Acórdão nº 6/20.3GARMZ.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 26 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelM. CARMO SILVA DIAS
Data da Resolução26 de Janeiro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Proc. n.º 6/20.3GARMZ.E1.S1 Recurso Acordam, em audiência, no Supremo Tribunal de Justiça Relatório I.

Em processo comum (tribunal singular) n.º 6/20.3GARMTZ do Juízo de Competência Genérica ..., da comarca de Évora, por sentença de 13.01.2022, foi decidido, além do mais:  Absolver a arguida AA, pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal.

 Condenar o arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, e 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C do mesmo diploma legal, na pena de 1(um) ano e 2(dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período.

II.

Inconformado com essa sentença, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, o arguido e também o Ministério Público (no tocante à absolvição da arguida), tendo aquele tribunal, por acórdão de 13.09.2022, decidido: - Alterar a matéria de facto provada, nos termos que expôs, em 2.3.2.1., dados por reproduzidos; - Na decorrência da alteração da referida matéria de facto, revogou a decisão absolutória recorrida, quanto à arguida AA, condenando-a, como coautora, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p., pelo artigo 25º, al. a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano de prisão, determinando a suspensão da execução da referida pena de prisão, pelo período de 1 (um) ano; - Quanto ao arguido BB, confirmou a sentença recorrida.

III.

Inconformada com esse acórdão do TRE de 13.09.2022, veio a arguida AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem negritos):

  1. A sentença de 1.ª instância não deu como provados os factos que preencheriam quanto à Arguida, ora Recorrente, o tipo do crime de tráfico de menor gravidade por que ela vinha acusada, absolvendo-a.

  2. Porém, a Relação de Évora, dando provimento ao recurso do Ministério Público, deu tais factos como estabelecidos, condenando-a a uma pena de prisão de 1 ano, suspensa na sua execução durante o tal período.

  3. A Relação – fundada exclusivamente nos factos estabelecidos pela 1.ª instância, e na fundamentação em que a 1.ª instância se alicerçara para o efeito – estabeleceu o seguinte raciocínio: i) a Arguida também participava no cultivo da cannabis na Herdade ..., cultivo esse que não estava autorizado; ii) para o efeito em pauta, não seria decisivo que fosse BB a tratar do cultivo das plantas e da realização das experiências medicinais, cabendo à Arguida a parte do projecto relativa à produção de produtos biológicos, uma vez que a Arguida também participava naqueles actos de cultivo, designadamente porque também regava as plantas [as da cannabis e as da produção biológica, que ocupavam a estufa da Quinta]; iii) considerando a formação académica da Arguida e o facto de estar envolvida com o seu companheiro BB no projecto ambiental levado a cabo na Herdade, visando a produção, estudo e comercialização de vários produtos, ervas aromáticas e outras plantas, e a produção de produtos biológicos, a Arguida não podia deixar de ter conhecimento que o cultivo de cannabis, designadamente para fins medicinais, carece de autorização das autoridades competentes; iv) de igual modo, a Arguida sabia que a autorização para a plantação da cannabis para fins de investigação medicinal não fora conferida, situação que ela não podia desconhecer, porque explorava em conjunto a actividade empresarial com o companheiro; v) assim sendo, a Arguida sabia que o cultivo de cannabis para fins medicinais, incluindo a realização de estudos e experiências, sem autorização das autoridades competentes, era proibida e constituía um crime.

  4. Não se ignora que os tribunais podem servir-se de presunções para, a partir de factos conhecidos, através de ilações extraídas de acordo com critérios lógicos e conformes à experiência comum, estabelecerem factos desconhecidos.

    Isso é comum na vida judiciária, mormente, em matéria penal, quanto ao elemento do tipo subjectivo dos crimes. Não poderia deixar de ser assim, e a Recorrente não põe isso em causa.

    A questão está em que as ilações sejam extraídas dos factos conhecidos, através de critérios objectivos, racionais e que obedeçam às leis da lógica e da experiência, surgindo como conclusões naturais e não suscitando dúvida razoável.

  5. Ora, à luz desses princípios que decorrem de jurisprudência e doutrina consolidadas, o raciocínio do Acórdão recorrido, mormente quanto aos segmentos supra identificados na Conclusão C), padece de três erros, cometidos contra a lógica e contra os princípios da imediação e da presunção de inocência, a saber: a) Primeiro: o Acórdão presumiu – para daí extrair uma segunda presunção no sentido de que a Arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei – que a Arguida sabia que a exploração da cannabis para fins de investigação medicinal não fora autorizada, o que não correspondia aos factos dados como assentes e, de acordo com regras elementares da lógica, razoabilidade e objectividade, não podia ter sido estabelecido; b) Segundo: o Tribunal ignorou o princípio da imediação, uma vez que a conclusão de non liquet estabelecida pela 1.ª instância era racional e logicamente bem fundamentada, não havendo elementos que impusessem decisão diferente; c) Terceiro: o Acórdão violou o princípio da presunção de inocência, porque, confrontado com duas versões possíveis e plausíveis em relação ao conhecimento que a Recorrente teria da falta de autorização, optou, para além da dúvida razoável, pela tese desfavorável à Arguida.

