Acórdão nº 1613/17.7T8VRL.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 01 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelALCIDES RODRIGUES
Data da Resolução01 de Outubro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório S. M. intentou contra M. L. a presente ação declarativa de condenação, sob a forma comum, peticionando que: a) se declare inexistente o casamento celebrado entre a ré e S. M., pai do autor, no dia 16 de Outubro de 2013, a que foi atribuído o processo número 4596/2013, por ter faltado a declaração de vontade do nubente S. M., nos termos do disposto no ar. 1628º, alínea c), do Código Civil; em consequência, deve decretar-se e ordenar-se o averbamento dessa inexistência ao respectivo registo e procedendo-se, em consequência, às demais providências prescritas na lei do registo civil, nomeadamente, ao cancelamento do dito registo de casamento.

Ou, se assim se não ver a entender: b) se declare inexistente o identificado casamento por ter sido celebrado por pessoa sem competência para tal ou, ainda, terem sido infringidos os preceitos imperativos da lei e, em consequência, ordenar-se o averbamento dessa inexistência ao respectivo registo e procedendo-se, em consequência, às demais providências prescritas na lei do registo civil, nomeadamente, ao cancelamento do dito registo de casamento.

Para tanto alegou, em síntese, que é filho de S. M. e de M. H..

Os pais do autor eram casados no regime da comunhão geral de bens.

A mãe do autor faleceu no dia - de fevereiro de 2013 e o pai faleceu no dia - de novembro de 2016.

No dia 16 de agosto de 2013, o pai do autor foi vítima de um acidente vascular cerebral, tendo sido internado no Hospital da Santa Casa da Misericórdia do ... no dia 28 de agosto de 2013.

No dia 16 de outubro de 2013, sem que ninguém se tivesse apercebido, o pai do autor desapareceu daquela unidade de saúde. Tal facto foi participado à guarda nacional republicana do Marco de Canaveses, vindo a desvendar que o pai do autor tinha sido retirado pela ré e dois senhores da instituição, conduzindo-o à Conservatória do Registo Civil ..., onde foi celebrado casamento com a ré.

O pai do autor, à data do casamento e muito antes, não tinha habilidade para entender o sentido da declaração de que celebrava o casamento de livre vontade.

Além de que o casamento foi celebrado perante ajudante em substituição legal, quando devia ser perante conservador, pelo que o ato é ilegal e, como tal, nulo.

*Citada, contestou a Ré, pugnando pela improcedência da ação.

Alegou, em resumo, que a ré e o pai do autor mantiveram, durante mais de 20 anos, uma relação amorosa, que só terminou por morte deste, que era do conhecimento do autor e restante família.

Nos últimos 15 anos, o S. M. viveu permanentemente em casa da ré, para onde regressou após alta hospitalar.

A ré, por insistência do seu companheiro, aceitou casar com S. M., sendo esse casamento realizado de forma livre e consciente, e por quem tinha competência na Conservatória do Registo Civil ....

*Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi elaborado despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância; foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, bem como foram admitidos os meios de prova.

*Procedeu-se a audiência de julgamento.

*Posteriormente, o Mm.º Julgador “a quo” proferiu sentença, nos termos da qual, julgando a ação procedente, declarou inexistente o casamento celebrado entre a ré e S. M., no dia 16 de outubro de 2013, por ter faltado a declaração de vontade deste nubente, com o consequente averbamento dessa inexistência ao assento de casamento de S. M. com a ré, bem como ao assento de nascimento de S. M. e da ré.

*Inconformada, a Ré interpôs recurso da sentença e, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem): «1.

O profuso acervo documental junto aos autos permite colher um dado relevante para o que a esta lide importa: segundo os registos dos serviços de enfermagem respetivos, o doente deu entrada na unidade de saúde do Marco de Canaveses, em 14 de setembro de 2013, ‘consciente e orientado’ [sublinhado nosso] e assim se manteve ao longo de todo o período documentado.

  1. No jargão clínico, “doente consciente” é aquele que está lúcido, orientado no tempo e no espaço e colaborante; mesmo na linguagem vulgar, consciente diz-se de quem sente, pensa e atua com conhecimento daquilo que faz.

  2. Raciocinando ex absurdo poder-se-ia considerar que esses registos eram tabelares, se não resultassem – como resultam – expressamente corroborados no relatório psiquiátrico de 06.11. 2013; 4.

    O sobredito relatório psiquiátrico foi efetuado mais de três semanas depois do casamento sub judicio e elaborado a pedido da nora do paciente, para instruir a presente ação [cfr. depoimento de M. M.: dia 12-06-2019 dos 45:28 minutos aos 45:42 minutos]R 5.

    R mas, não obstante, a médica psiquiátrica, não ousando comprometer-se de forma apodítica com a tese do autor, cautelosamente refere que “dado o quadro relativamente recente de pós/AVC isquémico, compatível habitualmente com quadros de ‘delirium’, será prudente aguardar a evolução do quadro clínico para melhor caracterizar o provável quadro demencial”.

