Acórdão nº 191/21.7T8CMN.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 19 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelPEDRO MAUR
Data da Resolução19 de Janeiro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, * * *1. RELATÓRIO 1.1. Das Decisões Impugnadas A..., S.A.

instaurou AA, acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que que «a) a Ré seja condenada a devolver o veículo automóvel, matrícula ..-BA-.., marca ..., bem como todos os seus documentos que com o mesmo lhe foram entregues; b) a pagar à Autora a quantia de 2.910,00€, acrescida 30,00 por cada dia que decorra, até à restituição efectiva do veículo automóvel».

Fundamentou a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «para o desenvolvimento da sua atividade, a Autora adquiriu o veículo automóvel de marca ..., com matrícula ..-BA-..; a Autora por si, e antecessores, está na posse, uso e fruição do veículo; mesmo que de outro título não dispusesse, até por usucapião, já há muito a Autora adquiriu o direito de propriedade sobre o veículo; o veículo encontra-se inscrito definitivamente na Conservatória do Registo Automóvel desta comarca a favor da Autora, e daí decorre a presunção de que o direito de propriedade existe e pertence ao seu titular; a Ré esteve casada com o administrador da Autora, BB; o qual, ainda no estado de casado, condescendeu que aquela, então sua então mulher, utilizasse o referido veículo nas suas deslocações; dissolvido o casamente e a comunhão conjugal, aquela administrador solicitou à Ré esta que lhe entregasse o veículo, o que esta vem recusando, mesmo após ter sido interpelada por carta em 24/12/2020, na qual lhe foi fixado um prazo para entrega até ao dia 15/01/2021; e face à recusa reiterada de entrega, a Autora está a suportar um prejuízo decorrente da privação da utilização da viatura».

Citada, a Ré contestou e reconveio, pugnando pela «improcedência da acção e sua absolvição do pedido» e formulando o seguinte pedido reconvencional: «que seja anulado o registo de propriedade do veículo de matrícula ..-BA-.., marca ..., a favor da Autora; e que seja declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui Ré e BB».

Fundamentou a sua defesa e a reconvenção, essencialmente, no seguinte: «o veículo foi adquirido, em finais do ano 2005, pela sociedade comercial S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda de que o ex-marido da Ré, BB é sócio gerente; não foi adquirido com o intuito de o afetar à atividade desta sociedade e muito menos à actividade da Autora; o propósito da compra deste veículo foi sempre o uso privado, exclusivo e pessoal dos membros da família do sócio gerente da citada S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda; este veículo, tal como o anterior que este substituiu (...) sempre foi usado para as deslocações diárias do agregado familiar da Ré e do então marido, e nessas deslocações, sempre foi conduzido exclusivamente, quer pela Ré, quer pelo seu ex-marido, mas maioritariamente pela Ré; em Fevereiro/2010, por razões que a Ré desconhece, a sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda vendeu o veículo à Autora, que tem como administradores os mesmos sócios gerentes daquela; a referida venda foi efetuada apenas “no papel”, pois, nessa data, o veículo estava, sempre esteve e continua a estar na posse da aqui Ré; a Autora nunca esteve na posse deste veículo; após o divórcio, passou a ser conduzido apenas e exclusivamente pela aqui Ré; em 2010/2011, o ex-marido da Ré decidiu adquirir outro carro para seu uso exclusivo e adquiriu um veículo de marca ..., de matrícula ..-OM-..; depois de decretado o divórcio, a Ré passou a pagar as reparações mecânicas, as inspeções periódicas e o combustível, e não paga o IUC e o seguro, porque o seu ex-marido sempre fez questão de assumir tal pagamento; não estão preenchidos os requisitos previstos para aquisição por usucapião pela Autora; tal veículo sempre foi de uso familiar e é património do casal extinto; ainda que se considere que o mesmo é propriedade da Autora, é também certo, que todos os acionistas da Autora (ex-sócios) conduzem e usam na sua vida privada um veículo que é propriedade desta; sendo a Ré também acionista da Autora, tem exatamente os mesmos direitos dos restantes; a Autora não tem qualquer prejuízo pela privação de uso do veículo; o veículo foi adquirido em finais do ano 2005 pelo então casal Ré e ex-marido e administrador da Autora Sr. BB, embora tenha sido registada a propriedade do mesmo em nome da sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda por motivos fiscais; apesar da falta de título, porque a Ré desde 2005, diária e ininterruptamente conduz o citado veículo em deslocações de carácter familiar e sempre com a convicção de que este veículo pertence ao acervo comum do casal, e sempre o fez de boa-fé, com o conhecimento da Autora, sem oposição desta e à vista de toda a gente; ainda que na qualidade de cônjuge do casal extinto, a Ré adquiriu o direito de propriedade sobre o veículo por usucapião».

