Acórdão nº 538/22.9JALRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 12 de Outubro de 2022
Magistrado Responsável | PAULO GUERRA |
Data da Resolução | 12 de Outubro de 2022 |
Emissor | Court of Appeal of Coimbra (Portugal) |
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO 1.
No processo nº 538/22.9JALRA, do Juízo de Instrução Criminal de Leiria (Juiz 1), foi proferido em 27 de Junho de 2022, o seguinte DESPACHO (transcrição): «1. Promove o M.P.: Junto da operadora MEO/Altice e por reporte ao nº ...18 utilizado pelo suspeito AA, a) registo das chamadas efectuadas/recebidas (facturação detalhada), com localização celular, do dia 05.06.2022, entre as 10h15m e as 13h15m; b) informe se na Antena com a descrição ...2623 ...-... 2, cuja preservação se solicitou a fls. 70 e 71, existiu, no dia 05.06.2022, no período compreendido entre as 10h15m e as 13h15m, alguma ligação/conexão do MSISDN ...18 e, em caso positivo, em que grupos data/hora as mesmas se verificaram.
Conhecendo: 2.Trata-se de aceder a dados de comunicações.
Ora, a jurisprudência estabilizada erigia a seguinte norma de decisão para o caso concreto: Tratando-se de dados de comunicações “conservadas” ou “preservadas” já não é possível aplicar o disposto no artigo 189º do Código de Processo Penal - a extensão do regime das escutas telefónicas - aos casos em que são aplicáveis as Leis nº 32/2008 e 109/2009 e a Convenção de Budapeste. Isto é, para a prova de comunicações preservadas ou conservadas em sistemas informáticos existe um novo sistema processual penal, o previsto nos artigos 11º a 19º da Lei 109/2009, de 15-09, Lei do Cibercrime, coadjuvado pelos artigos 3º a 11º da Lei nº 32/2008, se for caso de dados previstos nesta última (cfr. Ac. RL de 7.3.2017, rel. ARTUR VARGUES; Ac. RE de 25.10.2016, reproduzido no Ac. RE de 22.2.2022, rel. GOMES DE SOUSA, todos acessíveis na base de dados virtual www.dgsi.pt).
Assim, em breves contas, a referência ao artigo 189 do C.P.P. no caso concreto é inexistente, e muito menos objecto de repristinação, como pretende o MP.
Na verdade, o âmbito normativo deste texto é diverso (comunicações presentes/comunicações em dados preservados), e em matéria de direitos fundamentais as restrições carecem de lei, cfr. art. 18 da C.R.P..
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O referido (na promoção) acórdão do TC com força obrigatória geral decidiu: Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6º da mesma lei, por violação do disposto nos n.os 1 e 4 do artigo 35º e do nº 1 do artigo 26º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, todos da Constituição.
Daqui decorre claro que a obtenção de dados conservados (de base ou de tráfego, não importa) carece de lei precisa no âmbito temporal e que não ofenda tais direitos. Por agora são e devem ser destruídos. Não será pois deferido tal acesso.
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O aludido quanto ao artigo 6º nº 2 da Lei 41/2004 é manifesto erro quanto ao âmbito de aplicação.
Aí se diz “necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações”. Igual se deve dizer da referência à Lei 23/96, a qual regula a distribuição de condutas contratuais entre utente e prestadores de serviços. Por último, assinale-se que a localização celular referida nesse diploma, é útil tão só pra efeitos estatísticos, daí anónima. Em tudo, conclui-se: a ponderação foi feita por via legislativa, não se impondo assim que aqui se faça.
Em devida concisão: os diplomas referidos aplicam-se à relação contratual e não a restrições de direitos fundamentais por via da investigação criminal.
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Assim, atento o disposto no art. 32 nº 8 da C.R.P., indefere-se a promoção na sua totalidade (a) e b)).
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A não entender-se assim, o promovido a nosso ver falha noutro nível.
O caso é enquadrado no crime previsto no artigo 272 nº 1 b) do C.P., sendo aplicáveis as normas procedimentais descritas no art. 2º nº 1 g) da Lei 32/2008 e art. 1º f) do C.P..
Ora, resulta dos autos que o suspeito apontado conhecia a casa e a deslocação que os residentes fariam no dia da ocorrência.
Esta asserção permite desde logo afastar a norma incriminadora apontada: o imputado não queria criar perigo para ninguém. Logo, falta o pressuposto de aplicabilidade por não se verificar o previsto nos arts. 2º nº 1 g) da Lei 32/2008 e art. 1º f) do C.P..
Mais se alude que o imputado AA foi companheiro de BB, uma das residentes da casa em causa, e ambos têm no presente um litígio acerca da responsabilidade parental. Ora, a base de suspeição é um litígio na “sequência da separação entre ambos em 2019”, decorrente da regulação do poder paternal.
Ora, esta asserção é manifestamente escassa para ser realizado um juízo de suspeição.
Em primeira linha, não é apontado um único comportamento concreto (no tempo e modo) ao referido imputado. Ora, o juízo de suspeição não prescinde de uma qualquer conduta do próprio.
Assim, é de concluír que o aludido AA não é suspeito, o que impõe que não possa ser visado pela ingerência promovida.
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Assim, por falta do requisito mencionado no art. 9º nº 3 a) da Lei 32/2008 e no art. 2º nº 1 g) da Lei 32/2008, indefere-se a promoção na sua totalidade (a) e b))».
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Dele recorre o Ministério Público, concluindo assim nessa peça processual (transcrição): «1.ª Nos presentes autos investiga-se a prática de um crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previsto e punido pelo artigo 272º, nº 1, al. b), do Código Penal.
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É suspeito da sua prática AA, por única pessoa com motivo e oportunidade, ante conflituosidade actual com os ofendidos, plasmada em processos em curso, a incluir de natureza criminal, conhecedora dos hábitos e rotinas da família, e que sabia da ausência dos ofendidos da residência no dia dos factos 3.ª O suspeito AA, ao introduzir-se na residência dos ofendidos, abrindo a torneira de passagem que impedia o gás de chegar ao tubo que deveria ligar o fogão, com o que provocou a libertação de gás, que veio a causar uma explosão seguida de incêndio, com destruição parcial da residência dos ofendidos, representou e quis colocar em perigo de destruição o edifício, que lhe era alheio e tinha o valor aproximado de €200.000,00.
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Temos assim por verificado o crime indicado, nas suas vertentes objectiva e subjectiva.
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A obtenção de facturação detalhada e de dados de localização celular associados a eventos de rede de período que compreende a prática do crime, por reporte ao número de telemóvel do suspeito, é imprescindível à confirmação da identidade do agente.
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No que concerne especificamente aos dados de localização, os quais assumem natureza híbrida, podendo integrar dados de base ou dados de tráfego.
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O que se pretende são, na sua essência, dados de localização enquanto dados de base, por não contenderem com comunicações entre pessoas, mas apenas com a localização do equipamento.
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Todavia, tais dados podem facilmente estar associados a comunicações entre pessoas, assumindo-se assim, e também, como dados de tráfego.
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A obtenção dos dados de tráfego, ao não incidirem sobre o próprio conteúdo da comunicação a que esses dados se referem, restringe direitos fundamentais de uma forma muito menos intensa do que a intervenção nas comunicações.
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Com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17.07., conjugada com o artigo 6º da mesma lei, pelo Acórdão nº 268/2022, do Tribunal Constitucional, aplicam-se as disposições conjugadas dos artigos 187º, nºs 1, a) e 4, a) e 189º, nº 2, do Código de Processo Penal, 6º, nº 2, da Lei nº 41/2004, de 18.08., e 10º da Lei nº 23/96, de 26.07.
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Os indicados normativos processuais penais não foram revogados pela Lei nº 32/2008, de 17.07., ou, caso assim se não entenda, com a indicada declaração de inconstitucionalidade, o regime plasmado na Lei nº 32/2008, de 17.07., é revogado, sendo repristinado o regime anterior, a saber, e no que ora importa, o artigo 189º, nº 2, por reporte ao artigo 187º, nº 1, al. a) e nº 4, al. a), do Código de Processo Penal.
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Os dados em apreço reportam-se a suspeito identificado e a “crime de catálogo”.
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A conservação de tais dados opera nos termos da Lei nº 21/2004, de 18.08., porque previstos no nº 2 do seu artigo 6º e por um período de 6 meses, nos termos do disposto no artigo 10º da Lei nº 23/96, de 26.07. (tendo já sido alvo de preservação por parte da operadora), sendo elemento probatório lícito.
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O despacho do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, ao indeferir a obtenção de facturação detalhada e dos dados de localização associados a eventos de rede, violou o disposto nos artigos 187º, nºs 1, a) e 4, a) e 189º, nº 2, do Código de Processo Penal, 6º, nº 2, da Lei nº 41/2004, de 18.08., e 10º da Lei nº 23/96, de 26.07., pelo que deverá revogar-se o mesmo, substituindo-o por outro que defira a promovida diligência».
3.
Respondeu o «suspeito»[1] AA, sustentando a tese do despacho recorrido.
4.
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.
5.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b), do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO 1.
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se foi legal o despacho recorrido ao indeferir o requerimento do MP no seguinte: - Determinar junto da operadora MEO/Altice e por reporte ao nº ...18 utilizado pelo suspeito AA, · o registo das chamadas...
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