Acórdão nº 1516/19.0T8BJA.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 11 de Fevereiro de 2021

Magistrado ResponsávelMÁRIO BRANCO COELHO
Data da Resolução11 de Fevereiro de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora: No Juízo do Trabalho de Beja, J… impugnou o despedimento na sequência de procedimento disciplinar movido pela empregadora C…, S.A.

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Realizada a audiência prévia, sem conciliação das partes, a empregadora apresentou articulado motivador do despedimento, o qual mereceu a contestação do trabalhador.

Realizado o julgamento, a sentença declarou ilícito o despedimento, condenando a empregadora a reintegrar o trabalhador no seu posto de trabalho sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade, e ainda no pagamento das retribuições de tramitação.

O pedido de pagamento de indemnização por danos não patrimoniais foi julgado improcedente.

Quanto ao valor da causa, foi fixado em € 37.091,80.

Inconformada, a empregadora recorreu, terminando as suas alegações com 78 conclusões, que não efectuam uma autêntica síntese dos fundamentos por que pede a alteração da decisão, como exigido pelo art. 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

No entanto, é possível ali identificar as seguintes questões: · o pedido de reintegração deve corresponder ao valor da alçada da 1.ª instância e mais um € 0,01, pelo que o valor da acção deve ser fixado em € 17.092,89; · deve ser alterada a decisão dos pontos 60 e 63 dos factos provados; · deve ser considerada provada a matéria constante das alíneas a), b), c), d) e e), do elenco de factos considerados não provados na sentença recorrida; · deve ser declarada a justa causa de despedimento, por violação do dever de lealdade do trabalhador, ao apropriar-se temporariamente de quantias cobradas, usando-as como se lhe pertencessem, em prejuízo dos clientes e da empregadora.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.

Já nesta Relação, o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o seu parecer.

Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, e consignando, desde já, que estão reunidos os pressupostos exigidos pelo art. 640.º n.º 1 do Código de Processo Civil para a apreciação da impugnação fáctica (estão especificados os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que, na opinião da Recorrente, impõem decisão diversa, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida acerca das questões de facto impugnadas), proceder-se-á à análise desta parte do recurso, no uso da referida autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto.

Pontos 60 e 63 do elenco de factos provados: Declarou a sentença recorrida provado que “60. Nos dias descritos na nota de culpa, o pai do A. encontrava-se internado com um quadro clínico grave”, e que “63. A situação do progenitor do A. era grave e este acabaria por falecer no dia 30 de Abril de 2019.” A Recorrente entende que é conclusiva a referência ao “quadro clínico grave”, e que a prova recolhida não permite concluir sobre o estado de saúde do pai do trabalhador.

Está junta aos autos uma declaração, não impugnada, emitida pela Santa Casa da Misericórdia de S…, mencionando que o progenitor do trabalhador foi “admitido, como utente, na Unidade de Cuidados Continuados Integrados Senhora de G… – Unidade Média Duração e Reabilitação, em S… (…), no dia 16 de Janeiro de 2019 e teve alta desta instituição, por óbito, no dia 30 de Abril de 2019.” Os factos imputados respeitam ao período de 8 a 24 de Abril de 2019 – coincidem, pois, com parte do último mês de internamento, vindo o pai do trabalhador a falecer alguns dias depois, a 30 de Abril, ainda internado naquela Unidade de Cuidados Continuados Integrados.

Está igualmente junta aos autos uma informação clínica, também não impugnada, emitida em 29.05.2019 por psicóloga do Centro de Saúde de S…, mencionando que o A. recorreu várias vezes à sua consulta no mês de Abril de 2019, por apresentar “alterações emocionais intensas reactivas a doença de familiar próximo.” A nível documental, consta dos autos, ainda, o assento de óbito do pai do trabalhador, atestando que este faleceu na já mencionada data, com a idade de 83 anos.

No que concerne à prova gravada, considera-se relevante acerca desta matéria o depoimento do próprio trabalhador – tratava-se do seu pai, e não podia deixar de ter conhecimento directo do evoluir do seu estado de saúde, tanto mais que o visitava regularmente na Unidade onde se encontrava internado. E deste depoimento resulta evidente o agravamento do estado de saúde do seu pai, já na situação terminal que conduziu ao seu falecimento.

Releva igualmente o internamento do progenitor do trabalhador, durante vários meses, numa Unidade de Cuidados Continuados Integrados. Trata-se de um serviço destinado a “pessoas idosas com dependência funcional, de doentes com patologia crónica múltipla e de pessoas com doença incurável em estado avançado e em fase final de vida” – Preâmbulo do DL 101/2006, de 6 de Junho, que criou a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados.

