Acórdão nº 1472/22.8T8STR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 16 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelFRANCISCO MATOS
Data da Resolução16 de Março de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

1472/22.8T8STR.E1 Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório 1. O Ministério Publico instaurou ação especial de acompanhamento de maiores em benefício de (…), nascida a 24/3/1930, residente no Centro de Repouso e Lazer (…), Rua da (…), (…), (…).

Alegou que a beneficiária apresenta antecedentes de demência vascular e hipertensão arterial e encontra-se totalmente dependente, sem discurso lógico, desorientada e sem capacidade para andar, assinar e tomar quaisquer decisões.

Assim, por razões de saúde física e mental da beneficiária, requereu a medida de acompanhamento de representação especial – retificada posteriormente para acompanhamento com representação geral – e a restrição dos direitos de testar, casar, perfilhar ou adotar e indicou (…), filha da beneficiária, para exercer as funções de acompanhante.

Verificada a impossibilidade da beneficiária receber a citação foi-lhe nomeado defensor oficioso.

Não houve lugar a contestação.

  1. Procedeu-se à audição pessoal da beneficiária e após a produção das provas julgadas convenientes seguiu-se decisão em cujo dispositivo designadamente se consignou: “(…) julga-se a presente ação procedente, por provada e, em consequência, decide-se: a) Determinar o acompanhamento de (…); b) Designar como acompanhante da Beneficiária (…), a quem competirá: - A representação geral da Beneficiária (…), incluindo a administração total dos seus bens; - Diligenciar para que a Beneficiária compareça às consultas médicas e hospitalares que sejam agendadas, tome a medicação prescrita e adequada à sua patologia e satisfaça as suas necessidades alimentares, de autocuidado, de vestuário e de higiene pessoal.

    1. Determinar a proibição do exercício dos direitos pessoais de casar, de constituir situações de união de facto, de procriar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades e de votar pela Beneficiária (…); d) Determinar a proibição de celebração de negócios da vida corrente pela Beneficiária (…); e) Determinar que as medidas de acompanhamento decretadas se tornaram convenientes a partir de 03/10/2019; f) Nomear (…), como primeira vogal e (…), como segundo vogal do Conselho de Família; g) Consignar que inexiste, em nome da Beneficiária, registo de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde; h) Determinar a revisão da presente decisão no prazo de 5 (cinco) anos, contados do trânsito em julgado da sentença.

  2. O Ministério Público recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso: “1. A douta sentença sob recurso decretou a proibição do direito de votar, ou seja, a perda de capacidade eleitoral da requerida.

  3. O direito ao sufrágio consubstancia um direito fundamental e universal, atribuído a todos os cidadãos maiores de dezoito anos.

  4. A Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, conferiu nova redação aos artigos relativos a incapacidades eleitorais ativas constantes das leis eleitorais do Presidente da República, da Assembleia da República, dos Órgãos das Autarquias Locais e do regime do referendo local, estabelecendo não gozarem de capacidade eleitoral ativa, apenas, “os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos” e “os cidadãos que estejam privados de direitos políticos, por decisão judicial transitada em julgado.”.

  5. Mais revogou a citada lei as alíneas que previam não gozarem de capacidade eleitoral os interditos por sentença com trânsito em julgado.

  6. A CNE concluiu mesmo que os cidadãos declarados interditos, à luz do regime anterior, deveriam constar novamente dos cadernos eleitorais, já que as variadas leis eleitorais não referem expressamente a situações de incapacidade decorrentes de decisão judicial em sede de direito civil.

  7. Pretendeu pois o legislador que não operasse a restrição da capacidade eleitoral decorrente de sentença proferida no âmbito de processo de acompanhamento de maior.

  8. A Lei 14/79, de 16 de maio, na redação na Lei Orgânica n.º 1/2021, de 04 de junho, refere na sua alínea b) do n.º 1, artigo 2.º, que não gozam de capacidade eleitoral ativa, aqueles que notoriamente apresentem limitações ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos.

  9. A requerida não foi internada em estabelecimento psiquiátrico.

  10. Não houve lugar a declaração por uma junta de dois médicos relativamente a limitação ou alteração grave das funções mentais da requerida.

  11. O Tribunal a quo interpretou a norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 14/79 no sentido de permitir que se determinasse a perda de capacidade eleitoral ativa a um maior acompanhado, mesmo sem estar internado em estabelecimento psiquiátrico ou como tal declarada por uma junta de dois médicos.