  3. A testemunha S. M., enfermeira, reportando-se à ré, afirmou a dado passo do seu depoimento, como adrede se refere na sentença recorrida: “essa senhora nunca tinha manifestado que ia casar”; e mais adiante “ele não tinha capacidade de entender que foi casar”.

  4. Por seu turno, a testemunha A. P., médica, que era a “diretora daquele serviço”, “um dia viu o Sr. S. M. vestido e essa senhora vestida e dois senhores que transportavam o doente de cadeira de rodas para a porta de saída. Viu o carro a sair do hospital. O enfermeiro sinalizou à guarda nacional republicana que tinham tirado um senhor do hospital. Suspeitaram que iam casar [sublinhado nosso] – o enfermeiro ligou para a conservatória, que lhe confirmaram que estava lá um senhor de cadeira de rodas e uma senhora de vermelho, para se casarem”.

  5. Os dois depoimentos exarados em 6 e 7 supra não se coadunam entre si e fogem à normalidade das coisas, pois, se nunca a ré tinha manifestado que ia casar, a apelante interroga-se, de forma retórica, como poderia a médica suspeitar que isso fosse acontecer, a ponto de telefonar para a conservatória, quando o paciente foi retirado do hospital; e como é que uma médica, que é diretora de um dado serviço, vê retirarem daí um paciente seu e não questiona a razão desse ato.

  6. Ainda, segundo a sentença recorrida, a identificada médica, drª A. P., refere que a sua Colega de psiquiatria, drª S. Q., avaliou o Sr. S. M. e “disse que ele tinha um quadro demencial – quadro cognitivo afetado – não tinha raciocínio lógico, coerente”....

  7. …sendo que esse diagnóstico não vem plasmado no relatório de avaliação da identificada perita, onde, ao invés, se lê que “segundo enfermagem, e pelos registos do diário clínico, o comportamento global do doente tem sido relativamente adequado, ainda que com períodos de alguma confusão mental, sobretudo à noite e quando em situação de stress.

    Ao EEM, vigil, colaborante na entrevista mas progressivamente menos, com o desenrolar da entrevista e a presença dos familiares diretos (nora e filho), juntamente com a esposa legal (que entretanto chegou) = discurso coerente no global = atenção captável e mantida = alguma labilidade emocional (sobretudo quando fala da esposa, com quem casou recentemente) = Mantém relativa noção do dinheiro =Dado o quadro relativamente recente de pós/AVC isquémico, compatível habitualmente com quadros de ‘delirium’, será prudente aguardar a evolução do quadro clínico para melhor caracterizar o provável quadro demencial”.

  8. Se o Tribunal a quo tivesse cotejado os depoimentos dos familiares do autor (filho, esposa e tio) com os documentos que instruem o processo, considerá-los-ia totalmente desprovidos de credibilidade, pois nesses depoimentos quis-se fazer crer que o pai do autor estava em estado quase vegetativo; e essa situação é totalmente negada pelos registos de enfermagem, pelos registos do diário clínico e pelo relatório da médica psiquiatra juntos aos autos.

  9. Nesse conspecto, o Tribunal recorrido, à semelhança do santo que desconfia quando a esmola é grande, deveria ter desacreditado tais depoimentos, por desregramento e inverosimilhança.

  10. O Tribunal recorrido não acolheu o testemunho de A. M., que exerce funções como oficial de registos na conservatória do registo Civil ... e que foi a pessoa que celebrou o casamento, dada “a forma titubeante, hesitante, como foi prestando o seu depoimento”.

  11. Ora, esse depoimento foi prestado por videoconferência, em circunstância que, já de si, mitiga o princípio da imediação – tão encomiado nos julgamentos da 1ª instância –, dado que não permite avaliar se a testemunha ruboriza, fica inquieta ou tremelica ao depor, sendo que, à distância, o julgador só poderá apreciar a verbalização e não o contexto em que ela acontece.

  12. Na referida circunstância, o que ouviu o Mº Juiz a quo é igualmente audível na gravação que foi disponibilizada à recorrente, onde não se percebe nenhuma titubeação ou hesitação – antes, no que para este caso importa, o depoimento desconsiderado mostra-se assertivo, espontâneo e sem tergiversação alguma, como transparece na gravação áudio entre o minuto 1:18 e 5:35; e aos minutos 15:02; 15:50; 20:10 e 20:52.

  13. Compendiando tudo o que antecede, a análise critica de todos os elementos de prova existentes nos autos deveria conduzir a que se considerasse não provado que: - O móbil que superintendeu à mencionada conduta da ré foi a concretização do plano que há muito projetava, isto é, contrair casamento com o pai do autor, apesar de saber que este nunca o quis fazer.

    - À data da celebração do casamento o pai do autor não apresentava condições de saúde mental que lhe possibilitassem compreender e saber o que fazia e nunca tinha manifestado qualquer intenção de contrair casamento com a ré.

    - O que era conhecimento desta.

  14. E, nas mesmas circunstâncias, deveria considerar-se provado, embora restritivamente, o facto exarado sob o nº...

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