Acórdão nº 98/23 de Tribunal Constitucional (Port, 16 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução16 de Março de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 98/2023

Processo n.º 294/2022

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e o Centro de Competências Jurídicas do Estado, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal, datado de 22 dezembro de 2021, que recusou a aplicação das «normas constantes dos artigos 11.º, n.º 1, in fine e 25.º, n.º 4 do CPTA, resultantes das alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, e interpretadas no sentido de que nas ações instauradas contra o Estado Português nos Tribunais Administrativos o Ministério Público não é citado, ficando a sua intervenção processual dependente de solicitação pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado a quem compete coordenar essa intervenção, por violação do artigo 219.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição».

2. A., aqui recorrida, instaurou junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel uma ação administrativa comum contra o Estado Português e o Instituto da Segurança Social I.P., Cento Distrital do Porto.

2.1. O Tribunal promoveu a citação do Centro de Competências Jurídicas do Estado, nos termos previstos nos artigos 25.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos («CPTA»), que a transmitiu ao recorrente.

2.2. O Ministério Público, alegando agir «em nome próprio e como representante judiciário do Estado», arguiu junto do tribunal a quo «a inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do n.º 1 do art. 11.º e do n.º 4 do art. 25.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), na redação conferida pela Lei n.º 118/2019, por violação do disposto na primeira proposição do n.º 1 do art. 219.º da Constituição e no n.º 2 desta mesma disposição», e, uma vez que não fora citado, arguiu a nulidade por omissão da prática desse ato. Requereu ainda a anulação de todo processado posterior à petição inicial e a citação do Estado na pessoa do Magistrado do Ministério Público.

2.3. Apreciada a questão, o Tribunal a quo concluiu o seguinte:

«A. instaurou a presente ação contra o Estado Português e o Instituto da Segurança Social, IP.

Conforme resulta de fls. 118, a secretaria remeteu citação para o Centro de Competências Jurídicas do Estado.

A fls. 123 o Ministério Público junto deste Tribunal apresentou requerimento invocando a nulidade por falta de citação.

Vejamos.

[…]

A Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro introduziu no artigo 25. º do CPTA o n.º 4, com a seguinte redação:

4 - Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.

E esta norma que está na origem da nulidade invocada pelo EMMP no requerimento em análise.

A norma introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro prevê que quando seja demandado o Estado numa ação nos Tribunais Administrativos a citação seja dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado. A norma refere também que cabe a este Centro transmitir a ação aos serviços competentes e coordenar os termos da respetiva intervenção em juízo.

A mesma Lei também reformulou o artigo 11.º, n.º 1 do CPTA que passou a determinar o seguinte: nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.

O EMMP sustenta que a conjugação dos artigos 11. º, n.º 1 e 25. º, n.º 4 do CPTA, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, esvazia o essencial da função do Ministério Público nos Tribunais Administrativos enquanto representante do Estado, violando o parâmetro normativo consagrado no artigo 219.º, n.º 1 da CRP.

E afigura-se que lhe assiste razão.

A Constituição atribui ao Ministério Público a representação do Estado Português, a qual é exercida por uma magistratura dotada de autonomia face aos demais poderes públicos.

Ora, as alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro limitam o papel do Ministério Público no exercício da referida atribuição, colidindo com o paradigma constitucionalmente consagrado.

Efetivamente, o artigo 11. º, n.º 1 do CPTA, na redação da referida Lei, introduz uma alteração relevante ao nível do papel do Ministério Público nas ações instauradas contra o Estado. De acordo com a redação introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, a representação do Estado Português pelo Ministério Público deixa de ser obrigatória e passa a ser uma faculdade (sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público").

Esta alteração é acompanhada de uma outra, que é a introdução do n.º 4 do artigo 25.º do CPTA. Com esta alteração nas ações instaurados contra o Estado Português a citação do Estado deixa de ser efetuada através do Ministério Público, passando a ser efetuada “unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado”.

Da conjugação dos normativos em causa, percebe-se facilmente que o Centro de Competências Jurídicas do Estado, depois de citado, tem como incumbência a transmissão da ação aos serviços competentes e a coordenação da respetiva intervenção em juízo.

Ora, afigura-se que este mecanismo introduzido pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro viola as normas constitucionais a que já se fez referência relativas ao papel do Ministério Público na representação do Estado Português.

Em primeiro lugar, porque a intervenção do Ministério Público em representação do Estado passa a ser uma possibilidade, ficando à escolha do Centro de Competências Jurídicas do Estado comunicar ao Ministério Público a citação, bem como suscitar a sua intervenção.

Ora, este aspeto viola o artigo 219. º, n.º 1 da CRP, que impõe que o Estado Português seja representado pelo Ministério Público.

Embora esta norma efetivamente não determine que o Ministério Público detenha o monopólio de representação do Estado Português, trata- se de um princípio geral que tem que ser respeitado, não podendo uma alteração legislativa tornar a regra geral na representação do Estado Português numa atribuição opcional, arbitrariamente determinado pela vontade do Centro de Competências Jurídicas do Estado.

Repare-se que as alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro não definem em que situações o Estado será representado necessariamente pelo Ministério Público, determinando apenas o n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, genericamente, que cabe ao Centro de Competências Jurídicas do Estado não só a comunicação da citação aos serviços competentes como também a coordenação da intervenção, o que permite perceber que esse Centro poderá escolher aleatoriamente se haverá contestação, por quem e em que termos.

Em segundo lugar, porque se atribui ao Centro de Competências Jurídicas do Estado poderes de coordenação da intervenção a efetuar, o que significa que se subalterniza o magistrado do Ministério Público que, eventualmente, seja chamado a intervir em representação do Estado Português.

Ora, este aspeto viola o estatuto de autonomia do Ministério Público, consagrado no artigo 219.º, n.º 2 da CRP.

Repare-se que a atribuição de poderes da representação do Estado por uma magistratura autónoma revela uma opção constitucional clara de afastar a gestão da representação do Estado dos órgãos de soberania (artigo 110. º, n.º 1 da CRP), garantindo assim que nenhum dos órgãos de soberania possa por si só determinar a forma como os interesses do Estado são salvaguardados.

Este aspeto afigura-se de especial relevância nos Tribunais Administrativos e Fiscais em que a representação do Estado não poderá ficar refém de um dos órgãos de soberania, do Governo, dado não ter a equidistância necessária para representar, de forma autónoma, o Estado em ações judicial em que na grande maioria das vezes estão em causa situações que se prendem com atuações de órgãos do Governo (vejam-se ações de responsabilidade, bem como em matéria contratual), mas que também podem contender com atuações de outros órgãos de soberania (vejam-se as ações de responsabilidade por atuação legislativa ou judicial).

Ora, como decorre do artigo 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 149/2017, de 06 de dezembro, o Centro de Competências Jurídicas do Estado, integra-se na Presidência do Conselho de Ministros e está sujeito ao poder de direção do Primeiro-Ministro ou do membro do Governo em. quem aquele o delegar, com faculdade de subdelegação.

Deste modo, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, tal significa que passaria a ser uma entidade integrada na Presidência do Conselho de Ministros e sujeita ao poder de direção do Primeiro-Ministro a determinar nas ações judiciais instaurados contra o Estado quem iria intervir em defesa do Estado (o Ministério Público, um jurista ou um mandatário judicial), bem como coordenar essa intervenção.

Assim, afigura-se que assiste razão ao EMMP relativamente à inconstitucionalidade material invocada.

Ora, como resulta do disposto no artigo 204.º da CRPNos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.

Assim, tendo em conta que se recusará a aplicação das alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro...

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