  6. Primeiro erro Como se retira das passagens do Acórdão recorrido supra sublinhadas, a Relação de Évora deu como provado que a Arguida sabia que a plantação não estava autorizada; ora, esse é o busílis da questão, uma vez que a 1.ª instância não deu tal facto como provado.

    O non liquet da 1.ª instância teve precisamente a ver com o facto de não poder dar como estabelecido que ela tinha conhecimento dessa falta de autorização. E por isso é que não pôde dar como provado que a Arguida sabia que estava a adoptar condutas proibidas e punidas por lei.

  7. Admita-se que a Relação podia – a partir dos factos efectivamente estabelecidos pela 1.ª instância, e considerando a respectiva fundamentação de facto – discutir se seria ou não adequado extrair a ilação de que a Arguida teria conhecimento de que não havia autorização para a plantação e para, a partir daí, estabelecer uma presunção de 2.ª linha no sentido de que, sabendo que a autorização da licença não fora concedida, estaria a praticar uma conduta proibida e punida por lei.

    Foi isso que a Relação procurou fazer, acontecendo, porém, que o fez contra as regras da lógica, razoabilidade e objectividade.

  8. Não se põem em causa as três primeiras premissas de que partiu a Relação supra enunciadas na Conclusão C), nem que, estabelecido o facto constante da 4.ª premissa, se poderia estabelecer a presunção da 5.ª premissa, ou seja, que, nesse caso, a Arguida saberia que a sua conduta seria proibida e punida pela lei.

  9. O ponto está na presunção relativa à 4.ª premissa supra enunciada: a de que a Arguida sabia que a autorização para a plantação da cannabis para fins de investigação medicinal não fora conferida, situação que ela não podia desconhecer, porque explorava em conjunto a actividade empresarial com o companheiro. Neste item, a presunção do Acórdão viola ostensivamente as regras da lógica, razoabilidade e objectividade, extraindo uma ilação que, para além de uma dúvida razoável, não podia ter sido estabelecida.

  10. Vejamos: a) está assente que, no âmbito do projecto ambiental designado P..., a Arguida se dedicava à produção de produtos biológicos (alimentares e cosméticos), o que correspondia à sua actividade comercial de comercialização e produção de produtos biológicos – cfr. factos provados n.os 4, 27 e 29; b) está igualmente assente que, no âmbito desse projecto, era BB que tratava do cultivo das plantas e realização de experiências com cannabis, tendo a plantação de cannabis o propósito de investigação medicinal – cfr factos provados n.os 5, 20 e 21; c) segundo a sentença da 1.ª instância, as diligências inerentes à tentativa da legalização do cultivo da planta para fins de investigação medicinal, foram levadas a cabo pelo co-arguido BB – cfr. fundamentação da matéria de facto da sentença de 1.ª instância; d) segundo a sentença da 1.ª instância, nessas diligências, a única em que a Arguida esteve presente foi numa reunião na Câmara Municipal ... – entidade que veio a pronunciar-se no sentido de que tencionava autorizar a sociedade dos Arguidos para produzir cannabis para efeitos medicinais –, tendo o interlocutor dos Arguidos (o Presidente da Câmara) ficado convencido de que era BB quem liderava esse processo – cfr. facto provado n.º 19 e fundamentação da matéria de facto da sentença de 1.ª instância; e) segundo a sentença da 1.ª instância, BB referiu “de modo claro e assertivo que informou a Arguida que o cultivo estava legalizado” – cfr. fundamentação da matéria de facto da sentença de 1.ª instância.

  11. Estes são os factos. Como é que a partir deles – e não há outros relevantes a considerar – se pode estabelecer a presunção de que a Arguida ora Recorrente tinha conhecimento de que a plantação para fins de investigação medicinal não estava autorizada? Então, não era BB que acompanhava todo esse processo de autorização para a plantação de cannabis para fins de investigação medicinal (e, mais tarde, para a plantação para fins medicinais), estando a Arguida concentrada na produção dos produtos biológicos para fins alimentares e cosméticos? E não referiu BB – em termos que a 1.ª...

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