Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2013, de 12 de Março de 2013

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2013 Processo n.º 335/12 Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional: I. Relatório 1. O Provedor de Justiça veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea

d), da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucio- nalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º, n.º 2, do Decreto -Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro, na parte em que, com a salvaguarda devida à si- tuação dos nacionais de outros Estados membros da União Europeia, bem como do disposto em convenções ou outros instrumentos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional, reserva a cidadãos portugueses o pedido de inscrição marítima, imprescindível para o exercício de atividade profissional descrita no artigo 2.º, n.º 1, do mesmo diploma, por violação das normas constantes dos artigos 15.º, n. os 1 e 2, 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, al.

b), todos da Constituição, com os seguintes fundamentos: «1. Invocando a sua competência legislativa em maté- rias não reservadas à Assembleia da República, prevista no artigo 198.º, n.º 1, alínea

a), da Lei Fundamental, o Governo aprovou o Decreto -Lei n.º 280/2001, de 23 de outubro (diploma alterado, por último, pelo Decreto -Lei n.º 226/2007, de 31 de maio). 2. O referido decreto -lei «estabelece as normas re- guladoras da atividade profissional dos marítimos, incluindo as relativas: à sua inscrição marítima e à emissão de cédulas marítimas; à sua aptidão física; classificação, categorias e requisitos de acesso e fun- ções a desempenhar; à sua formação e certificação, reconhecimento de certificados, recrutamento e regimes de embarque e de desembarque e à lotação de segu- rança das embarcações» (artigo 1.º, n.º 1, do diploma em apreço). 3. Nos termos do n.º 2 do normativo acabado de citar, a atividade profissional dos marítimos, objeto de regula- ção pelo Decreto -Lei n.º 280/2001, «é exercida a bordo das embarcações de comércio, de pesca, rebocadores, de investigação, auxiliares e outras do Estado». 4. O corpo legislativo assim edificado em tomo da profissão marítima assume -se, conforme vem expresso no preâmbulo do diploma em causa, alinhado com os compromissos decorrentes da regulação internacional na matéria, adotada sob a égide da Organização Marí- tima Internacional e da União Europeia, nomeadamente quanto às exigências de formação mínima, tempo de embarque, compartimentação e funções das categorias do pessoal marítimo. 5. Com referência à sistemática do Decreto -Lei n.º 280/2001, a norma impugnada insere -se na Secção 1 do Capítulo II, este sob a epígrafe “Inscrição marí- tima e cédula de inscrição marítima”, aquela Secção especificamente versando sobre a matéria da inscrição marítima. 6. Nestes termos, a inscrição marítima «é o ato exi- gível aos indivíduos de ambos os sexos que pretendam exercer, como tripulantes, as funções correspondentes às categorias dos marítimos ou outras funções legalmente previstas», segundo o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do diploma governamental em apreço. 7. Devendo a inscrição marítima ser requerida junto dos «órgãos locais do Sistema de Autoridade Marí- tima (SAM) competentes», os indivíduos que a efetuem «tomam a designação de “inscritos marítimos” ou, abreviadamente, de “marítimos”» (artigos 4.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, respetivamente. do Decreto -Lei n.º 280/2001). 8. Por seu turno, o exercício da atividade profis- sional dos marítimos apenas se encontra franqueada aos «inscritos marítimos habilitados com as respetivas qualificações profissionais e detentores dos respetivos certificados», conforme estatui o n.º 2 do artigo 3.º do mesmo diploma. 9. Neste enquadramento, dispõe o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto -Lei n.º 280/2001 [sob a epígrafe “Pedido de inscrição marítima”] o seguinte: “Podem requerer a inscrição marítima os indivíduos maiores de 16 anos de nacionalidade portuguesa ou de um país membro da União Europeia, sem prejuízo do disposto em convenções ou em outros instrumen- tos internacionais em vigor no ordenamento jurídico nacional”. I. Da violação do princípio da equiparação 10. Em face do exposto e no que sobressai para o presente pedido, resulta da parte relevante do preceito acabado de citar que, salvaguardado o círculo dos na- cionais dos Estados membros da União Europeia, bem como excecionados os casos que possam estar abran- gidos pelas situações previstas no segmento final da mesma norma, o pedido de inscrição marítima encontra- -se reservado a cidadãos portugueses. 11. A valoração, nestes termos, do critério da naciona- lidade no quadro do direito de ingresso numa atividade profissional, como a atividade dos marítimos, remete para a temática do estatuto constitucional dos estran- geiros e apátridas e para a consideração, nesta sede, do princípio da equiparação, por força do qual, na ordem jurídica nacional e salvaguardadas admitidas exceções, o gozo de direitos e a sujeição a deveres não dependem da cidadania portuguesa. 12. Com efeito, a questão do reconhecimento de di- reitos a estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal vem tratada no artigo 15.º da Cons- tituição, preceito que acolhe, como é unanimemente aceite, a dimensão universalista e de amizade para com os direitos humanos que nutre o texto constitucional e, desde logo, também refletida nos princípios da univer- salidade e da igualdade que enformam o regime jurídico- -constitucional dos direitos fundamentais (artigos 12.º e 13.º da Constituição). 13. Na doutrina constitucional, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que «[o] preceito do n.º 1 [do mencionado artigo 15.º] inscreve -se na orientação mais avançada quanto ao reconhecimento de direitos funda- mentais a estrangeiros e apátridas que se encontrem ou sejam residentes em Portugal» (in Constituição da Re- pública Portuguesa Anotada, Vol. 1, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 356). 14. No comentário dos mesmos Autores, «[a] Cons- tituição, salvo as exceções do n.º 2, não faz depender da cidadania portuguesa o gozo dos direitos fundamen- tais bem como a sujeição aos deveres fundamentais.

O princípio é a equiparação dos estrangeiros e apátridas com os cidadãos portugueses. [...] É o que se chama tratamento nacional, isto é, um tratamento pelo menos tão favorável como o concedido ao cidadão do país, designadamente no que respeita a um certo número de direitos fundamentais» (ibid., pp. 356 -357). 15. Não revestindo o princípio da equiparação na- tureza absoluta, é a própria Constituição que estabe- lece, no n.º 2 do artigo 15.º, exceções ao princípio em causa, as quais podem agrupar -se nos seguintes moldes: (a) direitos políticos; (b) exercício das funções públicas que não tenham caráter predominantemente técnico; (c) outros direitos e deveres reservados pela Constitui- ção exclusivamente a cidadãos portugueses; (d) direitos e deveres reservados pela lei exclusivamente a cidadãos portugueses. 16. Com relevo para a situação de tratamento ini- gualitário aqui em causa, importa atender a esta última exceção, i. e., à possibilidade que o legislador tem de reservar determinados direitos a cidadãos nacionais ou, de outro modo dito, à reserva de lei restritiva ex- pressamente consagrada pelo legislador constituinte na matéria em apreço. 17. A este propósito, recordo que J.J. Gomes Ca- notilho e Vital Moreira, ainda nas suas anotações ao artigo 15.º da Constituição (ibid., p. 358), balizam o exercício de um tal poder de determinação legislativa de exceções ao princípio da equiparação, mediante o recurso à fórmula seguinte: A lei não é livre no estabelecimento de outras ex- clusões de direitos aos estrangeiros.

Sendo a equipa- ração a regra, todas as exceções têm de ser justifi- cadas e limitadas devendo observar os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade quanto à restrição de direitos constitucionais, positivados na Constituição, ou legais, consagrados em lei ordinária (cf.

Ac.

TC n.º 345/02). Aliás, as exceções só podem ser determinadas através da lei formal da AR [artigo 165.º, n.º 1, al.b)], ela mesmo heteronomamente vinculada aos princípios consagrados neste artigo (sublinhados aditados). 18. Em similar linha discursiva se situa Jorge Miranda (in MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1, Coimbra: Coimbra Edi- tora, 2005, p. 133), para quem o princípio da equipara- ção de direitos se aplica «aí onde não sejam decretadas expressamente exclusões ou restrições de direitos dos estrangeiros e estas não podem ser tais (ou tantas) que invertam o princípio», acrescentando: [...] Só quando haja um fundamento racional pode um direito atribuído a portugueses ser negado a es- trangeiros [...]. Por outra banda, as exclusões (ou as reservas de direitos aos portugueses) só podem dar -se por via da Constituição ou da lei.

Quando não seja a Constituição a estipulá -las, tem de ser a lei, e lei formal; [...] donde, uma verdadeira reserva de lei, que é também uma reserva de competência da Assembleia da República quando se trate de direitos, liberdades e garantias [artigo 165.º, n.º 1, alínea

b)]. 19. Também em sintonia com a doutrina vertida, a jurisprudência constitucional vislumbra no artigo 15.º da Constituição «o módulo constitucional específico da igualdade de direitos entre os cidadãos portugue- ses e os demais» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 345/2002). 20. Assim, com suporte no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/2002, é possível retirar dessa ju- risprudência, conforme ficou expresso no citado Acór- dão, «as seguintes ideias centrais, que não se vê razão para abandonar: — O artigo 15.º, n.º 1 da Constituição, garantindo aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou resi- dam em Portugal os direitos e deveres do cidadão por- tuguês, consagra o princípio do tratamento nacional; — Embora a Constituição consinta que a lei reserve certos direitos exclusivamente aos cidadãos portuguesas (artigo 15.º, n.º 2...

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