Acórdão nº 1368/20.8JABRG.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 09 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelHELENA MONIZ
Data da Resolução09 de Março de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Proc. n. º 1368/20.8JABRG.G1.S1 5.ª secção Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I Relatório 1.1.

Nestes autos, por acórdão, de 17.03.2022, do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães (Juízo Central Criminal de ..., Juiz ...), a arguida AA foi condenada pela prática - de um crime de homicídio qualificado, nos termos dos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. g), i) e j), do Código Penal (CP), e agravado, nos termos do art. 86.º, n.º 1, al. d) e n.ºs 3 e 41, do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23.02 e atualizações posteriores), numa pena de 20 anos de prisão; - de um crime de furto qualificado, nos termos do artigo 204.º, n.º 1, als. a) e f), n.º 2, al. e) e n.º 3 [por referência ao artigo 202.º, al. e)], todos do CP, numa pena de 3 anos e 8 meses; e - de um crime de detenção de arma proibida, nos termos do artigo 86.º, n.º 1, al. d) [por referência ao artigo 3.º, n.º 2, al. ab)], todos do Regime Jurídico de Armas e Munições (Lei n.º 50/2019, de 24.07), numa pena de 1 ano e 8 meses.

Em cúmulo jurídico, foi condenada na pena única conjunta de 21 anos e 10 meses de prisão.

1.2.1.

A arguida recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 10.10.2022, decidiu reduzir a pena única aplicada à arguida, determinando o cumprimento de uma pena única de prisão de 21 anos, e reduzir o montante da quantia arbitrada oficiosamente nos termos do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal (CPP), que passou a ser de quinze mil euros.

  1. A arguida interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): «1. Os factos provados n.ºs 14 e 15 e o texto da decisão recorrida infra mencionada atinente a estes resultante da decisão prolatada pela 1.ª instância estão escancaradamente contrariados pelos meios de prova documental, mais concretamente com os autos de exame ao local do crime, juntamente com as declarações da arguida, o depoimento do médico BB e com os ditames da ciência e as máximas da experiência.

  2. Na motivação do acórdão no tocante ao modo de execução do crime, o tribunal coletivo expôs que: O local da perpetração foi, seguramente, a sala da vítima, conforme denunciam as machas de sangue ali encontradas junto aos sofás (vide fotos 41 e ss. de fls. 126 e ss. do relatório de inspecção ao local de fls. 104 e ss.).

  3. Já em sede de enquadramento jurídico: Aí chegada, entre as 23h35 e as 00h05m, a arguida introduziu-se na propriedade, dirigiu-se à porta-janela da sala, que se encontrava aberta devido ao calor que fazia sentir nessa altura, e, através da abertura, acedeu ao interior desse espaço, onde se deparou com CC a dormir. Executando o desígnio de eliminar qualquer resistência que aquele pudesse opor-lhe (ao propósito de se apoderar do seu património), a arguida abeirou-se dele, munida da faca que carregava, desferiu-lhe, pelo menos, 8 (oito) golpes.

  4. O Tribunal da Relação de Guimarães considerou que a decisão recorrida não contém o erro-vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, não vislumbrando assim qualquer erro notório na apreciação da prova. Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos concordar com a decisão do Tribunal a quo e desse modo, reiteramos a impugnação desse vício que nos parece evidente.

  5. No caso sub judice parece existir uma evidente desconformidade entre esses factos dados como provados juntamente com o texto da decisão recorrida e a prova produzida em audiência de julgamento, a prova documental e os ditames da ciência e as máximas da experiência.

  6. A vítima dormia regularmente, no período do Verão, no chão da sua sala de estar, mais concretamente, junto à porta-janela (por onde a arguida entrou na habitação), aberta, para se sentir mais refrescado com o ar fresco da noite.

  7. Pelo que tal factualidade está assente como resulta do texto da decisão recorrida. Na motivação da decisão do Tribunal da 1.ª Instância ficou plasmado que: Aí chegada, entre as 23h35 e as 00h05m, a arguida introduziu-se na propriedade, dirigiu-se à porta-janela da sala, que se encontrava aberta devido ao calor que fazia sentir nessa altura, e, através da abertura, acedeu ao interior desse espaço, onde se deparou com CC a dormir.

  8. Portanto, a vítima estava a dormir no chão junto à porta-janela, que se encontrava aberta, da sala da sua habitação quando a recorrente entrou nesse local.

  9. Pelo que segundo a decisão da 1.ª instância, a recorrente abeirou-se dele, munida da dita faca, desferiu-lhe, pelo menos, 8 (oito) golpes.

  10. Sucede que, da análise visual do auto de exame ao local é notoriamente visível que a área do chão junto à porta-janela da sala – onde CC dormia - não tinha manchas de sangue.

  11. Do auto exame ao local (fls. 126, fotografia 42) é perfeitamente visível que a principal mancha de sangue existente na sala situa-se numa outra zona, mais concretamente na zona do sofá que se encontra do lado direito de quem entra pelo exterior, e no chão adjacente a este.

