Acórdão nº 0532/09.5BESNT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 11 de Janeiro de 2023

Magistrado ResponsávelPEDRO VERGUEIRO
Data da Resolução11 de Janeiro de 2023
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Processo n.º 532/09.5BESNT (Recurso Jurisdicional) Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: 1.

RELATÓRIO “I..., Lda.”, devidamente identificada nos autos, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, datada de 29-10-2021, que julgou improcedente a pretensão pela mesma deduzida no presente processo de IMPUGNAÇÃO relacionado com as liquidações oficiosas de IVA desde Janeiro de 2002 a Dezembro de 2004, no valor de € 276.172 e respectivas liquidações de juros compensatórios, no valor de € 22.909,80, sendo o total de € 299.081,80 emitidas na sequência de acção inspectiva que procedeu à correcção da matéria colectável e no seguimento de decisão de indeferimento de recurso hierárquico.

Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem: “ (…) (a) O presente processo apresenta contornos “quixoteanos”, colocando-se em crise um modelo comercial adotado livremente por duas empresas - um modelo de descontos no âmbito de uma relação de compra e venda de bens - e em que se impõe, através das correções da AT e com beneplácito do Tribunal a quo, em clara oposição com o princípio da autonomia privada, um outro modelo comercial - um modelo de prestação de serviços - sem que o mesmo seja devidamente sustentado e inequivocamente comprovado e, mais surpreendente ainda, sem que o mesmo se traduza em efectivos ganhos de receita fiscal para o Estado.

(b) A vingar o entendimento da AT, os alegados serviços terão necessariamente de ser faturados pela Recorrente à G... sendo o IVA que aquela alega estar em falta dedutível na esfera desta última empresa, já que estarão em causa inputs utilizados na sua atividade tributável, e aquela dedução é salvaguardada pelo princípio da neutralidade e pela vasta jurisprudência do TJUE sobre a matéria.

(c) O Tribunal a quo andou mal quando considerou que a descaracterização de negócio jurídico promovida pela AT não negligenciou os procedimentos legais necessários para esse efeito, designadamente a aplicação do procedimento de aplicação de disposição antiabuso previsto no artigo 63.º do CPPT.

(d) De facto, são postas em causa as relações comerciais entre a Recorrente e a G... tal como foram configuradas por ambas as empresas (e por conseguinte o princípio da autonomia privada que tem dignidade constitucional podendo ser inferido nomeadamente da liberdade de empresa prevista no artigo 85.º da Constituição da República Portuguesa), para depois se concluir que ocorreu omissão de pagamento do IVA correspondente à prestação de serviços efetuada pela Recorrente àquela empresa, razão pela qual esse imposto é corrigido e liquidado oficiosamente à taxa aplicável.

(e) Ao alterar a qualificação contabilística efetuada ao desconto promovido pela G... à Recorrente que, na verdade, no seu entender, configura uma prestação de serviços encapotada, a AT está a considerar como “abusiva”, para efeitos fiscais, a forma jurídica adotada pelas sociedades na sua relação comercial.

(f) As justificações que são apresentadas pela AT afiguram-se claramente insuficientes para fundamentar as correções em causa, porquanto, estando em causa a desconsideração de várias operações efetuadas pela sociedade, e da conformação jurídica que lhe foi dada pelos intervenientes dessas operações, as mesmas, à luz das normas vigentes, só poderiam ser postas em causa pela AT mediante: i) a aplicação do regime da “cláusula geral antiabuso”, prevista no artigo 38.º LGT, que permitiria uma desconsideração “global” das operações e a sua requalificação pela AT; ou ii) a apresentação de razões concretas, de facto e de direito, que demonstrassem que os “descontos especiais” não tinham justificação à luz das regras do negócio, em cada um dos casos em que foram desconsiderados.

(g) As correções efetuadas não seguiram nenhum dos dois procedimentos e requisitos previstos nos regimes acima enunciados, pelo que, de entre outros vícios, carecem da fundamentação legalmente exigida.

(h) No caso concreto, perante a afirmação de que “os descontos especiais concedidos pela G... é uma forma de remunerar a I... pelas tarefas que desenvolve na área de vendas, comercialização e distribuição de produtos e clientes da G...

”, dúvidas não restam de que o fundamento das correções efetuadas é a consideração, pela AT, de que o uso das formas jurídicas adotadas pela Recorrente e pela sua cliente é abusivo, do ponto de vista fiscal, visando a evitação de impostos.

(i) Como se apura dos factos provados não só não foi aberto qualquer procedimento especial nos termos do artigo 63.º do CPPT, como não foram sequer materialmente observados os requisitos especiais de fundamentação previstos naquele normativo, aquando da valoração das operações de desconto, que levaram às liquidações impugnadas.

