Acórdão nº 1602/19.7T8CTB.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 03 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelBARATEIRO MARTINS
Data da Resolução03 de Novembro de 2020
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório A (…), casado, residente (…) , intentou a presente ação de condenação com processo comum contra T (…), solteira, maior, residente (…) , pedindo que seja: “a) anulado o contrato de mútuo celebrado em 24/11/2017 entre o A. e a R.; b) anulado o contrato de compra e venda do veículo automóvel BMW com a matrícula X(...) celebrado em 24/11/2017 entre o A. e a R.; e, a título subsidiário, c) ordenada a modificação do contrato de mútuo no que respeita ao valor, devendo fixar-se como quantia mutuada o valor de € 14.000,00, ao invés de € 20.000,00, obrigando-se a R. a devolver o montante de € 500,00 recebidos indevidamente.” Para tanto, alegou, em síntese, que, num momento de necessidade e com vista a substituir uma providência de arresto por caução, necessitou de € 13.847,16 de um dia para o outro, tendo recorrido a C (…)que inicialmente se disponibilizou a emprestar-lhe € 14.000,00 e depois exigiu que fosse celebrado um contrato de mútuo com a R. e que do mesmo ficasse a constar que o montante do empréstimo era de € 20.000,00 em numerário não obstante só lhe emprestar € 14.000,00; e exigiu, ainda, que desse de garantia 3 viaturas (a de marca Volkswagen, com a matrícula Y(...) 1; a de marca Nissan, com a matrícula Z(...) ; e a de marca BMW, com a matrícula X(...) ), para o que formalizaram contratos de compra e venda para, caso o A. não restituísse o empréstimo, a R. se pagar.

Mais alegou que já pagou € 14.500,00, tendo o referido C (…) recorrido aos serviços da oficina do A. (relativos à sua viatura Jaguar com a matrícula W(...) ) sem pagar o valor dos mesmos, de € 460,13, dizendo que ficava por conta da dívida do A.; sendo que a R. e o C (…) insistem no recebimento da quantia de € 20.000,00, ameaçam que vão registar o veículo da marca BMW com a matrícula K(...) (que vale € 13.000,00) e o C (…) aparece várias vezes na oficina do A. a “pressionar” o pagamento do que falta.

A R. contestou.

Por impugnação, negou que o empréstimo tivesse sido de apenas de € 14.000.00, alegando/explicando que o A. pediu a C (…) € 20.000,00 emprestados e que este, não dispondo de tal montante, atenta a amizade, afeição e confiança que nutria pelo A., perguntou à R. se esta tinha disponível essa quantia e se a emprestava ao A., ao que a R. acedeu, sendo que desconhecia o “estado de necessidade” em que o A. se encontrava; acrescentando que “foi o próprio (Autor) quem se quis colocar nessa situação” e que “o Autor, sempre a acreditar-se na sua tese, sempre esteve livre de aceitar ou não, ninguém lhe impingiu nada.”; e confirmando que, para garantia do pagamento da quantia mutuada, foram formalizados 3 contratos de compra e venda de veículos automóveis (mas não exigiu a entrega efetiva dos mesmos).

Por exceção, invocou a caducidade do direito anulatório (com fundamento em usura) exercido pelo A., para além de invocar que o contrato foi confirmado quando o A. foi procedendo ao pagamento de € 14.500,00 por conta do empréstimo.

Por reconvenção, invocou o que falta pagar/restituir (€. 5.500,00) do empréstimo e a não entrega do veículo BMW, com a matrícula K(...) , dado em garantia (e que, segundo a R., não vale mais do que € 7.000,00).

E, concluindo, pediu que: a) Deve a exceção de caducidade ser julgada procedente e a R. absolvida do pedido; b) De a ação ser julgada improcedente por não provada; c) Deve o A. ser condenado a pagar à R. o montante de € 5.500,00 e juros de mora desde 24 de Fevereiro de 2018 até efetivo e integral pagamento; e d) Deve o A. ser condenado a entregar-lhe o veículo com a matrícula K(...) e, também, numa sanção pecuniária compulsória de € 200,00, por cada dia de atraso.

O A. respondeu às exceções e ao pedido reconvencional.

Realizou-se a audiência prévia, tendo-se admitido a reconvenção, proferido despacho saneador – em que se relegou para final o conhecimento das exceções suscitadas e em que se declarou a instância regular, estado em que se mantém – e identificado o objeto do litígio e enunciado os temas da prova.

Designada e realizada a audiência final, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que concluiu do seguinte modo: “ (…) julgo a presente ação procedente e a reconvenção improcedente e, em consequência: 1. Declaro anulado o contrato celebrado entre as partes identificado em 19. dos factos provados por se mostrarem verificados os pressupostos da usura e, em consequência, condeno a Ré T (…) a devolver ao Autor A (…) os € 500,00 (quinhentos euros) que este lhe entregou e que excedem os € 14.000,00 que aquela lhe havido entregado a título de empréstimo, bem como a devolver a declaração de venda datada de 24 de Novembro de 2017 relativa ao veículo desportivo com a matrícula K(...) e o passaporte técnico com licença 12884 emitido em 08/06/2017.

  1. Absolvo o Autor/Reconvindo A (…) dos pedidos reconvencionais deduzidos pela Ré/Reconvinte T (…). (…)” Inconformada com tal decisão, interpõe recurso a R/reconvinte, visando a revogação do decidido quanto à ação e à reconvenção e a sua substituição por outra que julgue a ação totalmente improcedente e que, na sequência da alteração da matéria provada e não provada, julgue a reconvenção procedente, “condenando-se o A. a pagar à R. a quantia de 5 500,00 €, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa máxima em vigor, desde a data em que se constituiu em mora (24 de Fevereiro de 2018) até efetivo e integral pagamento.” Terminou a sua alegação com conclusões que se estendem por 18 páginas, razão pela qual aqui não se procede à sua transcrição.

    O A. respondeu, sustentando, em síntese, que a decisão recorrida não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente as referidas pelo recorrente, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

    Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

    * II – “Reapreciação” da decisão de facto Como “questão prévia” à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do recurso dos AA. – analisar as questões a propósito da decisão de facto colocadas a este Tribunal.

    Foram gravados os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto; constando assim do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto, pelo que e é possível modificar aquela decisão, se enfermar de erro de julgamento[1].

    Faculdade – de modificar a decisão de facto – em cujo uso, costumamos “avisar”, é nosso dever ser contidos, cautelosos e prudentes, uma vez que existem elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo de exteriorização e verbalização dos depoentes, não importados para a gravação, suscetíveis de influir, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhes. O que, porém – salienta-se e enfatiza-se, para que não haja quaisquer equívocos interpretativos sobre o que se acabou de dizer – não significa que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto apenas envolve a correção de pontuais, concretas e excecionais erros de julgamento; efetivamente, a Relação, quando aprecia as provas – e pode para tal atender a quaisquer elementos probatórios – faz um novo julgamento da matéria de facto, vai à procura da sua própria convicção, assegura o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto (ou seja, a atividade da Relação não se pode/deve circunscrever a um mero controlo formal da motivação efetuada na 1.ª Instância).

    Efetuados tais prévios e “tabelares” esclarecimentos, debruçando-nos sobre as concretas questões – tendo presente as posições assumidas pelas partes nos articulados, analisados os documentos juntos e ouvido o registo, efetuado em CD, da audiência de julgamento – concluímos, antecipando desde já a solução, que não assiste razão à R./apelante.

    Vejamos: Os factos que, segundo a R/apelante, foram incorretamente julgados são os pontos 16, 17, 23 e 34 dos factos provados e as alíneas h), i), j), l), m), n) e q) dos factos não provados, que, ainda segundo a R/apelante, devem merecer “respostas” essencialmente opostas às que lhe foram dadas na sentença recorrida.

    Em todo o caso – embora sejam 11 as “respostas” colocadas em crise – acaba, verdadeiramente, por ser só um o tema central da divergência (sendo o resto bastante acessório e instrumental).

    Como a R/apelante pertinentemente observa, a dado passo da sua alegação recursiva (e da conclusão 26), “(…) todo o processo gira à volta de saber se a R. emprestou ao A. a quantia de € 14 000,00, como este afirma, ou se na verdade lhe emprestou a quantia de € 20 000,00 tal como afirma a R. e consta do documento particular autenticado, por ambos assinado no dia 24 de novembro de 2017. Este é o cerne da questão.” É isto mesmo: tudo está em saber – é o cerne de toda a questão de facto (e de todo o litígio) – se a R. emprestou ao A., não os € 20.000,00 que constam do documento, mas tão só os € 14.000,00 alegados pelo A..

    Delimitada pois a essência da divergência factual, debrucemo-nos sobre ela: Começando por dizer que previamente à apreciação da prova produzida[2], se colocava/coloca a questão de saber que meios de prova podiam ser produzidos/valorados para poder dar como provado que a R. emprestou tão só € 14.000,00 ao A...

    Efetivamente, quando um negócio jurídico (cuja exata qualificação mais à frente referiremos) é formalizado por escritura pública ou, como foi o caso, por um documento particular autenticado (que, nos termos do art. 377.º do C. Civil, tem “a força probatória dos documentos autênticos”), de imediato surge a questão de estabelecer o alcance e a medida em que os atos referidos em tal documento autêntico ou autenticado e os factos neles mencionados se devem considerar como correspondendo à realidade e cobertos pela força probatória plena; e/ou em que medida, na perspetiva inversa, se podem ou não provar factos que “contrariem/neutralizem” tal força probatória plena.

    É que, como é sabido, tais documentos (autênticos e...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT