Acórdão nº 836/22 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução20 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 836/2022

Processo n.º 717/22

1.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nestes autos, A., B. e C. interpuseram, em requerimentos autónomos, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante LTC), recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 16/10/2019, que decidiu julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido A. [confirmando a condenação, em primeira instância, pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103.º, n.º 1, alínea a) e c), e 104.º, n.º 2, alínea a), do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de dois anos e seis meses de prisão e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de seis anos e nove meses de prisão] e parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público [revertendo a absolvição, em primeira instância, do arguido B. da prática do crime de burla qualificada e do arguido C. da prática dos crimes por que vinha pronunciado] e, em consequência, condenar o arguido B. pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de quatro anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, com sujeição a regime de prova e com a condição de, nesse prazo, entregar ao Estado Português a quantia de € 200.000,00, e o arguido C. pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103.º, n.º 1, alínea c), e 104.º, n.º 1, alíneas a) e g), ambos do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de, nesse prazo, pagar ao Estado Português a quantia de € 10.000,00.

2. Pela Decisão Sumária n.º 554/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento (no todo ou em parte) do objeto dos recursos interpostos, com a seguinte fundamentação:

«6. Recurso interposto pelo arguido A.

[...]

6.1. O recorrente pretende que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade da «norma do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de que a decisão de pronúncia que confirma a acusação constitui caso julgado formal, encontrando-se a possibilidade de apreciação da respetiva nulidade excluída do âmbito das subsequentes fases do processo» [cf. ponto 3.1., «a)»].

Este enunciado significa que não é possível reagir contra eventuais vícios geradores de nulidade do despacho de pronúncia que confirma a acusação. Ora, sobre este tema o trecho relevante do acórdão recorrido é o seguinte: «[o] momento próprio para ser suscitada a nulidade da pronúncia já há muito se mostra ultrapassado […]. Efetivamente, se o recorrente entendia que a pronúncia padecia do vício que afirma, cabia-lhe ter oportunamente (isto é, em 2010, quando foi do seu teor notificado) suscitado tal questão, sendo certo que a mesma já não é passível de apreciação por este tribunal, neste âmbito». O acórdão recorrido em lado algum afirma que não é possível arguir eventuais nulidades que afetem o despacho de pronúncia que confirma a acusação. Pelo contrário, reconhece expressamente essa faculdade. Simplesmente, explica que ela deve ser exercida num momento próprio – após a notificação do despacho de pronúncia – e, nessa sequência, refere que a questão já não é passível de apreciação. Restringir a utilização de determinado meio impugnatório a um momento processual próprio não é o mesmo do que afirmar que essa utilização está absolutamente vedada.

O que se acaba de expor permite concluir que a norma enunciada pelo recorrente não corresponde à ratio decidendi do acórdão recorrido. Trata-se de um requisito que traduz uma exigência de utilidade do recurso de fiscalização concreta, já que este – atenta a sua função instrumental – só deve admitir-se na medida em que a eventual procedência implique uma alteração da decisão recorrida. Assim, não sendo questionada a conformidade constitucional do efetivo critério normativo mobilizado pela decisão recorrida, a utilidade do recurso encontra-se comprometida, pois um eventual juízo de inconstitucionalidade nunca poderia determinar uma reformulação dessa decisão (cf., entre muitos outros, o Acórdão n.º 372/2015), inviabilizando a referida função instrumental.

A falta de correspondência entre a ratio decidendi e a norma enunciada pelo recorrente obsta, só por si, ao conhecimento do recurso nesta parte.

Acresce que a questão de inconstitucionalidade em causa não foi previamente suscitada. É o próprio recorrente que o refere, mas invocando que não lhe era exigível fazê-lo antes de ser proferida a decisão recorrida, por se tratar de “decisão-surpresa”, de conteúdo imprevisível.

O Tribunal Constitucional vem afirmando, em vasta e consolidada jurisprudência, as condições em que o recorrente se pode considerar dispensado do ónus de suscitação prévia, fazendo uma interpretação muito exigente desta exceção: só a admite «nos casos “excecionais” ou “anómalos” em que o recorrente é efetivamente confrontado com uma concreta aplicação ou interpretação de todo imprevisível e inesperada, não se lhe podendo impor, segundo critérios de exigibilidade e razoabilidade, a antecipação de que o tribunal iria optar pela – objetivamente surpreendente – convocação ou interpretação da norma (cf., por exemplo, os casos sobre que incidiram os Acórdãos n.ºs 74/2000, 124/2000, 210/2000, 56/2001, 120/2002 e 130/2009)» – cf. Carlos Lopes do Rego, ob. cit., p. 81. Esta conceção decorre do ónus que «recai sobre as partes de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica», cabendo-lhes, assim, «a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas – não bastando obviamente a invocação de mera “surpresa subjetiva” da parte com a aplicação normativa realizada nos autos (Acórdãos n.ºs 479/89, 678/99, 481/98, 192/2000, 22/2002, 261/2002, 446/2002, 115/2005, 14/2006 e 148/2008)» – cf. Carlos Lopes do Rego, ob. cit., pp. 81-82.

Mais recentemente, pode ler-se no Acórdão n.º 696/2017:

«[...]

É certo que, em determinados casos, o Tribunal Constitucional considera ser de dispensar o preenchimento desse ónus, admitindo o conhecimento apesar da omissão de suscitação adequada da inconstitucionalidade normativa durante o processo. Estão em causa situações em que o Tribunal Constitucional entende que, em concreto, o cumprimento desse ónus por parte do interessado não é exigível.

Para que se possa apurar a procedência de uma situação de não exigibilidade, não basta apenas que o recorrente invoque ter sido surpreendido pela interpretação normativa determinada e aplicada pela decisão recorrida, como sucede no presente caso. A mera surpresa subjetiva não é fundamento suficiente para se poder ter por dispensado o recorrente deste ónus.

[...]».

Do exposto resulta que, «se a interpretação da norma surge como perfeitamente razoável e previsível, mostrando-se inteiramente compatível com o teor literal do preceito em causa (Acórdãos n.ºs 197/2002 e 186/2003) ou com o contexto normativo em que se enquadra o litígio, correspondendo a uma jurisprudência corrente ou uniforme dos tribunais, não pode o interessado deixar de prever que será altamente provável a aplicação de tal norma ou interpretação da mesma à respetiva dirimição (cf., v.g., os Acórdãos n.ºs 366/96, 12/99, 186/2003 e 150/2008)» – cf. Carlos Lopes do Rego, ob. cit., p. 82.

Ora, o recorrente invocou, no recurso apresentado perante o Tribunal da Relação de Lisboa, de forma clara e autónoma, a nulidade da pronúncia, enquanto fundamento de nulidade do acórdão condenatório proferido em primeira instância, que a ela adere e reconhece validade, não obstante não ter operado uma concreta subsunção jurídica da factualidade descrita aos elementos objetivos e subjetivos dos vários tipos penais. Nesse momento, o recorrente podia e devia contar com a discussão em torno da oportunidade de arguição e apreciação dessa nulidade, pelo que podia e devia ter suscitado as questões de inconstitucionalidade que considerava pertinentes a esse propósito. Com efeito, os fenómenos preclusivos não só são, em geral, inerentes ao regime das nulidades, como também são comuns em tipos de processos – como o penal – compostos por diferentes fases, tendencialmente estanques, por referência ao termo de cada uma. Neste contexto normativo, não podia o recorrente deixar de prever como provável que o tribunal recorrido considerasse precludido o direito de arguir e, consequentemente, de ver apreciada a nulidade da pronúncia nesta fase processual, entendimento que não se mostra, portanto, imprevisível ou inesperado.

Não há, assim, fundamento para que o recorrente se considere dispensado do ónus de suscitação prévia, uma vez que a decisão recorrida em caso algum pode ser qualificada como “decisão-surpresa”.

Deste modo, a circunstância de não ter sido observado o ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC...

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