  12. O Tribunal recorrido deveria ao invés, interpretar a norma no sentido de não ser permitido decretar a perda de capacidade eleitoral ativa, por sentença, a um maior acompanhado, sem que estivesse internado em estabelecimento psiquiátrico ou como tal declarado por uma junta de dois médicos.

  13. Pelo exposto, violou a sentença, a decretar a perda de capacidade eleitoral ativa da requerida, o disposto no artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio.

  14. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência operou uma mudança de paradigma, através da qual se reconhece a dignidade inerente a todas as pessoas com deficiência, bem como se reconhecem as pessoas com deficiência como sujeitos do direito.

  15. A Convenção visa promover as condições e os meios necessários para garantir o acesso e exercício dos direitos humanos, bem como assegurar a participação ativa das pessoas com deficiências em todas as decisões e processos que lhe respeitam.

  16. Do artigo 29.º da Convenção decorre a obrigação dos Estados partes garantirem às pessoas com deficiência os direitos políticos e a oportunidade de os gozarem, em condições de igualdade com as demais pessoas, comprometendo-se, mormente a assegurar o direito a votarem e serem eleitas.

  17. O Regime Jurídico do Maior Acompanhado foi aprovado à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotando o novo paradigma que privilegia a dignidade inerente a todas as pessoas com deficiência.

  18. Dispõe o artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil que “o acompanhamento limita-se ao necessário”.

  19. A teleologia do artigo citado tem duas vertentes. Num sentido temático, o acompanhamento versa sobre as áreas da vida em que o acompanhado necessita de acompanhamento.

  20. Por outro lado, este “limite do necessário” tem um sentido de alcance, de extensão da medida.

  21. O regime do maior acompanhado, verdadeiro progresso em relação aos antigos regimes de inabilitação e interdição, passou a colocar no centro das medidas, o auxílio, o acompanhamento, com vista ao bem-estar do beneficiário, a sua recuperação, o pleno exercício dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.

  22. O regime de maior acompanhado visa agora, ao invés de restringir para proteção do inabilitado/interdito, fornecer instrumentos ao acompanhante para que supra as incapacidades do beneficiário, em seu benefício, tentando sempre que possível agir conforme a sua vontade, e sempre no seu melhor interesse, com vista à sua recuperação.

  23. Daí que o regime permita ao acompanhante suprir a vontade do beneficiário naquilo que lhe é importante e que este não tenha capacidade para expressar a sua vontade ou prestar o seu consentimento, como questões de saúde ou patrimoniais.

  24. O objetivo do Regime do Maior Acompanhado é suprir as incapacidades, em benefício do acompanhado.

  25. No presente caso, em função da maleita que atingiu a requerida, esta encontra-se acamada, entubada, sem reação, sem interação, usando fralda diariamente, necessitando que terceiros lhe administrem medicação.

  26. A situação da requerida é irreversível.

  27. A requerida necessita sem dúvida de amplo acompanhamento, para gestão de questões patrimoniais, questões de saúde e algumas restrições dos seus direitos pessoais, como casar, perfilhar ou procriar.

  28. A incapacidade da requerida, física e mental, para votar, é notória.

  29. Nenhuma medida de acompanhamento poderá suprir essa incapacidade.

  30. O acompanhamento limita-se ao necessário, artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil.

  31. O acompanhamento que extravase os planos referidos nos pontos anterior vai para além do necessário, violando o artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil.

  32. O Tribunal a quo, interpretou a norma do artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil no sentido de permitir, no caso concreto, restringir a capacidade eleitoral ativa da requerida.

  33. A norma do artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil deve ser interpretada no sentido de não permitir ou legitimar que se decrete a perda de capacidade eleitoral ativa, por tal medida não se limitar ao necessário, e ser ineficaz no suprimento da incapacidade que no caso se faça sentir.

  34. Pelo exposto, ao decidir na forma em que decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil.

  35. O legislador não quis que a instituição do acompanhamento pudesse contemplar, automaticamente, restrições impeditivas ao exercício do direito de voto.

  36. A restrição permitida por lei dos direitos pessoais do acompanhado e a celebração dos negócios da vida corrente deve ser interpretada sistematicamente.

  37. Desde logo não se encontra expressamente referido o direito de voto, apesar da lista não ser taxativa.

  38. Por outro lado, essa restrição tem que ser balizada pela necessidade (artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil) e pela proteção que está...

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