Acórdão nº 280/19.8T9SLV.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 13 de Julho de 2021

Magistrado ResponsávelFERNANDO PINA
Data da Resolução13 de Julho de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA: I. RELATÓRIO A – Nos presentes autos de Instrução, com o nº 280/19.8T9SLV, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Instrução Criminal de Portimão - Juiz 2, com a certidão extraída do processo nº 4288/11.3TBPTM-B, que corre seus termos no Juízo de Família e Menores – J2 junto deste Tribunal, de onde consta um requerimento efectuado por (…), mãe da menor (…) e no qual imputa ao arguido (e pai da menor) (…) a prática de factos susceptíveis de integrar o crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171º, do Código Penal.

Instaurado o competente Inquérito e desenvolvidas as diligências tidas por necessárias e adequadas pelo Ministério Público, findo o qual foi proferido despacho de arquivamento, por se ter entendido que não existiam indícios suficientes da prática do ilícito.

Não se conformado com o teor do despacho de arquivamento e após se constituir assistente nos autos, (...), veio requerer a abertura da instrução nos termos do artigo 287º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal alegando, em síntese, que a prova produzida é credível, sendo as declarações para memória futura prestadas pela menor claras e suficientes para sustentar a remessa dos autos para a fase de julgamento.

Feitos os autos conclusos ao Mº Juiz de Instrução, foi por este proferido despacho a declarar aberta a Instrução e, a deferir a realização dos actos instrutórios requeridos, a audição da assistente e da testemunha Dra. (…), médica psiquiatra de infância e adolescência.

Após, foi designada data para a realização dos actos instrutórios determinados e para o debate instrutório.

Foi então proferida decisão instrutória, na qual foi decidido não pronunciar o arguido (...), pelos factos e incriminação constantes do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente (...).

Inconformada com o assim decidido, recorreu a assistente (...), extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões: a) Os depoimentos da mãe e da avó da menor, ao contrário do que considera o despacho recorrido, não são depoimentos de ouvir dizer, mas depoimentos diretos, pois corroboram o estado vivenciado pelas emoções, as expressões dos sentidos, como atestam a efectiva comoção da menor, provocada pela vivência desses factos; b) A douta decisão recorrida, ao desconsiderar tais depoimentos, de fls. 15 e 21, que são inteiramente concordantes e corroborantes das declarações da menor, violou o disposto no art. 129º, do CPP, tanto mais que a menor não é terceiro e foi devidamente ouvida nos autos; c) O douto despacho recorrido reconhece que a pedopsiquiatra (...), nas consultas médicas e na diligência de declarações para memória futura, “não vislumbrou na menor sinais de que a sua versão fosse fruto de qualquer fantasia”, mas erra ao atribuir-lhe a impossibilidade de afirmar se o depoimento corresponde ou não à verdade; d) Das declarações, supra, transcritas da pedopsiquiatra, colhidas em 11/11/2020, gravadas de 00:00 as 13:45 minutos, sobre as declarações da menor, apura-se que a mesma declarou: “acho que correspondem a algo que a criança pudesse ter vivenciado” (...); “parece-me uma criança cognitivamente capaz e não distingui nenhuma incapacidade para distinguir o certo do errado” (...); “Os factos que a (...) relatou foram certamente, para ela, sentidos como traumáticos e desagradáveis”; e) Sobre a verificação da credibilidade do depoimento, acrescentou: “nem faz parte de um acompanhamento psicoterapêutico fazer essa distinção, que de si já não é fácil de fazer, mas é possível” (...); “o meu acompanhamento com a menor teve um carácter de acompanhamento terapêutico e não pericial, não foi o foco da minha intervenção averiguar a veracidade dos factos contados, até para não submeter a menor a situações de exposição, pelo que não fiz um trabalho nesse sentido, de averiguar a veracidade dos factos, foi mais dirigido à sintomatologia que era reportada, daí não ter dados para lhe poder responder a essa questão”.

f) Assim, a decisão recorrida, ao desconsiderar a credibilidade que a médica atribui às declarações da menor, várias vezes por si ouvida, e a possibilidade de se proceder a perícia para aquilatar externamente da mesma credibilidade, cometeu um erro de apreciação e valoração da prova e violou o poder-dever de busca da verdade material, se admite a dúvida e esta pode ser esclarecida; g) Tendo a médica declarado que é possível realizar perícia para avaliar a credibilidade do depoimento da menor e que não procedeu a tanto por ter aceitado a bondade das declarações e pretender evitar o aumento do trauma que nela reconhecia, o Tribunal não podia, achando dúvida, deixar de ordenar perícia à personalidade da menor, com o que violou o disposto no art. 131º, por referência ao art. 124º, do CPP; h) O Tribunal está obrigado a proteger o superior interesse da menor em todas as circunstâncias, mormente quando é vítima de crime, não podendo arredar-se de tal tarefa ou diminuir a necessidade da sua intervenção pela suposta negligência que aponta aos cuidadores da menor.