  12. E, mais, no auto de diligências iniciais elaborado pela Polícia Judiciária(fls. 50) encontra-se plasmado que “nos dois sofás e no chão, com especial incidência na zona correspondente ao canto formado pelos dois sofás, foram identificadas extensas manchas hemáticas”.

  13. As lesões sofridas por CC, designadamente a lesão que atingiu o abdómen e o coração, provocaram uma hemorragia intensa e a consequente perda de uma enorme quantidade de sangue de forma repentina, conforme resulta dos esclarecimentos médicos de BB.

  14. Tendo em consideração o depoimento do médico BB, médico que elaborou o relatório da autópsia médico-legal, a lesão do abdómen “termina a nível do fígado, (…) é uma lesão grave, considerada grave, causa uma hemorragia (impercetível…) e causa uma hemorragia relativamente importante” – gravação da sessão de 14/03/2022, 00:12:01 até 00:13:10; a lesão que atingiu o coração, “tendo em conta que atingiu mesmo a parede do ventrículo esquerdo, deixou uma ferida aberta onde se bombeia sangue em grandes quantidades por segundo, há uma grande perda de sangue”, (…) uma grande perda de sangue num curto espaço de tempo, e isso causa morte relativamente imediata. Não é imediata, mas é muito rápida” –gravação da sessão de 14/03/2022, minutos 00:14:04 até 00:14:54.

  15. Ora, através desse depoimento extrai-se a conclusão de que os golpes desferidos pela arguida não podem ter ocorrido quando a vítima se encontrava a dormir, senão a zona junto à porta-janela tinha uma grande e densa mancha de sangue, o que não é o caso.

  16. Por conseguinte, a consideração pelo Tribunal da 1.ª instância de que a recorrente ao entrar na habitação pela porta-janela aberta e deparando-se com a vítima a dormir no chão junto a esta, abeirou-se da vítima e, munida da dita faca, desferiu-lhe, pelo menos, 8 (oito) golpes é uma conclusão ilógica e arbitrária face a todo o material probatório.

  17. Atendendo às valiosas declarações da arguida (reiteradas nas diversas fases processuais), aos meios de prova documental supra mencionados, ao supra referenciado depoimento do médico BB e aos ditames da ciência e as máximas da experiência resulta evidente que existiu um erro notório na apreciação da prova.

  18. Resulta assim evidente, no nosso entendimento, que o Tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova.

  19. Um erro notório na apreciação da prova consiste num erro flagrante na apreciação/valoração de todo o material probatório, nos termos do art. 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

  20. Para além disso, o texto da decisão recorrida atinente à dinâmica do homicídio, isto é, de que a Recorrente esfaqueou CC quando este se encontrava a dormir conduziu, injustamente, ao preenchimento da alínea i), do n.º 2, do art. 132.º do Código Penal, respeitante à utilização de um meio insidioso no cometimento do homicídio pela arguida.

  21. Segundo o Tribunal a quo, no ponto §4 – “meio insidioso” - a arguida terá então entrado na residência da vítima, que dormia e, alegadamente, terá desferido, de imediato, os oito golpes com a faca de cozinha que vinha munida, utilizando, por essa via, um modo de execução enganoso ou sub-reptício.

  22. Sucede que, esse alegado modo de execução do crime não encontra sustentação e, até, é incompatível com os meios de prova supra mencionados, conforme alegamos.

  23. Nessa medida, foi cometido um erro flagrante na apreciação/valoração de todo o material probatório, o que teve sérias implicações na condenação da arguida, nomeadamente em sede de qualificação do homicídio.

  24. Portanto, a decisão recorrida, relativamente à facticidade vertida nos pontos 14 e 15 da facticidade julgada provada e a atinente motivação da decisão respeitante a essa factualidade tocante à dinâmica do crime, juntamente com o enquadramento jurídico, enferma de erro notório na apreciação da prova.

  25. Para além disso, no caso em concreto, afigura-se que não estão preenchidas nenhuma das circunstâncias exemplificativas da especial censurabilidade ou perversidade elencadas no n.º 2, do art. 132.º do Código Penal. Sem prescindir, não se encontra preenchida a cláusula geral da “especial censurabilidade ou perversidade” prevista no art. 132.º, n.º 1, do Código Penal.

  26. No tocante aos exemplos padrão do art. 132.º, n.º 2, do CP. Trata-se de um tipo de culpa agravada de homicídio por força dessa cláusula, sendo que o elenco de circunstâncias constantes no n.º 2, do art. 132.º, não é automático nem taxativo.

  27. No tocante à alínea g), do n.º 2, do art. 132.º, esta implica que no plano do agente o homicídio surja (relação meio/fim) como determinado pela perpetração de um outro crime.

  28. Na realidade, o plano da arguida consistia em executar um roubo. A arguida tinha em mente colocar a vítima na impossibilidade de resistir, por intermédio de uma toalha embebida em lixívia, e, seguidamente, furtar o dinheiro que CC tivesse em casa.

  29. O plano delineado pela arguida não foi efetivado em virtude dos acontecimentos ocorridos na habitação na fatídica...

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