Acórdão nº 747/19.8T8CNT.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 05 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelCRISTINA NEVES
Data da Resolução05 de Abril de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra RELATÓRIO AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra H..., LDA., peticionando que seja: i) declarado nulo o contrato de mutuo celebrado com a R., por inobservância de formalidade ad substantiam (escritura pública) prescrita na lei para a celebração do mesmo, nos termos dos artigos 1143º e 220º, ambos do Código Civil; e, ii) declarada a anulabilidade do negócio fiduciário celebrado entre Autor e Ré, nos termos do art.º 282º, nº 1 do Código Civil.

Para o efeito alega, em síntese, que na sequência de penhora de um imóvel de sua propriedade, acordou com a R. na concessão de um empréstimo da quantia de € 30 000,00, correspondente ao valor necessário para liquidar a dívida exequenda, impondo a R. como contrapartida deste empréstimo a venda do referido imóvel por esse valor, acordando simultaneamente num arrendamento ao A. com opção de compra, no final do respectivo prazo, com imputação das rendas pagas no valor da compra, caso exercesse a opção.

Porém, chegado o momento de exercer o direito de compra, o autor comunicou à ré que esta seria efectuada pelos seus filhos, mediante recurso ao financiamento bancário, o que aquela recusou.

Conclui, assim, o autor que a ré agiu de má-fé, aproveitando-se da fragilidade daquele para celebrar um negócio fraudulento e desproporcionalmente vantajoso para si, já que adquiriu uma casa de habitação por uma quantia de € 30 000,00 e ainda recebeu € 6 000,00 ao longo de dois anos do próprio vendedor, evitando que o imóvel regressasse à propriedade deste. Face ao exposto, entende o autor que o acordo celebrado entre as partes corresponde a um mútuo que serviu de instrumento a um negócio fiduciário, pugnando pela nulidade do primeiro, por falta de forma, e pela anulação do segundo, por ser usurário, face ao aproveitamento/exploração da situação de fragilidade do autor.

* Citada para contestar, invocou a ré, antes de mais, a insuficiência ou inaptidão dos pedidos formulados pelo autor para obter a sua condenação, e defendeu-se ainda por impugnação, alegando que o contrato foi o de simples compra e venda e arrendamento com opção de compra. Mais alega que o autor age em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, e com manifesta má-fé, porquanto celebrou um negócio de compra e venda ciente de todos os seus termos e respectivas consequências, e pretende agora aparentar um acordo negocial distinto e que não corresponde à realidade.

Deduziu ainda a ré um pedido reconvencional, com base no contrato de arrendamento celebrado entre as partes, alegando que o autor/reconvindo não pagou a primeira renda acordada, relativa ao mês de Novembro de 2016 e, como tal, deve ser condenado a suportar o respectivo pagamento à ré.

Termina ainda pedindo a condenação do autor como litigante de má-fé, por ter deturpado factos e utilizado de forma manifestamente reprovável o processo para obter um benefício a que sabe não ter direito.

* O A. deduziu impugnação das excepções invocadas e veio apresentar novo articulado, aperfeiçoando os pedidos formulados pedindo, a título principal, o reconhecimento da existência de um contrato de mútuo celebrado entre as partes e declaração da respectiva nulidade, por falta de forma, com a consequente restituição do valor entregue e, subsidiariamente, o reconhecimento do negócio como sendo uma venda fiduciária, bem como a sua anulação, por usura.

* Admitido o articulado e a alteração dos pedidos, realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador com fixação do objecto do litígio e elaboração dos temas de prova.

* Após, realizou-se audiência de julgamento, sendo proferida sentença na qual se julgou: “

  1. Julga-se parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, declara-se a anulação do contrato de alienação fiduciária celebrado entres as partes, condenando-se a ré a restituir ao autor o prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...49 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...77 da freguesia ..., devendo, de igual modo, o autor restituir à ré o valor € 30 000,00 que lhe foi entregue por força do referido contrato; B) Julga-se totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo o autor/reconvindo de tudo o peticionado.” * Não conformada com esta decisão, impetrou a R. recurso da mesma relativamente à matéria de facto e de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem: “I – Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos que julgou: A) Parcialmente procedente a acção proposta pelo autor (aqui recorrido) e consequentemente declarou a anulação do contrato de alienação fiduciária celebrado entre as partes, condenando a ré, aqui recorrente, a restituir ao autor, aqui recorrido, o prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...49 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...77 da freguesia ..., devendo, de igual modo, o autor restituir à ré o valor de € 30.000,00, que lhe foi entregue por força do referido contrato; B) Totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo o autor de tudo o peticionado; e C) Com custas a cargo da ré.

    II – Entende a ré (aqui recorrente) que o douto Tribunal a quo não andou bem ao decidir como decidiu.

    III – Na realidade, na “III – Fundamentação de facto” da douta sentença recorrida vem elencados os “III – I – Factos provados” (v. págs. 4 a 8 da referida sentença) e que são os seguintes: 1. O autor é divorciado e pai de dois filhos, residindo actualmente sozinho na localidade de ....

    1. Ao longo dos últimos 8 anos, tem passado por diversas dificuldades, associadas a problemas de saúde entretanto manifestados, problemas familiares e ao agravamento da sua situação económica.

    2. No ano de 2013 entrou em processo de divórcio litigioso, que correu os seus termos na Comarca ..., Juízo de Família e Menores, Juiz I, sob o proc. n.º 610/15.... e nos anos seguintes foi executado em diversos processos de execução fiscal.

    3. Com um filho, à data, menor e estudante, cujas responsabilidades parentais lhe foram atribuídas e um historial clínico crítico, que lhe determinou períodos consecutivos de baixas médicas, desde 2015/2016, o autor ficou numa situação de completa fragilidade económica, de saúde e, consequentemente, emocional.

    4. No ano de 2013, o autor decidiu contrair um empréstimo junto da C..., no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros), que deu origem ao contrato de mútuo n.º ...81.

    5. Como garantia do cumprimento das obrigações decorrentes daquele empréstimo, o autor declarou constituir a favor daquela C... uma hipoteca sobre o seu prédio urbano, casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sito na Rua ..., ..., ... da ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...49, com o valor patrimonial de € 58.150,00, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...77 da freguesia ..., cujo direito de propriedade estava registado em seu nome, pela Ap. ...30.

    6. Contudo, o autor viu-se incapaz de efectuar o pagamento de diversas prestações devidas por força do referido empréstimo, tendo a C... instaurado um processo executivo para cobrança de dívida, que correu termos no Juízo de Execução da Comarca ..., Juiz I, sob o n.º 1972/15.....

    7. No âmbito desses autos, em que figurava como exequente a C..., e como executado o autor, foi designado o dia 24 de Novembro de 2016, pelas 14:00h para abertura de proposta em carta fechada, do bem imóvel supra identificado.

    8. Encontrando-se em vias de perder o referido imóvel, o autor abordou um conhecido, residente na sua localidade, e informou-o da situação, pedindo, em desespero, a sua ajuda.

    9. Essa pessoa, incapaz de ajudar o autor financeiramente, indicou-lhe o representante da sociedade aqui ré, como terceiro a quem poderia recorrer, o que efectivamente o autor veio a fazer.

    10. Assim, o autor contactou BB, representante legal da ré, informando-o de toda a sua conjuntura económica e social.

    11. As partes acordaram que, como contrapartida da entrega da quantia de € 30.000,00, no próprio dia da realização do pagamento da quantia exequenda, e consequente distrate da hipoteca do imóvel do autor, celebrariam um contrato de compra e venda do imóvel em causa, podendo o autor continuar a usufruir do mesmo, através de um contrato de arrendamento, com direito a readquirir o imóvel decorridos dois anos, diante do pagamento de € 44.000,00.

    12. Atendendo à situação de desespero em que o autor se encontrava, e sendo esta a única forma de evitar ver o seu imóvel vendido em sede de execução, o mesmo acedeu ao dito acordo.

    13. Por escritura pública outorgada em 31 de Outubro de 2016, o autor declarou vender à ré e esta declarou comprar-lhe, pelo preço de € 30.000,00, o prédio urbano descrito no ponto 6.

    14. No dia 1 de Novembro de 2016, autor e ré celebraram um contrato de arrendamento para fins habitacionais sobre o dito prédio urbano, pelo prazo de dois anos, através do qual a segunda declarou dar de arrendamento ao primeiro o local supra identificado, acordando no seguinte: --- A renda mensal é de € 250,00, a pagar até ao dia 8 do mês a que disser respeito, entregando o segundo outorgante (aqui autor), no acto de assinatura do contrato, a quantia correspondente à primeira renda, relativa ao mês de Novembro de 2016; --- Durante o período de vigência do presente contrato, a segunda (trata-se de um lapso, dado que é a primeira outorgante, no processo ré, que se obriga a vender ao segundo outorgante, no processo autor) outorgante (aqui ré) obriga-se a vender ao segundo o imóvel objecto do locado, pelo preço de € 44.000,00, caso este manifeste intenção de o adquirir...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT