Acórdão nº 720/03.8PUPRT-A.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 25 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelLÍGIA TRAVÃO
Data da Resolução25 de Janeiro de 2023
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo nº 720/03.8PUPRT-A.P1 Comarca do Porto Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 4 Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto I - RELATÓRIO No início da 1ª sessão da audiência de julgamento ocorrida no dia 21/06/2022, no processo comum (Tribunal Singular) nº 720/03.8PUPRT que corre termos pelo Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferido despacho que indeferiu o requerimento do Ministério Público que pugnava que se declarasse cessada a contumácia do arguido AA, pelo facto de este, no âmbito da carta rogatória expedida às autoridades judiciárias competentes de Botosani, ter sido notificado da acusação e do despacho que designa data para a audiência e se condenasse ainda o arguido em multa processual, nos termos dos arts. 116º nº 1 e 333º nº 1 do CPP, pela falta injustificada ao julgamento.

*Não se conformando com tal decisão, recorre o Ministério Público apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição): “1.

Nos presentes autos, o arguido foi declarado contumaz.

2.

Apesar da contumácia, foi possível apurar o paradeiro do arguido na Roménia e, através das autoridades Romenas, notificá-lo pessoalmente da acusação, do despacho que recebeu a acusação e do despacho que agendou o julgamento para de 21/06/2022.

3.

Perante a não comparência do arguido, o signatário promoveu que se considerasse a notificação pessoal uma forma de contacto igual ou análoga à apresentação do arguido e, em consequência, a cessação da respectiva contumácia e a realização de julgamento na ausência do arguido.

4.

Através do despacho recorrido, o Tribunal da Primeira Instância indeferiu o promovido, mantendo a contumácia do arguido e dando o julgamento sem efeito, por entender que a notificação não é apta a fazer cessar a contumácia. Para o efeito, invocou a doutrina fixada no AUJ 5/2014.

*5.

O AUJ 5/2014 apenas se debruçou sobre a ineficácia das notificações realizadas por via postal de arguido residente no estrangeiro e, consequentemente, na irrelevância da recolha de TIR para efeitos de cessação da contumácia.

6.

O AUJ 5/2014 nunca defendeu, directa ou indirectamente, que a notificação de arguido contumaz residente no estrangeiro, por contacto pessoal feito por autoridade oficial estrangeira, não faz cessar os efeitos da declaração de contumácia.

7.

O promovido pelo Ministério Público, portanto, não viola, directa ou indirectamente, o dispositivo ou os fundamentos do AUJ 5/2014.

*8.

A interpretação do despacho recorrido implica a absoluta impossibilidade jurídica (não prática) de notificação de arguidos e a consequente paralisação dos respectivos processos, só porque os arguidos se encontram contumazes e residem no estrangeiro.

9.

Não se vislumbra razão justificativa para que, no espaço de justiça europeu, se possa notificar validamente uma sentença mediante contacto pessoal e executar (quase) automaticamente os mais diversos pedidos de cooperação judiciária emanados pelos tribunais dos outros Estados Membros, mas já não se possa confiar um acto tão simples e “corriqueiro” como contactar pessoalmente um arguido e realizar uma notificação.

10.

Quando o art.º 336º/1 do Código de Processo Penal refere que a contumácia cessa com a “apresentação” do arguido, esta norma quer-se reportar ao contacto pessoal do arguido com o Tribunal, uma vez que é a falta desse contacto pessoal, traduzido na falta de notificação do despacho que designou data para julgamento, que dá origem à contumácia - art.º 335º/1 do Código de Processo Penal.

11.

Ora, existe um claro contacto pessoal entre o tribunal e o arguido quando uma autoridade oficial estrangeira contacta pessoalmente com o arguido e notifica-o da acusação e do despacho que designa data para audiência, uma vez que aquela autoridade funciona como uma mera longa manus do tribunal português, no contexto de um pedido de cooperação internacional.

12.

De resto, a contumácia tem uma natureza puramente instrumental: serve para conseguir a notificação dos despachos de acusação e de designação da data para julgamento; pelo que, perante a consecução desse objectivo, esgota totalmente a sua razão de ser.

13.

Com todo o respeito, é um total contra-senso entender que a notificação pessoal dum arguido não contumaz residente no estrangeiro permite a realização do julgamento, enquanto que a notificação pessoal do mesmo arguido contumaz já não produz tais efeitos, porquanto a contumácia visa, precisamente, conseguir essa notificação.

14.

Pelo exposto, a notificação pessoal realizada nos autos deve levar à caducidade da contumácia, assim se permitindo a realização de julgamento.

*15.

Perante a “espada” constituída pelo AUJ 5/2014 e a “parede” constituída pela jurisprudência citada no despacho recorrido, a não adopção duma “terceira via” condenará centenas de processos à respectiva paralisia, ao arrepio da eficácia mínima da justiça penal pressuposta num Estado de Direito – art.º 1º da Constituição da República Portuguesa.

*16.

Finalmente, parte das preocupações veiculadas no Ac. do TRP de 10/03/2021, proferido no processo 2354/11.4TDPRT-A.P1, ficam satisfeitas, no caso dos presentes autos, uma vez que o arguido foi expressamente advertido de que, faltando ao julgamento (ao qual podia participar via videoconferência), este poderia ser realizado na sua ausência.

17.

O julgamento na ausência não constitui uma surpresa para o arguido, portanto, e, sopesada a necessidade da sentença ser-lhe notificada pessoalmente, nomeadamente para efeitos de exercício do direito de recurso, ficam salvaguardados todos os direitos processuais constitucionais do arguido.

Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por decisão que declare a cessação da contumácia, assim se fazendo Justiça”.

*Dos autos não consta resposta.

*Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer desfavorável ao provimento do recurso, nos seguintes termos (transcrição): “Salvo o devido respeito, entendemos que o recurso do Ministério Público não deverá obter provimento.

Vejamos: O arguido AA foi declarado contumaz no Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 720/03.8PUPRT, do Juiz 4, do Juízo Local Criminal do Porto.

Após a declaração da contumácia, foi possível apurar o paradeiro do arguido na Roménia e, através de carta rogatória, foi notificado pessoalmente da acusação, do despacho que recebeu a acusação e da data designada para julgamento.

O arguido não compareceu na data designada para julgamento, nem foi detido.

A questão a resolver neste recurso é assim apenas a de saber se se pode considerar verificada a caducidade da declaração de contumácia, nos termos previstos no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com a notificação pessoal ao arguido da acusação, do despacho que recebeu a acusação e do despacho que designou data para realização da audiência de julgamento.

Ora, pese embora se compreendam e respeitem os argumentos do Exm.º Senhor Procurador da República na primeira instância, não podemos esquecer que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2014, publicado no DR 97, SÉRIE I, de 21-05-2014, fixou a seguinte jurisprudência: “Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia”.

Considerou-se, aliás, em tal Acórdão de Fixação de Jurisprudência que só a apresentação pessoal do arguido ou a sua detenção asseguram a sua efetiva disponibilidade para os posteriores termos do processo.

Ora, a ser assim, não vemos como a simples notificação pessoal da acusação, do despacho que recebeu a acusação e do despacho que designou data para realização da audiência de julgamento possa fazer caducar a contumácia.

A esse propósito, consignou-se, aliás, no Acórdão de 10-03-2021, deste Tribunal da Relação, processo n.º 2354/11.4TDPRT-A.P1: “Recordemos que anteriormente à Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de setembro, era entendimento pacífico que o artigo 32.º, nºs 1 e 5 da CRP impossibilitava a realização da audiência de julgamento em processo penal na ausência do arguido. Orientação que tinha a sua génese na Resolução n.º 62/78 da Comissão Constitucional, que declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do artigo 32.º, nºs 1 e 5 da Constituição, os §§ 1.º, 2.º e 3.º do artigo 418.º do CPP de 1929, e que fez com que o artigo 332.º, n.º 1, do CPP de 1987 viesse estabelecer como obrigatória a presença do arguido na audiência de julgamento, exceto nas hipóteses previstas no artigo 334.º, nºs 1 e 2, ou seja, se ao caso coubesse processo sumaríssimo, mas o procedimento tivesse sido reenviado para a forma comum, com os demais requisitos referidos no nº 1, ou nos casos em que o arguido se encontrasse praticamente impossibilitado de comparecer à audiência por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, e o mesmo requeresse ou consentisse que a audiência tivesse lugar na sua ausência.

Ora, o que veio a suceder com a reforma operada pela Lei nº 59/98, de 25 de agosto, posteriormente consolidada com as alterações impostas pelo DL n.º 320-C/2000, de 15 de dezembro, na sequência da abertura para tal permitida com a alteração à Constituição pela Lei Constitucional nº 1/97, foi alargar os casos de possibilidade de realização da audiência de julgamento na ausência do arguido, para além daqueles em que tivesse sido o mesmo a requerê-la ou consenti-la, mas tão só quando ao arguido tivesse sido aplicada a medida de coação de...

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