A Autora replicou, pugnando pela «improcedência da reconvenção».

Em sede de saneamento, na data de 12/10/2021, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: “Da admissibilidade do pedido reconvencional: A reconvenção é um instrumento jurídico que permite, mediante determinado circunstancialismo, reunir, no mesmo processo, pretensões substanciais contrapostas.

Trata-se de uma acção cruzada na qual o réu deduz contra o autor uma pretensão de efeitos contrários ou com objecto diferenciado.

A sua admissibilidade está, porém, sujeita a determinados condicionalismos, de carácter substancial e processual.

Quanto aos requisitos substantivos, impõe a lei a existência de uma conexão substancial entre a pretensão do autor e aquela que é deduzida em reconvenção.

Assim, nos termos do artigo 266.º n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), constituem pressupostos substanciais da reconvenção a verificação de uma das seguintes hipóteses: a) o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa; b) o réu propõe-se obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

São ainda requisitos adjectivos os seguintes: 1. O valor da causa exceda a alçada do tribunal; 2. Ao pedido reconvencional corresponda a mesma forma de processo; 3. A competência absoluta do tribunal (internacional, em razão da matéria e em razão da hierarquia).

Ora, no caso dos autos pretende a autora, entre o mais, que se reconheça o seu direito de propriedade sobre um veículo e a condenação da ré a restituí-lo. Por sua vez a ré pretende seja reconhecido o seu direito de propriedade ou, melhor dizendo, do extinto casal, sobre o mesmo veículo.

Daqui resulta que a ré pretende obter em seu benefício o mesmo efeito jurídico que pretende a autora, pelo que se enquadra a situação na previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC.

Sucede que, quanto aos pressupostos adjectivos da admissibilidade da reconvenção, importa aqui apreciar da legitimidade da ré para, a solo, pedir que ser declare a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui ré e BB. Tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal, sempre deveriam estar em juízo ambos os cônjuges ou, pelo menos, o cabeça-de-casal do património comum a partilhar, não tendo o respectivo chamamento sido suscitado por qualquer das partes (nem também tal chamamento seria de realizar, o que sempre se traduziria na prática de acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC, atento o teor da decisão de mérito que de seguida se proferirá e que sempre conduziria, também, à improcedência do pedido reconvencional, ainda que o mesmo viesse a ser admitido).

Pelo exposto, não se admite o pedido reconvencional formulado pela ré, por ilegitimidade activa, cfr. artigos 33.º, 576.º, 577.º e), 578.º e 1133.º n.º 2 do CPC e 2019.º do CC”.

Ainda em sede de saneamento e na mesma data, o Tribunal a quo entendeu que os autos reuniam todos os elementos que permitiam proferir decisão de mérito, pelo que proferiu saneador-sentença com o seguinte decisório: “Em consequência do exposto e de harmonia com as normas legais supra citadas, decide-se julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência: a) condenar a ré AA a restituir à autora A..., S.A. o veículo automóvel matrícula ..-BA-.., marca ..., bem como todos os seus documentos que com o mesmo lhe foram entregues; b) absolver a ré AA do pedido indemnizatório formulado pela autora A..., S.A. pela privação do uso do veículo…”.

*1.2. Do Recurso da Ré e do Recurso Subordinado da Autora Inconformada com as referidas decisões, a Ré interpôs recurso de apelação, pedindo que “decidindo-se pela procedência do presente recurso e, em consequência, revogando-se o douto despacho recorrido declarando-se nulo, e, em consequência, ser determinando-se a baixa do processo à primeira instância para que aí se dê cabal cumprimento ao princípio do contraditório e após se determine o prosseguimento dos autos, conforme doutos entendimentos de Direito”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações: «1 – Vem o presente recurso interposto do douto despacho saneador/decisão proferido pelo Tribunal “a quo” a fls…, que não admitiu o pedido reconvencional formulado pela Ré com fundamento na ilegitimidade desta e decidiu a ação parcialmente procedente condenando a Ré a restituir à Autora o veículo automóvel de marca ..., matrícula ..-BA-.., bem como todos os documentos que com o mesmo lhe foram entregues.

2 - A Ré deduziu Pedido Reconvencional peticionando, nesta sede, que fosse anulado o registo de propriedade do veículo de matrícula ..-BA-.., marca ... a favor da Autora/Reconvinda e que fosse declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui Ré e BB.

3 – Tal Pedido Reconvencional não foi admitido por ilegitimidade ativa da Ré, com fundamento no disposto nos artigos 33º, 576º, 577º e), 578º e 1133º n.º 2 todos do CPC e 2019º do Código...

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