(j) Não tendo - formal ou materialmente - sido aplicado (ou, sequer, iniciado) o procedimento adequado, nem tendo sido cumpridos os seus requisitos legais de fundamentação, em clara violação dos direitos processuais que assistem à Recorrente, manifestamente não pode ser considerada válida, à luz das regras decorrentes da aplicação da “cláusula antiabuso”, qualquer correção efetuada por desconsideração das formas jurídicas utilizadas pelo sujeito passivo, v.g., a utilização de “descontos especiais” na relação com a G....

(k) A qualificação distinta de um determinado negócio jurídico – que, apesar de tudo, determina também a ineficácia do negócio tal como havia sido conformado pelo sujeito passivo –, com impacto ao nível da liquidação de imposto, o qual não foi requalificado através da interpretação do conteúdo jurídico do contrato, terá, forçosamente, de ser efetuada através do procedimento a que alude o artigo 63.º do CPPT, pois os efeitos alcançados caem no escopo do regime da cláusula geral antiabuso – o que manifestamente não ocorreu no caso em apreço.

(l) Ainda que se entenda que, ao caso concreto, não era aplicável a “cláusula geral antiabuso”, e admitindo-se que, ao nível da intenção da AT, se tenha desejado aplicar uma mera desconsideração da qualificação jurídica das operações de desconto efetuado à Recorrente, por se considerar como não verificados os requisitos materiais subjacentes ao negócio, tal como configurado pelas partes, também nesse caso se verifica que em todos os atos emanados da AT se tecem meras considerações opinativas e meramente valorativas - e mesmo especulativas - sobre os contornos das operações postas em causa, sem se justificar, de facto e de direito, as razões da referida requalificação.

(m) Verifica-se que a AT colocou em crise os contornos da relação jurídica existente entre a Recorrente e a G... e o desconto praticado por esta empresa, sendo que não apresentou evidências e argumentos de direito que permitiriam apurar, em concreto, para cada nota de crédito emitida, porque razão não se aceita(m) a(s) operação(ões) nela(s) consubstanciadas, o que redunda na falta de fundamentação das liquidações contestadas.

(n) Relativamente à substância da operação em causa (se nos encontramos perante uma transmissão de bens com desconto ou uma prestação de serviços com correspondente contraprestação), o Tribunal a quo embarca em idêntica análise superficial adotada pela AT relativamente ao conteúdo da relação jurídica existente entre a Recorrente e a G... referindo que vigorando contratos de prestação de serviços entre a primeira empresa e outras marcas e empresas então “não era impossível, ao contrário do que alega a Impugnante, que a sua relação com a G... não pudesse ser nos mesmos termos”.

(o) No entanto, este salto lógico de considerar a relação contratual existente entre a Recorrente e a G... como baseada em modelo de prestação de serviços encontra-se ainda por explicar e carece de uma cabal fundamentação, já que não bastam meros indícios especulativos para colocar em crise um procedimento contratual (também não impossível, utilizando a expressão do Tribunal a quo) livremente determinado pelas partes e devidamente refletido nas respetivas contabilidades, pelo que, nos termos artigo 100.º do CPPT, o ato deveria ter sido anulado.

(p) No presente caso, conforme descrito supra, a Recorrente adquire os produtos lácteos junto da entidade produtora (a G...), tendo em vista a respetiva comercialização e distribuição na sua área de influência, i.e., na zona da Grande Lisboa e Vale do Tejo. Na aquisição destes produtos, a Recorrente beneficia de um desconto fixo, de 25%, concedido pela G... e refletido na fatura emitida no momento da venda, sendo que, em determinadas circunstâncias, esta última concedia à Recorrente “descontos especiais”, em momento posterior ao da emissão da fatura de venda, procedendo à emissão das correspondentes notas de crédito.

(q) Os descontos especiais concedidos pela G... configuram verdadeiros abatimentos ao valor inicialmente faturado por esta nas transmissões de produtos lácteos, pelo que são expurgados do valor tributável das operações, por forma a fazer coincidir a base de incidência do IVA com o valor dos consumos efetuados.

(r) Acresce que da construção adotada pela AT e validada pelo Tribunal a quo, se encontra ainda por justificar de forma cabal a existência de uma prestação de serviços no caso vertente, já que não existe um nexo direto resultante de um vínculo sinalagmático de prestações recíprocas, entre uma operação configurada objetivamente como prestação de serviços e uma contraprestação que constitua a sua remuneração sendo que tal valor deve corresponder rigorosamente ao da contraprestação real e subjetivamente acordada pelas partes.

(s) Ora, na presente situação não há nexo direto de prestações recíprocas, já que existe uma operação de compra e venda de bens que constitui o cerne na relação jurídica da Recorrente com a G... que afasta esse nexo direto, e o alegado prestador do serviço não recebe uma efetiva contraprestação subjetivamente acordada, já que a mesma se impõe pelas...

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