Acórdão nº 2386/20.1T9OER.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 09 de Março de 2023

Magistrado ResponsávelORLANDO GONÇALVES
Data da Resolução09 de Março de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Proc. n.º 2386/20.1T9OER.L1.S1 Recurso Penal * Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I - Relatório 1.

No âmbito do proc. n.º 2386/20.1T9OER.L1, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 25 de outubro de 2022, decidiu negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA e confirmar a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de ... - Juiz ..., que não pronunciara os arguidos BB, CC e DD, pela prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p pelo art.365.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e de um crime de difamação, p. e p. pelo art.180.º, n.º1 do Código Penal, que lhe eram imputados na acusação particular e ordenara o oportuno arquivamento dos autos.

  1. Inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, dele interpôs recurso a assistente AA, para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição): A. Cabe Revista Excecional, neste caso, em que uma interpretação do artigo 380.º n.º 1 do CPP em contrário, releva da inconstitucionalidade do preceito, porque contrário ao artigo 32.º n.º 1 do CRP.

    1. Por outro lado, tratando-se de uma ofensa à Recorrente por parte de dirigentes laborais, que em escrito dirigido à tutela afirmaram que a Assistente sofria de um estado psicológico de grande desequilíbrio, referindo-se a ela própria e não a uma qualquer outra situação que pudesse ser, sem referência personalizada, imputada à Assistente, identifica-se aqui uma infração ao direito humano de não ingerência da intimidade da vida privada (artigo 12.º DUDH, artigo 8.º DEDH e artigos 25.º n.º 1 e 26.º n.º 1 da CRP).

    2. Logo, este caso tem, por isso mesmo, relevância bastante para acolhimento segundo a alínea a) do artigo 672.º n.º 1 do CPC.

    3. De qualquer modo, caracterizada a atuação dos arguidos num fornecimento de uma informação disciplinar laboral, respeitante à Recorrente, e com força no artigo 52.º da CRP e no dever de proteção (psíquico-social) da trabalhadora que a Assistente era, cabe também o caso na alínea b) do artigo 672º n.º 1 do CPC, porque se circunscreve, em si e por si mesmo, numa concreta e particular relevância social.

    4. Depois, no texto da carta enviada pelos arguidos ao Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, que a Assistente inseriu expressamente na acusação particular por crime de difamação, não recebida pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, está indiciado o dolo, ao menos, na modalidade de dolo eventual, da ofensa à Recorrente, e por infração do dever de respeito pela sua vida privada e integralidade moral.

    5. Indícios não são provas definitivas e a simples leitura adequada do excerto, na correlação do envio e receção dele por terceiro - neste caso, até entidade tutelar da empresa municipal onde a Assistente servia - é bastante para poder ser concluído pela justiça da submissão a julgamento, para prova definitiva, dos arguidos indiciados.

    6. Por fim, os arguidos agiram, ao escreverem o excerto em causa e, dirigindo-o a entidade terceira e tutelar, contra o que lhes prescreve o artigo 52.º da CRP; por conseguinte, sobre uma necessária apreciação objetiva dos factos ainda menos apertada de indiciação do crime.

    7. Por tudo quanto fica concluído deve, pois, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa recorrido ser reformado em termos do recebimento da acusação particular deduzida pela Assistente contra os arguidos, autores confessos do trecho ofensivo e de referência.

    1. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sob critica infringiu o disposto nos artigos 285.º e 307.º do CPP.

    Vossas excelências com doutro suprimento decidirão com JUSTIÇA e de Lei.

  2. A Ex.ma Desembargadora relatora, por despacho de 29 de novembro de 2022, recebeu, “ainda que com dúvidas”, o recurso interposto pela assistente para o Supremo Tribunal de Justiça.

  3. O Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa respondeu ao recurso interposto pela assistente, concluindo como segue (transcrição): 1. O recurso deve ser rejeitado.

  4. Não existem indícios suficientes de verificação do crime de difamação p. e p. pelo art.180.º n.º 1 do Código Penal.

  5. O Acórdão recorrido não violou qualquer preceito legal, nomeadamente os artigos 285.º e 307.º do Código de Processo Penal.

  6. Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso interposto e, consequentemente, manter-se, na íntegra, o Acórdão recorrido.

  7. Também os arguidos BB, CC e DD, contra-alegaram, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): 1. O presente recurso não deverá ser admitido. Antes, deve ser liminarmente indeferido nos termos dos artigos 671.º n.º3 e alíneas a) e b) do art.672.º do CPC; alíneas d), e) e f) n.º1 do art.400.º, n.º2 do art.420.º e alínea b) do art.432.º, todos do CPP.