Neste contexto, a referência ao quadro clínico grave do pai do trabalhador deve considerar-se demonstrada. Não sendo necessário descrever pormenorizadamente quais as patologias que o afectavam – não é esse o objecto desta acção – as regras da experiência comum, aliadas aos elementos probatórios recolhidos, permitem concluir nesse exacto sentido, pelo que nesta parte a impugnação fáctica vai desatendida.

Alíneas a), b), c), d) e e) do elenco de factos não provados: A sentença recorrida declarou não provado o seguinte: a) “O trabalhador apropriou-se, temporariamente, da totalidade dos valores descritos em numerário, que lhe foram entregues pelos destinatários dos objectos identificados, em montantes cobrados que oscilam entre os €20 e os €42 euros, quantias que usou em proveito próprio, como se lhe pertencessem.

b) O trabalhador agiu conforme descrito, nos períodos assinalados, com a intenção de fazer suas aquelas quantias que não lhe pertenciam, o que conseguiu, utilizando os valores pagos pelos destinatários num determinado dia, para prestar contas relativas a objectos entregues, com quantias cobradas em dias anteriores.

c) O trabalhador agiu com o intuito de procurar obter para si benefícios económicos, em prejuízo dos clientes, consequentemente da sua entidade empregadora, apropriando-se temporariamente de quantias entre os €20 e os €42.

d) Actuou de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que tal comportamento lhe estava vedado.

e) Ao proceder como supra descrito, agiu com a intenção manifesta de incumprir os seus deveres profissionais.” A sentença recorrida, admitindo que a actuação do trabalhador poderia ser considerada usualmente indiciária da intenção apropriativa, concluiu que as circunstâncias associadas à doença terminal do seu pai e subsequentes alterações emocionais reactivas, poderiam justificar uma desregulação por parte do trabalhador dos procedimentos associados à prestação diária de contas. Em especial porque saía mais cedo do trabalho, a uma hora em que não se encontrava ainda presente o colega junto de quem deveria efectuar essa tarefa (matéria levada ao ponto 62 dos factos provados e não impugnada), e ainda pelo facto dos carteiros não disporem de um fundo de maneio atribuído pela empresa para efectuarem trocos, acabando por o fazer com o seu dinheiro pessoal.

A Recorrente argumenta que existiu apropriação, embora temporária, de valores pertencentes à empresa, que o trabalhador utilizou como se lhe pertencessem.

No seu entender, se o trabalhador recebeu quantias em numerário, em montantes situados entre os € 20 e os € 42, e não procedeu no próprio dia à prestação de contas, como lhe era imposto pelos seus deveres profissionais, tal demonstraria a intenção de apropriação de tais quantias, para proveito próprio.

No entanto, e após audição dos depoimentos prestados em julgamento e análise da prova documental reunida nos autos, não nos é possível obter a mesma conclusão.

É indubitável que em, em cinco datas do mês de Abril de 2019 – nos dias 8, 9, 12, 16 e 22 – o trabalhador procedeu à cobrança de valores monetários a clientes, e não os entregou à empregadora no próprio dia, vindo a proceder a essa entrega em datas posteriores – em três dias, após interpelação (cfr. os pontos 34, 39 e 44 do elenco fáctico, relativamente aos valores cobrados em 8, 9 e 12, entregues após interpelação a 9, 11 e 16, respectivamente) e em dois dias sem interpelação expressa (cfr. os pontos 49 e 54 do elenco fáctico, relativamente aos valores cobrados em 16 e 22, tendo o trabalhador deixado o dinheiro em cima da secretária do gabinete da gestora de loja de Serpa, nos dias 22 e 24, respectivamente, embora sem orientação superior para tal).

Mas certo é que nenhuma testemunha logrou confirmar a efectiva utilização de tais valores pelo trabalhador, em proveito próprio, nem este o confessou no seu depoimento. Algumas testemunhas fizeram suposições a esse respeito, como foi o caso da testemunha Jo…, admitindo um processo de roulement de valores, com base num registo disciplinar de 2009 e em comportamentos do trabalhador em meses anteriores, mas tal matéria, para além de não circunstanciada, também não foi levada à nota de culpa e à decisão disciplinar, pelo que aqui não pode ser valorada – arts. 357.º n.º 4 e 382.º n.º 2 al. d) do Código do Trabalho.

Mas para além dessas suposições, certo é que ninguém conhecia a concreta e efectiva utilização pelo trabalhador de valores cobrados aos clientes. Ademais, o processo de roulement de valores não está suficientemente concretizado, não apenas porque ocorreu uma interrupção no dia 11 – nesta data foi entregue o valor cobrado a 9 – mas também porque em duas ocasiões o trabalhador procedeu à entrega espontânea de valores devidos, como sucedeu nos dias 22 e 24.

As contas não foram prestadas atempadamente, em cinco datas do mês de Abril de 2019, mas o porquê de tal ter acontecido permanece...

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