Acórdão nº 2464/03.1 TALRA de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 05 de Dezembro de 2007

Magistrado ResponsávelFERNANDO VENTURA
Data da Resolução05 de Dezembro de 2007
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório [1] No processo comum com o nº 2464/03.1 TALRA do 1º Juízo Criminal de Leiria, por sentença proferida em 05/04/2006, foi A... condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, sob a forma continuada, p. e p. à data dos factos pelos artsº. 24º e 27º-B do D.L. 20-A/90, de 15/1, com referência aos D.L. 394/93, de 24/11, e 104/95, de 14/6, e 30º, nº2 do CP e actualmente pelos artºs. 105º, nºs 1 e 2 e 107º do R.G.I.T. e 30º, nº2, do CP, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,00€, e bem assim a B..., como responsável de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, sob a forma continuada, p. e p. pelas mesmas disposições penais, condenada na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,00€. Na mesma decisão foram os arguidos condenados, solidariamente, a pagar à Segurança Social a quantia de €7.003,22, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data do vencimento de cada um dos montantes não entregues, até integral pagamento.

[2] Essa condenação transitou em julgado em 31/07/2006.

[3] Em 22/01/2007, o Ministério Público apresentou requerimento, no sentido de que os factos descritos na sentença se encontram despenalizados e promove o arquivamento dos autos.

[4] Por despacho judicial de 02/02/2007, foi julgada extinta a responsabilidade criminal, considerando que os factos pelos quais os arguidos foram condenados não são mais crime e que ocorria impossibilidade legal superveniente da instância cível.

Escreveu-se Transcrição.

: O arguido A... foi, além do mais, condenado nos presentes autos pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada (cf. art.s 24°, 27°-B do RJIFNA, 105°, n. ° 1 e 2, 1070, n. ° 1 do RGIT, e art. ° 30°, n. ° 2 e 79° do CódigoPenal) na pena de 220 dias de multa à taxa diária de €5,00; a sociedade B.... foi declarada responsável pelo mesmo crime na pena de 220 dias de multa à taxa diária de €5,00; ambos, arguido e sociedade, foram ainda condenados no pagamento solidário da quantia de €7.003,22, acrescida de juros de mora à taxa legal, até integral pagamento (fls.345 a 348).

A sentença proferida nos presentes autos já transitou em julgado, mas ainda não foi cumprida.

O Ministério Público veio, em 22.01.2007, promover a extinção do procedimento criminal, por despenalização da conduta em face da entrada em vigor, em 01.01.2007, do art.° 105°, n. ° 4, alínea b) do RGIT (fis. 382 a 387).

Em face da decisão abaixo proferida, entende-se desnecessário notificar os arguidos para eventual tomada de posição quanto ao promovido.

Cumpre apreciar e decidir.

A norma em apreço nos autos preceitua o seguinte: “Art. ° 105° (abuso de confiança): 1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido...

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 1.000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária." O art.° 105°, n. ° 6 foi alterado pela Lei n.° 60-A/2005 quanto ao valor, passando de € 1.000 para € 2.000.

Sucede que, entretanto, entrou em vigor, em 01.01.2007, a Lei n.° 53-A/2006, de 29 de Dezembro que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2007.

Este diploma introduziu alterações ao n.° 4 do art.° 105° do RGIT. Esta norma passou a ter a seguinte redacção: Art. ° 105° (...) 1 -...

2 - ...

3 - ...

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

5-...

6 - ...

7 - ...".

De acordo com a nova redacção da lei, verifica-se que, independentemente do valor da prestação tributária - ou devida à Segurança Social ex vi do disposto no art.° 107° do RGIT - uma vez que nenhuma distinção é feita pelo Legislador, é sempre necessário, segundo o novo regime, proceder-se a uma notificação do agente para que, no prazo de 30 dias (prazo substantivo a que alude o art. ° 279° do C. Civil?), proceda ao pagamento do imposto ou da prestação em falta, dos juros e da coima aplicável.

