Acórdão nº 1387/19.7T8FAR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 14 de Julho de 2020
Magistrado Responsável | ALBERTINA PEDROSO |
Data da Resolução | 14 de Julho de 2020 |
Emissor | Tribunal da Relação de Évora |
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]*****Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]: I – RELATÓRIO 1.
B… instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra M…, H… e L…, pedindo que seja declarado que a fracção autónoma designada pela letra “J”, do prédio descrito sob o n.º …, da Conservatória do Registo Predial de Loulé foi comprada, em 17/7/2017, pelo autor e pela ré M…, em compropriedade, aos réus H… e L… e na proporção de 4/5 indivisos para o autor e de 1/5 indiviso para a ré M…. Subsidiariamente, e caso não tenha procedência o pedido anterior, pede que se declare nula a doação dos 80.000,00€ (oitenta mil euros) que efectuou a favor da ré M… para aquisição da referida fracção, condenando-se esta a restituir-lhe a referida quantia, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal, a partir da data da prolação da sentença e até à data da sua efectiva restituição ao autor.
Em fundamento da sua pretensão invocou, muito em suma, ter casado com a Ré, no regime imperativo da separação de bens, e, residindo ambos numa casa do A., ter a Ré começado a insistir na aquisição, por ambos, de um apartamento, tendo a R. acabado por adquirir o mesmo, com o valor de 80.000,00€ pertencentes unicamente ao A., mas ficando a fracção apenas em nome da R., estando em curso processo de divórcio.
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A Ré contestou, invocando, no que ainda importa para a compreensão dos termos do litígio, que a fracção em causa nos autos foi oferecida pelo A. à R. como presente, sem sujeição a qualquer condição e tendo o A. pleno conhecimento que o dito imóvel foi escriturado e registado apenas em nome da R., conforme vontade expressa e manifesta do A., mas como este dispunha apenas da quantia de 80.000,00€ e como o apartamento era para si, a R. avançou para um pedido de empréstimo ao Banco para cobrir o remanescente do preço. Pese embora corra termos processo de divórcio não se sabe qual o seu desfecho, pelo que, pretender agora, como pretende o A., retirar o que deu, livremente e em consciência à R., configura manifesto abuso de direito. Pediu ainda a condenação do A. como litigante de má-fé.
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Realizada a audiência final foi proferida sentença, julgando improcedente o pedido principal e procedente o pedido subsidiário, e absolvendo o Autor do pedido de condenação por litigância de má-fé.
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Inconformada, a Ré apelou, finalizando a respectiva minuta com as seguintes conclusões[3]: «VII – In casu, o autor entregou à ré a quantia de € 80 000,00 com vista à aquisição, em nome dela, do apartamento em causa, ou seja, o autor, ora recorrido, não entregou à ré aquela quantia com vista à aquisição, por ambos, de um imóvel, mas sim à aquisição, pela ré apenas, e em seu nome, como resulta dos factos provados.
VIII – Pelo que a sentença recorrida ao julgar como julga, salvo melhor opinião, contradiz a prova produzida, pois que, na realidade, interessa apurar se o interesse particular da ré, ora recorrente e as expetativas – legítimas, assinale-se – por si criadas devem ser atendidos.
IX – Defendendo-se o primado da verdade material em relação à realidade meramente formal, não se retirando ao artigo 1762º do Código Civil, o caráter imperativo, mas apenas não aplicando tal norma quando não está em causa a razão que a justifica: a celebração de uniões entre pessoas de idade muito distanciada por mero interesse económico, o que não é manifestamente o caso dos autos, pois que à data do casamento recorrido tinha 66 anos e recorrente 60 anos de idade.
X – Mais, não obstante, declararem-se nulas as doações entre casados no regime imperativo da separação de bens, possibilita-se aos nubentes fazerem doações entre si, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1720º do Código Civil.
XI – Dos factos provados resulta que o recorrido entregou à recorrente a quantia de € 80 000,00 com vista à aquisição, em nome dela, do apartamento em causa, mas não resulta, nem foi alegado, que o recorrente pretendesse a devolução do mencionado valor ou que tivesse imposto qualquer condição à recorrida, o que nos conduz no sentido da legitimidade e, sobretudo, razoabilidade, das expetativas criadas na recorrente.
XIII – Apenas, na sequência de uma ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, intentada pelo recorrido (cfr. factos provados) veio o mesmo a, como pedido subsidiário, exigir a devolução do montante em causa.
XIV – Ao desconsiderar a perfeita e razoabilidade das expetativas criadas pela recorrente e a sua repercussão no instituto do abuso de direito, veio a sentença de que se recorre incorrer em erro de julgamento.
XV – Isto porque face à matéria apurada, impunha-se considerar o instituto de abuso de direito, formulado no artigo 334º do Código Civil, integrando o comportamento do recorrido como “venire contra factum proprium”; assim, não entendendo, violou a sentença recorrida aquele dispositivo legal.
XVII – Pelo contrário, e salvo melhor opinião, deveria a sentença recorrida ter absolvido a ré, ora recorrente, não só dos restantes pedidos formulados pelo recorrente, como absolveu, mas também deste pedido em particular, quanto à nulidade da doação e consequente obrigação de restituição ao recorrido da quantia de € 80 000,00.
XVIII - Concluindo, atento o exposto, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 334º do Código Civil».
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O requerido não contra-alegou, tendo apresentado requerimento para junção aos autos de certidão da acta da audiência do processo de divórcio, cuja junção foi admitida pela ora Relatora no despacho liminar.
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Observados os vistos, cumpre decidir.
*****II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, no caso em apreço, a única questão que importa decidir é a de saber se o Autor actuou com abuso do direito ao pedir a restituição à Ré da quantia de 80.000,00€, que na constância do casamento entre ambos lhe entregou, sem exigências ou condições, para que esta adquirisse uma fracção autónoma.
*****III – Fundamentos III.1. – De facto Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos: «1. O autor e a ré M… contraíram casamento civil, sob o regime imperativo da separação de bens, em 12 de junho de 2013, na Conservatória do Registo Civil de Faro.
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Após o casamento o autor e a ré viajaram para a Austrália, onde residiram entre meados de julho de 2013 e inícios de setembro de 2015.
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Enquanto residiram na Austrália viveram numa casa pertencente ao autor, o qual foi emigrante na Austrália durante muitos anos – casa essa com o seguinte endereço: “… Austrália”.
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E, em inícios de setembro de 2015, regressaram a Portugal e passaram a residir no referido Sítio da …, em Faro.
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O autor disse à ré que tinha cerca de € 70.000,00 (setenta mil euros) ou € 80.000,00 (oitenta mil euros) disponíveis para que a ré adquirisse um apartamento.
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A ré propôs-se pôr à venda um prédio rústico de sua propriedade, sito em Azinhal e Amendoeira, da União das Freguesia da Conceição e de Estoi do concelho de Faro, inscrito na matriz sob o artº. … Secção … e descrito na C.R.P. de Faro sob o nº …, em Estoi, e a fim...
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