Acórdão nº 01976/16.1BEBRG de Tribunal Central Administrativo Norte, 19 de Junho de 2020

Magistrado ResponsávelMaria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Data da Resolução19 de Junho de 2020
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte: RELATÓRIO C., residente na Rua (…), (…), instaurou acção administrativa contra o Ministério do Planeamento e das Infra-estruturas, com sede na Av. (…), (…), e contra o Estado Português.

Pediu, a título principal, a anulação do acto impugnado, i.e., o despacho que determinou a cessação da sua comissão de serviço no cargo de vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte e que seja “reposta a concreta situação que existiria se tal ato não tivesse sido praticado”, requerendo a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de 106.089,00 €.

A título subsidiário, pediu a condenação dos Réu no pagamento da indemnização correspondente à cessação lícita da comissão de serviço, prevista no art.º 26º da Lei 2/2004, no valor de 33.804,68 €, acrescida de juros à taxa legal desde 24 de julho de 2016.

Por decisão proferida pelo TAF de Braga foi julgada a acção parcialmente procedente, e, em consequência:

  1. Anulado o acto impugnado; b) Absolvido o Réu Ministério do pedido indemnizatório.

    Desta vêm interpostos recursos.

    Alegando, o Autor formulou as seguintes conclusões: I - Segundo o que é pacificamente aceite pela doutrina e seguido pela jurisprudência, para a procedência do vício e, consequentemente, anulação do ato administrativo com esse fundamento, o autor tem de ser capaz de lograr criar no tribunal com a sua atividade probatória uma convicção de realidade ou verdade do facto, designadamente: i) do fim visado pela lei ao conferir a certo órgão administrativo um determinado poder discricionário (fim legal); ii) do motivo principalmente determinante da prática do ato administrativo em causa (fim real); e, finalmente, se iii) este motivo principalmente determinante condiz ou não com aquele fim legal.

    II - A prova stricto sensu não impede que o tribunal forme a sua convicção com base na probabilidade da realidade de um facto, pois, o que interessa é que esse grau de convicção permita excluir outra configuração da realidade que foi considerada como provada. Assim, a prova de um facto com fundamento numa regra de probabilidade não implica que o tribunal considere que esse facto é apenas provável, mas antes que o facto é verdadeiro.

    III - O direito à tutela judicial efetiva, previsto nos arts. 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, inclui o respeito, no que à atividade probatória se refere, do princípio da proporcionalidade em sentido amplo. De nada adianta atribuir a alguém um direito – in casu, o de anulação de um ato por desvio de poder – se as regras do ónus da prova e o grau de convicção exigido que as partes (em particular, a onerada) criarem obstáculos reais ao tribunal na busca da verdade.

    IV - É que convém não esquecer que os elementos de que depende a procedência do desvio de poder não são evidentes, não surgem por via de regra, expressamente referidos no processo administrativo, nos documentos ou folhas que o compõem ou mesmo na fundamentação do ato, mesmo quando esta existe e esteja completa.

    V - Dito de outro modo: o autor do ato compõe-no de modo a esconder ter efetiva e intencionalmente extravasado o espaço de livre margem de decisão concedido, camuflando, com mais ou menos brio e cuidado, estar a atuar a descoberto do espaço de legitimidade e segurança conferido pelo elemento funcional da norma habilitante.

    VI - E, neste caso concreto, esse subterfúgio foi a falta de fundamentação ou se se preferir a utilização de um fundamento legal formal e abstrata sem concretização e, portanto, completamente ausente como a própria decisão considerou.

    VII - A utilização destes subterfúgios – que pode ser, na prática, mais ou menos conseguida – aproxima o tipo de factos que compete demonstrar no desvio de poder à natureza dos factos que se têm por dar como demonstrados para declarar nulo um negócio por simulação. Exigir que o autor convença o tribunal stricto sensu que o acordo simulatório existiu e, portanto, que existe uma divergência efetiva entre a vontade declarada pelas partes e a vontade real das mesmas, seria perfeitamente desadequado.

    VIII - Ora, como é do conhecimento geral, a prova direta de uma intenção raramente sucede, pelo que perante esta evidência, na ausência de uma fundamentação confessória do ato administrativo ou de confissão judicial do autor do mesmo, intimado que foi para prestar declarações em sede de julgamento, o princípio que garante a tutela judicia efetiva tem de assegurar, sob pena de negação de tutela judicial ou, o que é para nós pior, de concessão de uma tutela judicial apenas aparentemente efetiva, que o facto se possa demonstrar de outro modo, ainda que isso implique necessariamente uma descida no grau de convicção exigível ao julgador no caso concreto.

    IX - Não é possível que os tribunais administrativos esperem pela confissão do desvio de poder, ou seja, da verdadeira motivação determinante do ato, porque é sabido que essa raramente acontece, precisamente porque o ato assenta numa técnica de embuste. Se a confissão surgir no decurso do processo judicial o tribunal terá de decidir em conformidade com a mesma, pois a esta está vinculado, não interessando se ficou ou não subjetiva ou moralmente convencido da realidade daquele facto (prova objetiva).

    X - O motivo principalmente determinante que é discrepante do fim legal só poderá ser encontrado, tal como sucede em situações em tudo análogas – como na simulação e nos casos de discriminação em função de qualquer fator, designadamente do sexo – por via de indícios e não por via da exigência de um grau de prova stricto sensu.

    XI - Esses indícios irão permitir que o juiz, com recurso às máximas da experiência, possa presumir como judicialmente provada ou demonstrada a verificação do motivo principalmente determinante diverso do fim legal. Nestes casos, só a prova por presunções com recurso aos indícios e às máximas da experiência podem conduzir à prova dos factos escondidos, competindo à entidade demandada fazer um esforço de contraprova ou de simples abalo desses indícios.

    XII - Esta, para além de ser a solução mais consentânea com a tutela dos valores já supra destacados, é, ainda, a solução que, melhor se apresenta para garantir o fim da procura da verdade do processo. É melhor o recurso à prova por presunção do que ficcionar o contrário do facto sujeito à prova pela circunstância da parte onerada com esta não a ter logrado fazer, mesmo quando esse resultado não lhe foi de todo imputável.

    XIII - A expansão da doutrina do Conselho de Estado tem permitido em círculos concêntricos crescentes admitir a facilitação da prova do desvio de poder, começando por deixar de admitir apenas as provas que na decisão administrativa impugnada, permitindo, depois, deduzir a mesma prova do processo administrativo e, finalmente, admitindo a aplicação de presunções e das considerações de circunstâncias externas ao litígio, incluindo a sobrevinda conduta da Administração depois da prática do ato impugnado.

    XIV - Em Itália, por sua vez, a doutrina orbita em torno dos sintomas externos do desvio de poder, que elenca exemplificativamente como sendo os defeitos de instrução do procedimento, a insuficiência ou incoerência da fundamentação, a injustiça e a irracionalidade manifesta e, finalmente, a desigualdade de tratamento.

    XV - Finalmente, de modo mais recente em Espanha, a prova do desvio de poder tem vindo a ser facilitada ao autor atento o uso de presunções judiciais por parte dos tribunais, partindo de indícios daquele desvalor. Esta tendência ficou a dever-se precisamente à tomada de consciência de que a prova de desvio de poder apresenta traços específicos.

    XVI - Trata-se da prova de um facto negativo (provar que a Administração não atuou para o cumprimento de um fim) sendo uma prova que resulta não de uma constatação, mas antes da convicção da existência de um embuste, pelo que não pode ser absoluta e plena.

    XVII - O tribunal a quo podia e devia ter ao abrigo do princípio da colaboração e da boa fé processual ordenado ao Réu que esclarecesse concreto quais os motivos que conduziram à exoneração do autor. Se este foi exonerado é porque motivos existiram.

    XVIII - O Tribunal a quo demitiu-se de apreciar o vício porque apesar de a falta de fundamentação inicial no caso concreto o desvio de poder não se determinou em perguntar ao réu os esclarecimentos que podia e devia ter destinado sobre quais os motivos concretos de tal exoneração. A negação de tal colaboração por parte da Ré poderá ser apreciada livremente pelo tribunal ou in extremis permitir a inversão do ónus da prova por impossibilitar a prova da parte onerada, nos termos em que supletivamente estão previstos nos artigos do CPC.

    XIX - O comportamento da parte pode ser tomado em consideração para efeitos probatórios. Aliado à falta de fundamentação concreta à falta de explicação concreta do motivo de exoneração na própria defesa do Recorrido, podia e devia o tribunal a quo ter sido considerada pelo tribunal a quo como um indício claro de desvio de poder., suficiente para invalidar o ato também com este fundamento e, diz a experiência que quando o motivo concreto subjacente à exoneração não é nunca invocado ou é porque não existe por ou que não é julgado relevante pelo fim da norma.

    XX - A falta completa de fundamentação, sendo uma causa autonomamente invalidante, assume in casu uma função instrutória ou probatória do qual se podia e devia deduzir o desvio do fim da norma em casa por parte do recorrido, pois a falta de fundamentação, ou mesmo, a insuficiência da mesma são um sinal claro de que o fundamento determinante não coincide com aquele fim ao qual a norma jurídica dá relevo e com o qual vincula a administração.

    XXI - A falta de fundamentação é um ato voluntário e que `partida por não revelar a fundamentação coloca em crise a direta apreciação dos motivos subjacentes à decisão. Por isso, quem se coloca nessa posição impede a demonstração e até a possibilidade de...

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