Trata-se, prima facie, de um regime legal posterior mais favorável ao arguido, já que o facto deixa de ser punível se o mesmo, notificado para o efeito, na sequência da moratória legal de 30 dias concedida, proceder ao pagamento da prestação (tributária ou do desconto/quotização deduzido na remuneração do trabalhador, consoante os casos), juros e coima.

Quer dizer: o agente tem agora a possibilidade de ver afastada a punibilidade da sua conduta se, uma vez notificado, proceder a tal pagamento no prazo de 30 dias.

Naturalmente que este regime é inovatório e tem de reflectir-se quanto aos processos cujo julgamento já foi requerido, aos que se encontram a decorrer e aos processos já julgados e ainda não extintos pelo cumprimento.

Quid finde? A solução - longe disso! - não se„ afigura líquida, não se percebendo bem o que pretendeu o Legislador, já que o texto legal se apresenta ambíguo e obscuro.

Inexiste doutrina ou jurisprudência publicada sobre a questão suscitada pela alteração legal, o que dificulta, em muito, a procura de uma solução que se mostre tecnicamente acertada.

Uma coisa é certa: se bem que a interpretação da lei não deva cingir-se apenas à sua letra, deverá reconstituir-se o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, os trabalhos preparatórios, devendo tal pensamento encontrar na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (cf. art. ° 90, n. ° 1 e 2 do CC).

Em Direito Penal, contudo, deve empreender-se uma interpretação que favoreça e que não prejudique o arguido, tendo em conta a natureza de tipo-garantia dos tipos-de-crime em vigor.

Vimos a letra da lei. Vejamos os trabalhos preparatórios, é dizer, o elemento histórico do preceito.

O Relatório do Orçamento do Estado para 2007, na sua secção de política fiscal, conclui, quanto a este particular, que “A entrega da prestação tributária (retenções de IR/selo e IVA) está actualmente associada à obrigação de apresentação de uma declaração de liquidação/pagamento.

A falta de entrega da prestação tributária pode estar associada ao incumprimento declarativo ou decorrer simplesmente da falta de pagamento do imposto liquidado na referida declaração.

Quando a não entrega da prestação tributária está associada à falta declarativa existe uma clara intenção de ocultação dos factos tributários à Administração Fiscal.

O mesmo não se poderá dizer quando a existência da dívida é participada à Administração Fiscal através da correspondente declaração que não vem acompanhada do correspondente meio de pagamento, mas que lhe permite desencadear de imediato o processo de cobrança coerciva.

Tratando-se de diferentes condutas, com diferentes consequências na gestão do imposto, devem, portanto, ser valoradas criminalmente deforma diferente.

Neste sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, evitando-se assim a "proliferação" de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público ria sequência do pagamento do imposto" (sublinhado nosso).

O legislador pretendeu com o novo regime, efectivamente, o quê? Descriminalizar a conduta? Despenalizar a conduta? Introduzir uma nova e aparente condição objectiva de punibilidade da conduta? Conceder, meramente, uma nova moratória legal para regularização das prestações em falta? Modificar o tipo legal de crime? Transformar o crime em ilícito contra-ordenacional (o legislador refere, na nova redacção, coima; mas a que coima se refere? À coima referente à contra-ordenação por falta de entrega das declarações? Ou referente à contra-ordenação - criada ex novo? - pelo não pagamento atempado das quantias em dívida?)? Não se alcança com clareza, sendo a questão de difícil resolução.

É certo que antes existia - e ainda hoje se mantém - uma moratória: um prazo, de 90 dias, para o agente regularizar a prestação em falta; agora, para além dela, vem introduzir-se uma segunda moratória de 30 dias.

É certo e evidente que, com esta inovação, o campo de incriminação/ punição mostra-se reduzido. Tal faculdade agora concedida ao agente em falta não se inscreve no ilícito como seu elemento objectivo incriminador ou como fundamento de imputação subjectiva, logo, abarcável pelo dolo...

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