  8. O seu indeferimento nada revela de inconstitucional porque em nada restringe o direito ao recurso. Pelo contrário, é um claro e notório abuso do direito de acção! 3. A informação contendo as expressões motivo de queixa foi subscrita pelos arguidos, porém sem qualquer intenção de ofender, caluniar, difamar, prejudicar ou causar qualquer dano à recorrente, mas tão somente no cumprimento do dever da resposta no sentido de informar o senhor Presidente da Câmara de Oeiras, a pedido do mesmo, nada havendo nas mesmas qualquer elementos subjetivo ou objetivo susceptível de responsabilidade criminal, portanto, dentro dos limites normais do dever de informar e dos princípios de boa Gestão da Empresa, o que é inequivocamente legítimo.

    Termos em que o presente recurso não deverá ser admitido mas sim indeferido liminarmente, mantendo-se assim a decisão recorrida.

  9. O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que o acórdão recorrido não se afigura suscetível de impugnação, pelo que o recurso de “revista excecional” não deve ser admitido.

  10. Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., respondeu a assistente renovando o entendimento de que o recurso por si apresentado deve recebido e julgado procedente.

  11. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

    II - Fundamentação 9.

    Do acórdão recorrido consta, além do mais, o seguinte (transcrição): “(…) Alega a assistente/recorrente que os autos contêm indícios suficientes para que os arguidos sejam pronunciados pela prática dos crimes de denúncia caluniosa e de difamação, p. e p., respectivamente, pelos arts. 365º, nºs 1 e 2, e 180º, nº 1, ambos do Cód. Penal.

    Compulsados os autos, verificamos que em 12.07.2021, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento quanto ao crime de denúncia caluniosa – por ter entendido não terem sido recolhidos indícios suficientes da sua prática – e ordenou a notificação da assistente para, querendo, deduzir acusação particular quanto ao crime de difamação, desde logo manifestando o entendimento de que não haviam sido recolhidos indícios da prática desse crime.

    A assistente deduziu então acusação particular contra os arguidos imputando-lhes a prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.365º, nºs 1 2 do Cód. Penal, e de um crime de difamação, p. e p. pelo art.180º, nº 1 do mesmo Código.

    O Ministério Público proferiu despacho de não acompanhamento da acusação particular quanto ao crime de difamação por considerar não estarem suficientemente indiciados os factos integrantes do ilícito.

    Notificados da acusação, os arguidos vieram requerer que se procedesse a instrução, finda a qual foi proferido o despacho recorrido (de não pronúncia).

    Antes de mais, e no que concerne ao imputado crime de denúncia caluniosa, cabe dizer que este crime tem natureza pública, pelo que, não pode a assistente deduzir acusação particular sobre factos que eventualmente o integrariam (cfr. o disposto nos arts. 48º, 49º, 50º, 69º, nº 2, alínea b), 283º e 284º, todos do Cód. Proc. Penal).

    Com efeito, perante um despacho de arquivamento do Ministério Público quanto a crimes de natureza semi-pública ou pública, carece o Assistente de legitimidade para deduzir acusação particular quanto a esses factos.

    E esta ilegitimidade do Assistente não configura qualquer inconstitucionalidade, nem infringe o disposto no art.20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa na dominante do processo equitativo e célere, até porque o Assistente tem meios de reagir ao despacho de arquivamento do Ministério Público.

    Discordando do entendimento do Ministério Público e pretendendo o prosseguimento do processo, o Assistente pode requerer a abertura de instrução (cfr. o art. 287º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Penal), podendo vir a obter, por este meio, a pronúncia do arguido; ou requerer a intervenção do superior hierárquico (nos termos do art. 278º do Cód. Proc. Penal), que poderá determinar a formulação da acusação ou o prosseguimento das investigações. E pode ainda requerer a reabertura do inquérito quando surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos do despacho de arquivamento (cfr. o art. 279º do Cód. Proc. Penal).

    No caso, a assistente optou por deduzir acusação particular quanto ao crime de denúncia caluniosa, procedimento para o qual carece de legitimidade.

    Pelo que, ainda que com fundamento diverso da decisão recorrida, urge confirmar a decisão de não pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de denúncia caluniosa.

    (…) Indiciam os autos – e é aceite por todos os intervenientes – que: - com data de 17 de Dezembro de 2019 os arguidos fizeram chegar ao Gabinete do Sr. Presidente da Câmara Municipal de ..., uma carta da O..., e dirigida ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de ...; - tal carta pretendia responder a uma exposição da assistente feita ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... e encontra-se assinada pelos arguidos enquanto administradores da O...; - na referida carta, os arguidos referem-se à assistente como revelando um "estado psicológico e emocional de grande desequilíbrio, que tem sido patente ao longo de muitos anos" (…) "o trabalho desenvolvido (...) bem como os períodos de baixa são o espelho desse desequilíbrio" (…)...

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