i) Como se lê das declarações da mãe à M. Juiz do Tribunal de Família, resumidas na ata de conferência de pais de fls. (junta aos autos), tomou ela conhecimento inicial dos factos no final do ano de 2018, através da (...) (que na ocasião apenas referiu que o pai lhe mexeu nos genitais); j) Ouvida em sede de instrução, conforme ata da audiência de 21-10-2020, a mãe esclareceu a instâncias do Meritíssimo Juiz, ao minuto 5,08 e ss., que “a primeira vez que aconteceu foi em 2018, estava no segundo ano da primária, em que ela me chega a casa, um bocadinho ansiosa, estava triste, estava muito mole. (...) Ela de repente levanta-se (...) E ela disse-me: - Não é mamã, não é, é o pai. (...) Depois de a conseguir acalmar, disse-lhe; - Filha, pronto, vamos lá conversar. O que é que se passou? - Era o pai, era o pai, mexia-me na pipia. E aí ela conta-me que o pai, quando lhe dava banho, lhe esfregava a pipia e a amassava (...)”; k) É, pois, errado atribuir-se o conhecimento da assistente a data anterior ao final de 2018 (a menor frequentava então o 1º período do segundo ano da escola primária); l) Questionada sobre o motivo de não apresentação imediata de queixa às autoridades e submissão a consultas de pedopsiquiatria, a assistente esclareceu ao minuto 30:25 e ss. do mesmo depoimento: “eu é que senti o estado dela tão agitado, tão alterado, perante aquilo tudo que ela me dizia, porque ela mudou completamente o comportamento, a partir do momento em que me começou a contar as coisas, em que eu pensei, eu tenho de pedir ajuda nalgum lado e depois que me dê alguma orientação. (...) Não suportava, não suportava essa ideia (de que o pai pudesse ter praticado aqueles atos); m) Como reconhece a douta decisão, logo a 11-02-2019 (menos de 3 meses depois), a mãe envia SMS ao pai em que deixa entender que sabe dos factos de abuso sexual, facto que o próprio pai confirmou e reagiu, recorrendo ao Tribunal de Família e fazendo queixa por injúrias (vide fls 14 do inquérito apenso nº 308/19.IPALGS); n) O Tribunal não pode criar uma regra da experiência comum sobre a ocupação do tempo das famílias aos fins-de-semana, considerando implausível que a menor pudesse ter ficado só em casa com o pai, quando os irmãos mais velhos e a mãe deles saíam de casa, porquanto, como referiu a menor nas declarações para memória futura, ao 23:10 minutos, “às vezes ia com elas ao basquetebol, só que outras vezes não ia”; o) Ocorre erro de julgamento por tal motivo, como também ocorre omissão de diligências de prova: subsistindo a dúvida no julgador, estava ele obrigado a deitar mão da inquirição do arguido sobre tal matéria e também da mulher dele, ao abrigo do disposto no art. 124º, do CPP - ilegalidade que pode ser suprida; p) A douta decisão recorrida desvaloriza as declarações da menor, por reportar factos ocorridos quando usava fralda, sem considerar que a mesma esclareceu nas declarações para memória futura, ao 25:30 minutos: “consigo lembra-me de quando tinha 3 anos. Aos 2 só me lembro de uma coisa quando estava com a minha mãe”, o que se afigura plausível, quando reportados acontecimentos traumáticos; q) Não podem sobrevalorizar-se discrepâncias entre o depoimento da (...) perante o OPC e nas declarações para memória futura, na medida em que ali esteve só com um homem, também ele sujeito ao melindre, enquanto aqui foram cumpridos requisitos de veracidade e completude de um depoimento prestado com rigor, formalmente, no âmbito do contraditório; r) A concordância das declarações afere-se pelos depoimentos da avó, que confirma na íntegra o que ouviu à menor, a fls 21, que é coincidente com o depoimento para memória futura, como também pelas declarações, supra, transcritas da pedopsiquiatra, que asseverou que "o que ouviu quando esteve no Tribunal em Silves coincidiu com o que ouviu no consultório; s) Não corresponde à verdade que a menor tenha declarado (nas declarações para memória futura) que o pai lhe pedira para tocar na pilinha - o que está de acordo às declarações ao OPC (fls.13, ponto 18) e aos depoimentos da mãe e da avó, de fls 15 e 21; t) Também não corresponde à verdade que a menor não tinha afirmado antes que o pai tocara na zona genital dela: vide ponto 16 da entrevista ao OPC (fls 13) e declarações da mãe e da avó, supra, referidas; u) As questões relativas à memória da menor enquadram-se na questão da credibilidade das declarações que, enquanto tal, deve ser solucionada pela realização de perícia à personalidade da menor, como supra indicado em g); v) Como ensina o douto acórdão da Relação de Coimbra de 03-11-2004, a prova necessária à formulação de um juízo de convicção nada tem a ver nem reside na quantidade dos meios de prova produzidos nem na sua natureza (directa ou indiciária), mas sim com a sua qualidade, isto é, com a sua veracidade e autenticidade (De acordo com a...

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