.ª série
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2024
Sumário:
Recurso Fixação de Jurisprudência
Processo: 1105/18.7T9PNF.P1-A.S1
Acordam no Pleno das Seções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
I—RELATÓRIO
Do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência
1 — O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal da Relação do Porto interpôs Recurso Extraordinário
de Fixação de Jurisprudência, nos termos dos arts.os 437.º e seguintes do Código de Processo Penal
(CPP), para o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, do Acórdão do Tribunal da
Relação do Porto (TRP), proferido em 19/01/2022 (acórdão recorrido), considerando que, no domínio
da mesma legislação, se encontra em oposição com outro aresto daquela mesma Relação, proferido
em 10/12/2019, 4.ª Secção, no Processo n.º 282/18.1T9PRD (acórdão fundamento), disponível em
www.dgsi.pt.
O Ministério Público afirma que os acórdãos recorrido e fundamento adoptaram soluções opostas na
resolução da mesma questão de direito, que se lhes deparara e que directamente respeita ao artigo 111.º
do Código Penal: trata-se do modo de conjugar a declaração judicial de perda das vantagens derivadas
do crime com a indemnização civil atribuível ao ofendido.
os arestos em
confronto resolveram a sobredita questão jurídica fundamental mediante a enunciação de proposições
jurídicas mutuamente contrárias e facilmente deles extraíveis.
Assim, o acórdão recorrido disse que as vantagens do crime, se consideradas na indemnização
atribuída à vítima (que não seja o Estado), não são perdíveis a favor do Estado. Enquanto o acórdão
fundamento disse que as vantagens do crime, se consideradas na indemnização atribuída à vítima (que
não seja o Estadoão perdíveis a favor do Estado.
Em suma: os dois julgados decidiram a mesma questão fundamental de direito em sentidos
logicamente contrários, ou seja, opostos. Pelo que o presente recurso está em condições de prosse-
guir—artigo441.º, n.º1, do CPP.
2/39
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2024
09-05-2024
N.º 90
1.ª série
2 — Notificados os sujeitos processuais interessados, nos termos do disposto no artigo 442.º,
n.º 1, do CPP, apresentarem alegações escritas às quais se expurgaram as notas de rodapé, dizendo,
em síntese, o seguinte:
A. O MP, junto do STJ — nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código de Processo Penal — ter-
minando por dizer que “Nos termos do artigo 111.º, n.
os
2 e 4, do Código Penal (na redação da Lei
n.º 32/2010, de 2 de setembro), há lugar à declaração de confisco ou de perda das vantagens que
tiverem sido adquiridas, para si ou para outrem, pelo agente através do crime, independentemente de
as mesmas integrarem, ou não, a indemnização civil arbitrada ao respetivo lesado ou do interesse, ou
desinteresse, por este manifestado na reparação dos prejuízos sofridos.”, citando extensa jurisprudência,
essencialmente alegou: “[...] JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, a respeito do artigo 109.º do Código Penal
de 1982, ensina que «[a] distinção de um regime da perda relativa a instrumentos e produto, por um lado
[artigo 107.º do Código Penal de 1982], e a vantagens, por outro, justifica-se amplamente. Desde logo
(e sobretudo) porque é diferente, num caso e noutro, o fundamento político-criminal do regime, se bem
que ambos assentem — como não poderia deixar de ser dada a sua natureza de instrumentos sancio-
natórios de caráter criminal — em considerações de prevenção. Nos instrumentos e produto está em
causa a perigosidade imediata, resultante da sua adequação para a prática de crimes. Nas vantagens,
diversamente, o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em
globo, ligado à ideia — antiga, mas nem por isso menos prezável — de que «o ‘crime’ não compensa».
Ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do facto-ilícito (prevenção especial ou
individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que
neste último aspeto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma
(prevenção geral positiva ou de integração).»
Ainda segundo JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, o regime da perda de vantagens deve ser consi-
derado «uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança.
Análoga, pelo menos, no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes,
mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é sempre e em
qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta
instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não atuado com culpa.»
Quanto à indemnização civil.
Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição
legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resul-
tantes da violação (artigo483.º, n.º1, do Código Civil), o que significa que deve reconstituir a situação
que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562.º do Código Civil).
