Acórdão nº 791/16.7PBLRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 22 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelCRISTINA BRANCO
Data da Resolução22 de Março de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Relatora: Cristina Pego Branco 1.º Adjunta: Alexandra Guiné 2.º Adjunta: Ana Carolina Cardoso * … I. Relatório 1. … foram submetidos a julgamento os arguidos AA … e BB … pela prática, cada um, em autoria material, de um crime de extorsão, p. e p. pelo art. 223.º, n.º 1, do CP.

2. Realizado o julgamento, no decurso do qual foi comunicada ao arguido AA uma alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, foi proferida sentença na qual foi decidido, para além do mais (transcrição): «A. Absolver AA da prática, no dia 29.07.2016, de um crime de extorsão p.p. pelo artigo 223.º, n.º 1, do Código Penal, mas, por convolação deste, B. Condenar AA pela prática, no dia 29.07.2016. em autoria material, na forma consumada, de um crime de coacção agravada p.p. pelos arts. 154.º n.º1 e 155.º n.º1, alínea a), por referência ao art. 131.º. todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; C. Suspender a execução da pena de prisão fixada pelo período de 2 (dois) anos.

  1. Condenar AA nas custas criminais, fixando a taxa de justiça em 3 UC (três unidades de conta).

    *** E. Absolver BB da prática, no dia 29.07.2016, de um crime de extorsão p.p. pelo artigo 223.º, n.º 1, do Código Penal.

  2. Sem custas processuais. (…)» 3. Inconformado com esta decisão, interpôs o arguido AA o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): «1 - Em primeiro lugar, importa referir que a imposição ao arguido, que se encontra concentrado na defesa contra uma acusação da prática do crime de extorsão, de um ónus processual de imediatamente ter de reagir contra o erro de qualificação cometido pelo tribunal sobre a natureza da nova imputação dos factos e respectiva subsunção jurídica que lhe é feita no decurso do julgamento, da qual decorre que passa a responder pelo crime de coação agravada, dificilmente se concilia com o reconhecimento de que o direito de defesa não pode deixar de demandar a disponibilidade de um tempo razoável de reflexão que permita exercê-lo de modo efectivo e eficaz, surgindo como um cerceamento manifestamente desproporcionado.

    … 3 - Em segundo lugar, não se vê razão suficiente para colocar o arguido, sem a sua concordância, em posição substancialmente diferente quanto à oportunidade do exercício do seu direito de defesa da que dispõe quando é notificado da acusação ou da pronúncia “originárias”, como decorre do entendimento do mesmo ser obrigado a reagir imediatamente contra o despacho de alteração do thema do processo prolatado pelo tribunal no decurso do julgamento, quando este importe uma alteração substancial da acusação ou da pronúncia.

    4 - Por outro lado, a comunicação feita pelo tribunal não poderá deixar de ser vista pelo prisma do princípio de processo penal de fair trial, ou seja, um processo leal, apanágio do processo penal de um Estado de direito (formulação acolhida do Acórdão n.º 394/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., II, págs. 1087 e segs.).

    5 - Assim sendo, não é de exigir que o arguido deva olhar, imediatamente, com desconfiança para a qualificação da alteração temática do processo, dado que a mesma é feita por um tribunal que deve agir com imparcialidade e independência e que está obrigado a respeitar o seu estatuto processual.

    6 - Nesta linha de pensamento, não só não é de impor ao arguido qualquer ónus de tomada imediata de posição quanto à correcção da qualificação da alteração feita, como se impõe concluir que, na medida em que implica um “encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa”, haverá que considerar-se constitucionalmente ilegítimo o entendimento normativo seguido pelo tribunal a quo.

    7 - Ademais, não poderá sem quaisquer reservas valorar-se como correspondendo ao seu acordo com a alteração substancial dos factos a circunstância de o arguido nada ter oposto imediatamente à comunicação.

    8 - É que, mesmo a sustentar-se … a possibilidade de formação de um acordo tácito, em caso de silêncio do arguido, não será de inferir esse sentido fora do quadro dos pressupostos constitutivos dos motivos determinantes da vontade: ora ao arguido foi comunicado que a alteração temática do processo tinha a natureza de não substancial, em contrário da natureza que lhe atribuiu a sentença recorrida.

    … 10 – Destarte, a comunicação ao arguido de que a alteração temática do processo tem a natureza de alteração não substancial quando, em boa verdade, ela tem a natureza de substancial corresponde a dar-lhe conhecimento de um estatuto substantivo diferente relativo à sua posição processual de arguido em uma tal situação, estatuto esse que comporta, mesmo à face do direito infraconstitucional, uma diminuição dos seus direitos de defesa e, consequentemente, não pode deixar de considerar-se como violado o n.º 1 do art.º 32º da CRP.

    … 4. O recurso foi admitido, por despacho de 01-06-2022 (Ref. Citius 100480491).

    5. O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, na qual conclui … não se não se encontra em violação com qualquer norma ou preceito legal ou constitucional, inclusive, o disposto no n.º 1, do artigo, 32º., da Constituição da República Portuguesa, em contrário do alegado pelo recorrente.

    … * II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso … a única questão colocada pelo recorrente prende-se com a sua condenação pela prática de um crime de coacção agravada, p. e p. pelos arts. 154.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), por referência ao art. 131.º, todos do CP, considerando que se verifica uma alteração substancial dos factos da acusação, em violação dos seus direitos de defesa e que deve ser revogada a decisão recorrida no que concerne à sua condenação pelo referido ilícito.

    * 2. Da decisão recorrida Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação que consta da sentença recorrida.

    A - Factos Provados 1. Em meados do ano de 2016, o arguido AA começou a reclamar junto do ofendido CC, o pagamento da quantia de 15.000 euros (quinze mil euros), alegando que este lhos devia, por causa de um negócio de importação de veículos usados, que correu mal.

    2. O arguido AA telefonou diversas vezes para o ofendido, reclamando o pagamento daquela quantia, e dizendo ao ofendido, que se não se encontrasse com ele para lhe pagar, "iria sofrer represálias".

    3. O ofendido negou-lhe a entrega do montante que aquele exigia.

    4. Como o arguido lhe dizia que se não lhe pagasse, a sua vida e a vida dos seus familiares estava em perigo, o ofendido, com receio do que o arguido pudesse fazer, em 29.07.2016, entregou ao arguido o cheque nº...16,, no valor de 4.000 euros, da conta bancária nº...01, sedeada no Banco BIC, titulada pela sociedade "L..., Lda.", da qual era legal representante.

    5. O arguido, por si ou por intermédio de outrém, foz apor o nome da arguida BB em "à ordem de" e apresentou-o a pagamento no balcão da C.G.D., em 01.08.2016, depositando-o na conta nº...00, titulada pela arguida BB, sedeada naquele banco.

    6. Em 03.08.2016, a arguida BB, dirigiu-se ao balcão da C.G.D. e levantou a quantia de 3.497,49 euros, daquela sua conta bancária, e entregou o dinheiro ao arguido AA.

    7. No dia 07.10.2016, o arguido AA, dirigiu-se às instalações da sociedade "L..., Lda.", situadas na Rua ..., em ..., ..., pretendendo que o ofendido lhe entregasse os 11.000 euros, que, em seu entendimento, ainda tinha por receber.

    8. Ali chegado, o arguido, movido de grande exaltação, interpelou o ofendido, e disse-lhe que "se não lhe desse o dinheiro, iria pagar bem caro, que as coisas não iriam ficar assim, que se tinha metido com o demónio".

    9. O arguido AA e o ofendido envolveram-se numa violenta discussão, que foi interrompida por DD, que se encontrava no local, e conseguiu conduzir o arguido AA para a rua.

    10. No decurso da discussão, o arguido AA, enfurecido, disse ao ofendido "que o matava, que sabia onde era a casa dele, e que conhecia as filhas dele!".

    11. O arguido AA saiu dali e dirigiu-se, de imediato, fazendo-se transportar no veículo de matrícula ..-QL-.. (de marca ... e modelo ..., para junto da residência do ofendido, situada na Rua ..., ..., ....

    12. Ali chegado, o arguido AA foi abordado por EE, sobrinho do ofendido, que ali se encontrava, e a quem o arguido disse, em tom irado, "que tinha estado no escritório do seu tio, e que tinha estado preso por causa do seu tio, e que ele iria pagar por isso, e que o seu tio tinha acabado de fazer a sua cova, onde se iria enterrar. Que o seu tio não sabia com quem se tinha metido!".

    13. Com medo que o arguido AA viesse a fazer mal à sua família, o ofendido, que estava convencido de que o arguido AA tinha armas de fogo na sua posse, pediu ajuda à G.N.R., cujos Militares de patrulha, se deslocaram ao local.

    14. O arguido AA, telefonou, por diversas vezes, para o ofendido, dizendo "Tu gostas muito da tua família, não gostas? Não sabes com quem é que te meteste, meteste-te com o demónio!", "Vou-te estragar a vida, não te vais ficar a rir".

    15. O arguido AA actuou com o único propósito de levar o ofendido a entregar-lhe dinheiro, fazendo-o acreditar que se não lhe entregasse as quantias de dinheiro que pretendia, iria atentar contra a sua integridade física e da sua família.

    16. O arguido AA conseguiu receber o dinheiro titulado pelo cheque que o ofendido lhe entregou, do qual se apossou e foz seu, causando ao ofendido o correspondente prejuízo patrimonial.

    17. O ofendido entregou o aludido cheque, ao arguido AA, receando que se não o fizesse, este poderia fazer-lhe mal, a si e à sua família, ademais que o arguido sabia onde residiam.

    18. O ofendido era contactado, quase diariamente, pelo arguido, e os telefonemas que recebeu fizeram-no sentir medo e receio pelo seu bem-estar e saúde, causando-lhe grande inquietação relativamente ao bem-estar da sua família.

    19. O arguido AA quis levar a cabo as descritas condutas, com o propósito de obter...

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