Acórdão nº 4489/21.6T8GMR-A.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 26 de Maio de 2022

Magistrado ResponsávelJOAQUIM BOAVIDA
Data da Resolução26 de Maio de 2022
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1): I – Relatório 1.1.

No inventário instaurado por óbito de F. A., no qual L. P.

desempenha funções de cabeça-de-casal, os interessados J. S.

e mulher, M. E., deduziram reclamação contra a relação de bens, onde, na parte relevante para o objecto do presente recurso, aduziram o seguinte: «1º O valor atribuído pelo cabeça de casal ao imóvel – verba n.º 5 da relação de bens – foi o valor patrimonial, mas tal valor é muito inferior ao seu valor de mercado, sendo este nunca inferior a 160.000,00€.

(…) 11º Por outro lado, o cabeça de casal não relacionou todas as dívidas passivas.

  1. Assim, o património comum deve aos aqui reclamantes a quantia de 22.000,00€ que estes emprestaram ao casal em 1 de Setembro de 2015 para a compra do imóvel (doc. n.º 1).

    (…) 14º Por fim, o cabeça de casal e cônjuge meeiro usufruiu e utilizou em exclusividade desde o falecimento da inventariada em 3 de Janeiro de 2016 o imóvel descrito sob a verba n.º 5 da relação de bens como sua habitação.

  2. O valor do uso desse prédio urbano representa uma vantagem económica correspondente ao valor corrente da renda para tal prédio, que rondará o valor mensal de 600,00€.

  3. Por conseguinte, o cabeça de casal deve à herança o valor mensal de 300,00€ (=metade da referida renda), a partir de Janeiro de 2016 e até à partilha da herança.

  4. Deve, assim, o cabeça de casal à herança a este título, até à presente data, a quantia de 21.000,00€, a que acresce ainda o tempo que decorrer até à partilha.

  5. Este pagamento deverá ser feito, sob pena de injusto locupletamento do cabeça de casal à custa dos restantes herdeiros, ora reclamantes, e de um injusto enriquecimento sem causa do cabeça de casal e cônjuge meeiro (…)».

    *1.2.

    O cabeça-de-casal apresentou resposta à reclamação, alegando, na parte relevante: «(…) 3º Tudo o mais reclamado não tem qualquer fundamento.

  6. Na verdade, a quantia de 22.000,00 € a que se refere o artº 12º da reclamação respeita a uma doação feita pelos interessados reclamantes ao casal, para os ajudar no início de vida, designadamente para procederem ao pagamento do sinal para a compra do imóvel descrito na verba nº 5 da relação de bens, 5º Quantia essa, aliás, jamais reclamada pelos interessados reclamantes.

  7. De qualquer forma, sempre se dirá que, a tratar-se de um empréstimo - que não se aceita-, como alegam aqueles interessados, sempre o mesmo seria nulo por vício de forma.

    (…) 11º É igualmente destituída de qualquer fundamento a reclamação a que se reportam os artºs 14º a 18º.

  8. Aqui é reclamado o pagamento de uma indemnização, alegadamente por o cabeça de casal ter usufruído e utilizado o imóvel descrito sob a verba nº 5 da relação de bens.

  9. Ora, o presente inventário destina-se a proceder à partilha dos bens – activo e passivo- que fazem parte da herança aberta por óbito da inventariada.

  10. Ora, o alegado “enriquecimento sem causa” nada tem a ver com aquela partilha, pelo que é estranho aos presentes autos e nestes não deverá ser discutido e decidido.

  11. Aliás, conforme defende Jâcome Meireles, Repertório Jurídico, I-95, nº 445, “O cabeça- de- casal não paga rendimento da casa comum em que habitou até à partilha, salvo se costumava andar alugada”.

  12. Mas mesmo que assim não fosse, o que apenas para efeitos de raciocínio se concede, o certo é que os reclamantes partem de dois pressupostos que não têm qualquer correspondência com a realidade.

  13. Na verdade, avaliam o imóvel em 160.000,00 € - por esse valor, o cabeça de casal declara, desde já, que está na disposição de aceitar que o mesmo seja adjudicado aos reclamantes - e atribuem um valor locativo ao mesmo do montante de 600,00 € mensais.

  14. Ora, o valor do imóvel é tão somente de 120.000,00 € e o seu valor locativo é apenas de 400,00 €.

  15. Mas mesmo que assim não fosse, não se vislumbra como é que os reclamantes teriam direito a 300,00 € mensais, sendo certo que o seu quinhão corresponde a 1/3 da herança – cfr. 2142º nº 1 do Código Civil, 20º O que na prática, corresponde a 1/6 do imóvel em questão.

  16. Isto é, mesmo que o valor locativo do prédio fosse de 600,00 € mensais, os reclamantes apenas teriam – e não têm, conforme supra se referiu - direito à quantia de 100,00 € mensais (…).

    *1.3.

    Em 08.02.2022 foi proferida decisão com o seguinte teor, na parte que releva para o objecto do recurso: «- Da falta de causa de pedir quanto ao “empréstimo”: I. Os Reclamantes vieram acusar a falta de relacionamento de uma dívida da herança: € 22.000,00 que alegam ter emprestado ao casal a 01.09.2015 para comprar o imóvel, para tanto juntando cópia de uma transferência bancária desse valor para o cabeça de casal.

    O cabeça de casal aceita o recebimento dessa quantia, defendendo ter-se tratado de uma doação ao casal para os ajudar no começo da vida (pagaram o sinal da casa de morada de família; acrescentando que, se de empréstimo se tratasse, então o mesmo era nulo por falta de forma, assunto que extravasa o presente incidente.

    1. No que importa à questão, vejamos a matéria de facto alegada: - «Por outro lado, o cabeça de casal não relacionou todas as dividas passivas.» - «Assim, o património comum deve aos aqui reclamantes a quantia de € 22.000,00 que estes emprestaram ao casal a 01.09.2015 para a compra do imóvel.» Agora, vejamos o direito.

      O requerimento inicial constitui o acto fundamental do processo, uma vez que é por ele que o requerente solicita ao tribunal a concessão de tutela do direito a que se arroga, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo que, pelo menos de modo implícito, deve estabelecer um nexo lógico entre as premissas e a conclusão, sendo que a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é preenchida pelas razões de facto, e o pedido a conclusão.

      Não obstante a simplicidade inerente ao incidente de reclamação à relação de bens, não foi nem pode entender-se ter sido intenção do legislador subverter os princípios gerais do processo civil relativos ao pedido e à causa de pedir, tanto mais que sendo deduzida oposição o incidente é posto à apreciação jurisdicional, a julgamento.

      Por isso, o requerente deve formular o pedido e expor sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão.

      Essa exposição sucinta dos factos que fundamentam a pretensão da parte corresponde, no fundo, à causa de pedir a que se referem os art.ºs 5.º e 552.º do Código de Processo Civil, e não pode bastar-se com uma breve alusão a uma situação hipotética descontextualizada, onde cabe um número indefinido de hipóteses jurídicas concretas, sob pena de se desvirtuar os princípios basilares do direito processual civil, nomeadamente, o do dispositivo.

      Ora, in casu, é exactamente isso que se verifica, pois os reclamantes limitaram-se a qualificar como empréstimo o ato da entrega dos €22.000,00, não tendo sido feita concretização, por mínima que seja, das cláusulas essenciais de tal negócio.

      Conforme resulta do preceituado no art.º 1142º do Cód. Civil o mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.

      Para a sua conclusão e perfeição supõe dois elementos constitutivos, quais sejam: i) a entrega de uma coisa fungível ou de dinheiro por parte do mutuante, sendo que sem essa entrega (datio rei) por parte do mutuante não será possível ter-se como existente o contrato de mútuo típico, mas quando muito uma promessa de mútuo; ii) a obrigação de restituir outro tanto do mesmo género do que foi recebido, nomeadamente, quando está em causa o mútuo de dinheiro, a mesma quantia que foi entregue, acrescida de eventual remuneração.

      Esta última obrigação mostra-se essencial ao mútuo, quer ao mútuo oneroso, quer ao mútuo gratuito, destinando-se a reequilibrar a situação patrimonial das partes, colocando-as na situação em que se encontravam ao tempo da conclusão do negócio.

      E esta obrigação corresponderá, assim, a uma obrigação pecuniária, quando tiver sido recebida uma quantia em dinheiro ou uma obrigação genérica no caso contrário, correspondendo sempre o género àquele da prestação recebida.

      Dito isto, como é consabido, sobre os Reclamantes impende o ónus da alegação (e prova) dos elementos constitutivos do direito que invocam e que judicialmente pretendem ver declarado e tutelado, nos termos do art.º 5.º n.º1 do CPC (e do art.º 342º, n.º 1 do Cód. Civil).

      In casu, não foi alegado o núcleo essencial do negócio para que se pudesse aferir, a posteriori, se o mesmo tinha ou não existido: sabe-se que os Reclamantes entregaram dinheiro ao ex-casal em Setembro de 2015, nada mais… se emprestaram, fizeram-no em que mais termos? A titulo gratuito? A titulo oneroso? Até quando? Em que termos foi ajustada a restituição?... Acresce que a junção de documentos não supre o dever de alegar que impende sobre a parte. É que convém não confundir “facto” e “meio de prova”. Sobre quem se arroga o direito incumbe o ónus de alegação dos factos integradores da previsão legal, sendo o documento mero meio de prova (art. 423°, n° 1 do CPC, e arts 332° e 362° do CC).

      In casu, aliás, o documento junto nem sequer permite inferir o que quer que seja a propósito do alegado empréstimo – e não foi indicada qualquer outra prova para o efeito! Por conseguinte e s.m.o., não foram, in casu, alegados os factos concretos que consubstanciem a fonte da obrigação daquela concreta quantia peticionada relacionar; seria necessário concretizar as condições contratuais e, daquelas, as que não estavam a ser cumpridas pelo casal, entretanto dissolvido pelo óbito.

      Ao juiz está reservado um papel ativo mas subsidiário quanto a cooperar no sentido de que tal configuração reúna os contornos e o nível de concretização suficientes para assegurar a justa resolução do litígio, à luz do quadro normativo aplicável, mas não pode ir ao ponto, de substituir às partes no cumprimento do ónus da alegação dos factos essenciais.

      Um convite ao aperfeiçoamento no caso presente...

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