Este princípio aplica-se à indemnização de perdas e danos emergentes de crime (artigo 129.º do
Código Penal), cujo pedido deve ser deduzido no processo penal respetivo (artigo 71.º do Código de
Processo Penal), ou, em situações contadas, em separado, perante o tribunal civil (artigo 72.º do Código
de Processo Penal), pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo
crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente (artigo 74.º, n.º 1, do
Código de Processo Penal), sendo certo que, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no
processo penal ou em separado, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título
de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham
(artigo 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Um determinado comportamento criminoso pode, assim, causar danos a terceiros [e dar azo à con-
denação, no processo penal (a pedido do lesado ou oficiosamente) ou em separado, no pagamento
de uma indemnização civil] e, simultaneamente, proporcionar vantagens e proveitos patrimoniais para
o agente, nomeadamente, um aumento do ativo, uma diminuição do passivo, o uso ou consumo de
coisas ou direitos alheios, a poupança ou supressão de despesas, «isto é, tudo o que signifique um
enriquecimento patrimonial do visado», incluindo «os juros, os lucros e outros benefícios [...] obtidos
mediante a rentabilização da vantagem inicial».
Agora, em tais hipóteses, pode o agente ser condenado na perda das vantagens a favor do Estado
[ou no pagamento do sucedâneo das vantagens (artigos111.º, n.º3, do Código Penalu no pagamento
3/39
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2024
09-05-2024
N.º 90
1.ª série
do respetivo valor ao Estado caso as mesmas não possam ser apropriadas em espécie (artigo111.º,
n.º4, do Código Penal)] e no pagamento da indemnização civil ao lesado?
A resposta só pode ser afirmativa.
Na verdade, os termos categóricos em que se encontram redigidos os n.os1 e 2 do artigo111.º do
Código Penal apontam incondicionalmente para o decretamento obrigatório do confisco:
A recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico é perdida a favor do
Estado (n.º1);
As coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos,
para si ou para outrem, pelos agentes são também perdidos a favor do Estado (n.º2).
É certo que a perda deve ocorrer sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé
(artigo111.º, n.º2, do Código Penal).
Nessa parte, porém, o preceito deve ser conjugado com o artigo130.º do Código Penal…
Parafraseando novamente JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «[à] primeira vista, a consagração da
perda de vantagens como providência de carácter criminal pode parecer absurda: em princípio, com
efeito, ela resulta automaticamente das regras da responsabilidade civil (nomeadamente, sob a forma
da restituição em espécie). A providência justifica-se, no entanto, de um duplo ponto de vista. Por uma
parte, o lesado pode prescindir da reparação, não apresentando o respetivo pedido; caso em que as
finalidades de prevenção, geral e especial, acima apontadas dão fundamento autónomo ao decreta-
mento da perda. Por outra parte, casos haverá em que as vantagens vão além daquilo em que a vítima
foi prejudicada. Suscita-se, nestas hipóteses, o problema de saber até onde deverá a perda das van-
tagens ser decretada . Mas seja como for quanto a este ponto, também aqui há lugar e justificação
autónomos para a perda. Sem deixar de reconhecer-se, em todo o caso, que, sempre que tenha havido
pedido civil conexo com o processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda de vantagens
poderá vir a ser decretada utilmente»
Como ainda há não muito tempo se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, «[a] perda de
vantagens tem em vista, primordialmente, uma perigosidade em abstrato, um propósito de prevenção
da criminalidade em geral. A perda de vantagens procura demonstrar que o crime não compensa; na
sua base está a necessidade de retirar ao arguido os benefícios resultantes ou alcançados através do
facto ilícito típico.
Tal como a perda de instrumentos e produtos do crime, também a perda de vantagens vem sendo
definida, maioritariamente, no que respeita à sua natureza jurídica, como uma “providência sancionatória
de natureza análoga à da medida de segurança”.
O pedido de indemnização não é uma espécie de questão prejudicial que impeça o confisco prévio
dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime.
Ou seja, a declaração de perda de vantagens é independente do pedido de indemnização civil e do
interesse ou não do lesado na reparação do seu prejuízo.
O art. 130.º do Código Penal, particularmente do seu n.º 2, ao estabelecer que “Nos casos não
cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode atribuir ao lesado, a reque-
rimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados
perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente
ou a receita gerada pela venda dos mesmos”, consagra a preferência da perda de bens sobre o pedido
de indemnização, além de salvaguardar o direito dos lesados, que poderiam ver dificultada a execução
dos bens do arguido em face da declaração do confisco.
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO