Acórdão nº 692/22.0KRMTS-A.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 03 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelCLÁUDIA RODRIGUES
Data da Resolução03 de Maio de 2023
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Proc. nº 692/22.0TKRMTS-A.P1 SUMÁRIO: …………………………………… …………………………………… …………………………………… Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:* 1. RELATÓRIO No âmbito dos autos de inquérito que, sob o nº 692/22.0TKRMTS correm termos pelo DIAP – 4ª Secção de Matosinhos, foram em 05.12.2022 e 22.12.2022 proferidos pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal de Matosinhos (J1), do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, os seguintes despachos (transcrição): Despacho de 05.12.2022: “Com todo o respeito por diferente entendimento, o Ministério Público é autoridade judiciária competente para providenciar a inquirição dos menores na fase de inquérito, nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas, nos termos dos artigos 26º e 27º da Lei n.° 93/99, de 14 de Julho.

Assim, não se verificando as circunstâncias previstas no artigo 271º, nº 1, do Código de Processo Penal, indefere-se a requerida tomada de declarações para memória futura aos menores AA e BB.

Relativamente à menor CC, nascida em .../.../2011, desconhecemos se ela pretende prestações num inquérito criminal contra o pai, questão que se nos afigura importante apurar nos termos do artigo 5º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro.

Não se mostra efectuada a avaliação individual da menor prevista no artigo 21º do Estatuto da Vitima.

Acresce que a literatura da especialidade recomenda que o perito seja das primeiras pessoas a entrevistar os menores por forma a evitar efeitos indesejáveis de uma primeira abordagem por técnico não especializado, nomeadamente o risco de viciação do seu relato ou implantação de falsas memórias em resultado de uma abordagem inadequada ou sugestiva dos factos em investigação.

Nestas circunstâncias, à luz dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, abstemo-nos de determinar a tomada de declarações à menor CC, sem prejuízo de ulterior melhor apreciação se for caso disso.

Notifique o Ministério Público e devolva os autos ao DIA para os fins tidos por convenientes.

Despacho recorrido (de 22.12.2022) “Da reclamação do nosso despacho de 05-12-2022: A Digna Magistrada do Ministério Público veio reclamar do despacho judicial de fls. 45.

Alegou o que melhor consta de fls. 47 a 48, fazendo alusão a necessidades específicas de proteção das vítimas.

Cumpre-nos apreciar: Em princípio, a proteção das vítimas crianças pode e deve ser assegurada em primeira linha pelas entidades com competência em matéria de infância e juventude, nos termos previstos nomeadamente nos artigos 65º e seguintes da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, não resultando dos autos qualquer indicação de que essa proteção esteja em falta ou seja insuficiente.

Em segundo lugar, o Ministério Público é a autoridade judiciária com competência natural para essa protecção, quer no domínio daquele diploma legal, quer na atual fase de inquérito, como resulta nomeadamente dos artigos 26º e 27.º da Lei nº 93/99, de 14 de Julho.

Todas as vítimas crianças têm o direito de ser ouvidas, em todas as fases do processo penal, designadamente pelas autoridades judiciárias que possam tomar qualquer decisão que pessoalmente as afecte, com respeito integral pela autonomia da sua vontade e pelos seus direitos.

Essa audição pode ser efetuada pelo Ministério Público, tendo em conta o contexto que os autos indiciam e a fase embrionária da investigação.

No nosso ponto de vista, com base na informação neste momento disponível, não será do superior interesse da criança prestar declarações sobre factos da sua intimidade e vida privada (uma alegada importunação sexual) perante um colectivo integrado por um juiz de instrução, uma Procuradora da República, uma técnica especialmente habilitada para o seu acompanhamento, um defensor do arguido, um patrono oficioso ou mais.

Entendemos também que a prestação antecipada de depoimento deve ocorrer com observância das garantias de defesa e do princípio do contraditório, para que possa ser valorada em audiência de julgamento, o que não se verifica no caso dos presentes autos, em que não existe ainda arguido constituído nos autos.

A Digna Magistrada do Ministério Público promoveu ainda o registo áudio e de imagem do depoimento das crianças.

No entanto, os meios para tal registo, recentemente instalados no edifício deste tribunal, ainda não se encontram em funcionamento por razões que nos transcendem.

Por outro lado, também não sabemos se os menores, ou a sua representante legal, consentem na gravação e no registo vídeo das suas declarações e imagens.

A falta desse registo pode prejudicar a apreciação da prova, atendendo nomeadamente as descrições, existentes na literatura, da importância dos sinais de comunicação não verbal, com risco de grave prejuízo para a actividade do Tribunal, para as garantias de defesa e para a realização da Justiça Por tudo o exposto, considerando as competências próprias do Ministério Público para dirigir o inquérito pela forma que considerar mais conveniente, indefere-se a requerida tomada de declarações para memória futura aos menores CC, AA e BB, considerando, nomeadamente, a dignidade e os direitos das crianças. os princípios da autonomia da vontade e do consentimento destas crianças, os direitos e garantias de defesa do suspeito, os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, e ainda o disposto nos artigos 1º, nº 1, 2º, 16.°, 18.0, 20º, 26º e 32.° da Constituição, dos artigos , , , 21º e 24º, nº 1, do Estatuto da Vitima, e do artigo 271.° do Código de Processo Penal.

Notifique o Ministério Público e devolva.” Inconformado com o despacho de 22.12.2022, o Ministério Público do mesmo interpôs recurso, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos ínsitos na respectiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem: 1º) No douto despacho em crise o Mmo Juiz a quo não atendeu a que, em face da gravidade dos factos indiciados e da especial vulnerabilidade cas vitimas, é de todo o interesse colher, com a máxima urgência possível, o depoimento cabal dos menores quanto a todos os factos, designadamente os que constituem maus tratos e ofensas sexuais.

  1. ) Mais ignorou o ascendente que o denunciado tem sobre as vítimas, e que certamente continuará a ter, o qual resulta plasmado no próprio teor do relato efetuado pela menor CC à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens.

  2. ) É por demais evidente a vulnerabilidade destas vítimas, quer peto facto de serem menores, quer pela circunstância de o seu agressor ser o próprio progenitor pelo que não podemos deixar de concluir pela necessidade de acautelar o valor probatório futuro das suas declarações, de acordo com a natureza pública e a gravidade dos crime-? em causa.

  3. ) As declarações para memória futura são um instrumento jurídico que visa a antecipada recolha de declarações das vítimas a fim de que, sendo necessário, as mesmas sejam tomadas em conta no julgamento, por forma a salvaguardar os direitos e interesses das vítimas, bem como a precaver a recolha e conservação da prova, tão fundamental nestes casos.

  4. ) Assim, a prestação de declarações para memória futura constitui também um direito das vítimas, por forma a evitar a sua revitimização.

  5. ) O artº 271°, n° 2, do CPP determina a obrigatoriedade de audição, em declarações para memória futura, da vítima menor, quando esteja em causa crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor e desde que a vítima não seja ainda maior de idade, o que se verifica no caso vertente em relação à menor CC.

  6. ) Embora o art° 33° da Lei n° 112/2009, de 16 de setembro, atribua ao juiz o poder de decidir quanto à recolha das declarações da vítima para memória futura na fase de inquérito, tal poder não pode ser exercido arbitrariamente.

  7. ) O art° 33° da Lei n° 112/2009, de 16 de setembro, haverá de ser interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a tomada de declarações para memória futura, até como exercício do dever de proteção à vítima plasmado no art. 20º, n° 2, da Lei n° 112/2009, só assim não se procedendo quando, objetiva e manifestamente, se revele total desnecessidade e manifesta, irrelevância na recolha antecipada de prova.

  8. ) nos crimes contra a autodeterminação sexual de menor e de violência doméstica, a prestação de declarações para memória futura radica numa opção do ordenamento jurídico pela proteção da vítima, justificada pela sua especial vulnerabilidade, e visa, no quadro das recomendações do direito europeu sobre a matéria, mitigar o efeito de vitimização secundária que a repetição das inquirições inevitavelmente comporta.

  9. ) A manifesta gravidade dos factos...

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