Acórdão nº 5/23 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Maria Benedita Urbano
Data da Resolução30 de Janeiro de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 5/2023

Processo n.º 5/2023

Plenário

Relator: Conselheira Maria Benedita Urbano

(Conselheiro José António Teles Pereira)

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I – RELATÓRIO

1. O Presidente da República vem, nos termos do disposto no “n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, bem como do n.º 1 do art. 51º e nº 1 do art. 57º da Lei n. 28/82, de 15 de novembro, e “com os fundamentos a seguir indicados”, requerer a “apreciação da conformidade com a mesma Constituição” de algumas das normas constantes do Decreto n.º 23/XV, da Assembleia da República, “que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal” (doravante, CP). As normas identificadas pelo Presidente da República são as seguintes:

“as normas constantes das alíneas e) e f) do artigo 2º, quando conjugadas com as normas constantes dos nºs 1 e 3, alínea b) do artigo 3º;

a norma constante da alínea d) do artigo 2º, na parte em que define «doença grave e incurável»”;

as normas constantes dos nºs 1 e 3, alínea b) do artigo 3º;

consequentemente, as normas constantes dos artigos 5º, 6º e 7º;

consequentemente, as normas constantes do artigo 28º na parte em que alteram os artigos 134º, nº 3, 135º, nº 3 e 139º, nº 2 do Código Penal”.

A final, o Presidente da República formula a sua pretensão nos seguintes termos:

“Ante o exposto, requer-se, nos termos do nº 1 do art.º 278º da Constituição, bem como do n.º 1 do art. 51º e nº 1 do art. 57º da Lei n. 28/82, de 15 de novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas constantes da alínea d) do artigo 2º, na parte em que define «doença grave e incurável»”; das alíneas e) e f) do artigo 2º, quando conjugadas com as normas constantes dos nºs 1 e 3, alínea b) do artigo 3º; dos nºs 1 e 3, alínea b) do artigo 3º; consequentemente, as normas constantes dos artigos 5º, 6º e 7º; consequentemente, as normas constantes do artigo 28º na parte em que alteram os artigos 134º, nº 3, 135º, nº 3 e 139º, nº 2 do Código Penal, na parte em que alteram os artigos 134º, nº 3, 135º, nº 3 e 139, nº 2 do Código Penal, do Decreto nº 23/XV da Assembleia da República, por violação do princípio da determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), por referência à inviolabilidade da vida humana consagrada no artigo 24.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa”.

2. Quanto aos parâmetros eventualmente violados, o Presidente da República identifica o “princípio de determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165º, nº 1, alínea b), por referência à inviolabilidade da vida consagrada no artigo 24.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa”.

3. O requerente motiva o pedido pela forma que se segue:

“[…]

1.º

Pelo Acórdão n.º 123/2021, o Tribunal Constitucional decidiu pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do seu artigo 2.º, n.º 1, com fundamento na violação do princípio de determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º, e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência à inviolabilidade da vida humana consagrada no artigo 24.º n.º 1, do mesmo normativo; e, em consequência, pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º, todos do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República.

2.º

Mais especificamente, o Tribunal Constitucional considerou que as aludidas inconstitucionalidades respeitavam a uma das situações invocáveis para a morte medicamente assistida não ser punível – a atinente à gravidade da doença da pessoa em causa.

3.º

Quanto a essa situação, mas não quanto à gravidade da lesão, existiria insuficiente densificação e determinabilidade da lei, implicando a respetiva inconstitucionalidade, nomeadamente, por tornar impercetível qual o regime concreto consagrado.

4.º

Na sequência desta decisão, e devolvido o Decreto à Assembleia da República, sem promulgação, nos termos constitucionais, a Assembleia da República entendeu aprovar o Decreto n.º 199/XIV, o qual veio a ser submetido a promulgação.

5.º

Este Decreto continha um conjunto de contradições de natureza conceptual, suscitando problemas sensíveis de interpretação e aplicação, razão pela qual veio a ser devolvido, sem promulgação, ao Parlamento para que tais inconsistências pudessem ser ultrapassadas.

6.º

Nessa sequência, a Assembleia da República aprovou o Decreto n.º 23/XV, que agora se submete a apreciação preventiva da inconstitucionalidade, o qual pretendeu sanar as contradições apontadas à versão anterior, optando por um regime menos restritivo no tocante à morte medicamente assistida não punível, ao suprimir a existência de doença fatal e a alusão a “antecipação da morte”.

7.º

Em conformidade com a clarificação efetuada, a situação relativa à gravidade da doença legitimadora da morte medicamente assistida não punível passou a ser a de “doença grave e incurável”, definida como “doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade” [artigos 2.º, alínea d), e 3.º, número 1].

8.º

A dúvida que se pode suscitar é a de saber se esta nova definição, e, em particular, a alusão a ‘grande intensidade’ é de molde a corresponder à densificação e determinabilidade exigida pelo antes aludido Acórdão do Tribunal Constitucional, tendo em consideração a supressão do requisito da ‘doença fatal’ e da alusão à ‘antecipação da morte’.

9.º

Acresce que, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto, parece que a exigência de verificação de situação de sofrimento de grande intensidade ocorre tanto quando exista lesão definitiva de gravidade extrema como nos casos de doença grave e incurável. Já na alínea e) do artigo 2.º, quando se define «Lesão definitiva de gravidade extrema», não se refere o sofrimento de grande intensidade, ao contrário do que sucede na alínea d) do mesmo artigo.

10.º

É neste contexto que se afigura essencial que o Tribunal Constitucional se pronuncie quanto à questão de saber se, no quadro da opção fundamental ora assumida, o legislador cumpriu as obrigações de densificação e determinabilidade da lei, antes exigidas, ademais numa questão central em matéria de direitos, liberdade e garantias.

11.º

Como se compreende, como já teve ocasião de afirmar o Tribunal Constitucional, uma indefinição conceptual não pode manter-se, numa matéria com esta sensibilidade, em que se exige a maior certeza jurídica possível.

[…]”.

4. Os preceitos do Decreto n.º 23/XV da Assembleia da República questionados pelo requerente têm a seguinte redação (os segmentos objeto do pedido encontram-se realçados):

Artigo 2.º

Definições

“Para efeitos da presente lei, considera-se:

a) «Morte medicamente assistida», a morte que ocorre por decisão da própria pessoa, em exercício do seu direito fundamental à autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde;

b) «Suicídio medicamente assistido», a autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente, sob supervisão médica;

c) «Eutanásia», a administração de fármacos letais pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito;

d) «Doença grave e incurável», a doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade;

e) «Lesão definitiva de gravidade extrema», a lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa;

f) «Sofrimento de grande intensidade», o sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa;

g) «Médico orientador», o médico indicado pelo doente que tem a seu cargo coordenar toda a informação e assistência ao doente, sendo o interlocutor principal do mesmo durante todo o processo assistencial, sem prejuízo de outras obrigações que possam caber a outros profissionais;

h) «Médico especialista», o médico especialista na patologia que afeta o doente e que não pertence à mesma equipa do médico orientador”.

Artigo 3.º

Morte medicamente assistida não punível

1 – Considera-se morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.

2 – Para efeitos da presente lei, consideram-se legítimos apenas os pedidos de morte medicamente assistida apresentados por cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional.

3 – A morte medicamente assistida ocorre em conformidade com a vontade e a decisão da própria pessoa, que se encontre numa das seguintes situações:

a) Lesão definitiva de gravidade extrema;

b) Doença grave...

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