Acórdão nº 0269/22.0BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 24 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelANA PAULA PORTELA
Data da Resolução24 de Novembro de 2022
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

RELATÓRIO: 1.

O MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, vem interpor recurso de revista para este STA, do acórdão do TCA Sul, proferido em 11.08.2022, que, em sede de reclamação para a conferência da Decisão Sumária de 11.07.2022 no mesmo TCAS, deduzida pelo SEF, indeferiu a reclamação, confirmando a decisão que havia concedido provimento ao recurso da sentença do TAC de Lisboa, revogando-a, e, conhecendo em substituição, condenara a Entidade Demandada a reconstituir o procedimento relativo ao pedido de proteção internacional formulado por A……….., nacional da Guiné, titular do pedido de asilo nº 1359/21 – 789.21PT, no âmbito da ação administrativa que este intentara contra o Ministério da Administração Interna, impugnando a Decisão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de 4.1.2022.

  1. Para tanto, alegou em conclusão: “1ª - Resulta evidente que o Tribunal ad quo na sua ponderação e julgamento do caso subjudice, e refutando a decisão do recorrente, não deu cumprimento às normas legais vigentes em matéria de asilo, mormente no que respeita ao mecanismo da Retoma a Cargo, ao qual a França está vinculada; 2ª - Está in casu em causa o abalo na confiança jurídica, corolário do princípio da certeza e segurança que se impõe a um Estado de direito, também, e sobretudo, na aplicação da justiça, como outrossim e diretamente, o princípio da legalidade; 3ª - As condições descritas pelo ora recorrido em sede de alegações, não se traduzem na “privação material extrema que coloque a pessoa numa situação de gravidade tal que possa ser equiparada a um trato desumano ou degradante”, no seguimento do que vem sendo o entendimento do TJUE.; 4ª - Compulsados os autos verifica-se que não foi feita uma alegação concreta, densa e particularmente grave pelo Recorrido para que se possa concluir pela aplicação da “cláusula de salvaguarda”, previsto no art.º 3°, 2º parágrafo do nº 2, do Regulamento Dublin ou para imposição à Entidade Administrativa da promoção de diligências instrutórias; 5ª - Assim sendo, não se vislumbra, por força das declarações do próprio Recorrido, que a Entidade Demandada omitiu qualquer dever instrutório, isto é, que devesse ter averiguado outros factos que se revelassem adequados e necessários à tomada de decisão, antes de ditar a transferência do A. para França; 6ª - No âmbito do Procedimento Especial previsto no Capítulo IV da Lei de Asilo (artigos 36.º a 40.º) relativo à determinação do Estado-membro responsável pela análise o pedido, na medida em que não se vai analisar o mérito do pedido nem os fundamentos em que se baseiam a pretensão do requerente, não se impõe à Administração que adotasse quaisquer outras diligências de prova ou de instrução do pedido, ao contrário do invocado pelo douto acórdão ora recorrido; 7ª - Entendimento análogo foi sufragado esmagadoramente em diversos Acórdãos do TCA Sul (proc. nºs 1258/19.7BELSB, 1353/18.0BELSB, 1740/18.3BELSB, 559/19.9BELSB, 743/19.5BELSB, 1069/19.0BESNT, 2195/19.0BELSB, 2206/19.0BELSB, 1662/19.8 BELSB, 1733/19.3 BELSB, 1708/19.2 BELSB, 1069/19.0 BESNT e 2368/19.6 BELSB); 8ª - Acresce também o Acórdão proferido pelo STA aos 16/01/2020, no Proc. 2240/18.7BELSB bem como Acórdão de 23 de abril, proferido no âmbito do Processo 916/19.0BELSB. Assim como decorre do comunicado de imprensa n.º 33/19 do Tribunal de Justiça da União Europeia, Luxemburgo, de 19 de março de 2019; 9ª - Neste contexto, o douto Acórdão carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pela lei nacional da União Europeia sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o ato do ora Recorrente.

    10ª - Ao invés, assim não atuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação do douto Acórdão, atenta a correta interpretação e aplicação da Lei.

    Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso de revista ser admitido (cf. art.º 150º nº 1 do CPTA) e dado provimento, com as legais consequências, com que V. Exas., Venerandos Conselheiros, farão JUSTIÇA!” 3.

    A………., deduziu contra-alegações, concluindo: “1. A ausência de notificação ao autor da decisão das autoridades francesas em aceitar a sua transferência consiste num grave vício procedimental, por violar o dever de fundamentação, nos termos do art. 152º do Código de Procedimento Administrativo, e art. 26º, nº 03 do Regulamento (UE) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de junho.

  2. A exposição dos fundamentos de facto e de direito pode ser sintética por parte da Administração, porém não podem ser lacónica, ainda mais quando se estão em causa direitos fundamentais substantivos do próprio autor como direito de asilo (art. 33º da CRP), o direito à integridade pessoal (art. 25º, nº 02 da CRP) e o direito de proteção à saúde (art. 64º, nº 01, da CRP).

  3. A decisão da Administração não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspetos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do ato.

  4. A notificação em questão foi fator de grande relevância para as autoridades portuguesas fundamentarem a decisão de transferência do autor, visto que integra “o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do ato”, e não circunstância fáctica acessória 5. A decisão do Estado Francês sobre a matéria não poderia ser sigilosa, visto que impactava diretamente a situação jurídica do requerente, e a ausência de notificação consistira, ainda, um vício no direito de tutela jurisdicional e ao acesso à informação.

  5. Caso as autoridades francesas aceitassem o pedido de retoma a cargo do cidadão, não há nenhuma garantia de que o processo será retomado e concluído, posto que a demora para a apreciação e decisão do pedido de proteção internacional formulado pelo recorrente demora há mais de dois anos.

  6. A ausência de notificação completa dessa decisão, bem como a falta de notificação, prejudicou a elaboração da ação e do recurso subsequente.

  7. A obrigatoriedade de instruir o procedimento com informação fidedigna e atualizada sobre o funcionamento do procedimento de asilo francês e as condições de acolhimento dos respetivos requerentes nesse Estado-Membro não consiste em apenas violação do princípio inquisitório e deficit instrutório, mas uma violação da interpretação literal do no 2º parágrafo, do nº 2, do artigo 3º do Regulamento (UE) 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho.

  8. O ónus de prova dessas condições de transferência é exclusivamente imputado ao Estado Português, e não do Estado Francês ou do beneficiário de asilo.

  9. O autor não se limitou a apresentar as dificuldades de acolhimento de conhecimento comum e generalizado, mas buscou fundamentar com base na situação de pobreza extrema pelas quais passou na França, dentre as quais: a) não teve acesso a benefícios sociais; c) dormiu nas ruas, sem acesso a qualquer abrigo ou centro de recolhimento; d) teve problemas estomacais durante o período que esteve na França; d) solidão, pela ausência de contacto com a sua família.

  10. O Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não pode ignorar a situação económica e social que se encontra atualmente o Estado Francês, designadamente, quanto às deficiências sistémicas nas medidas de acolhimento dos requerentes de asilo ou proteção internacional, sendo que o contexto de pressão migratória, como aquele com que, desde 2015, os Estados Membros se confrontam não pode resultar numa diminuição das garantias previstas nos vários normativos que vinculam os estados membros da União Europeia, o que acontece com os requerentes de asilo e proteção internacional na França.

  11. O facto de o Estado Francês não ter se pronunciado no prazo de dois anos não pode, em concreto, significar que o país tomou todas as medidas e que o seu silêncio equivale a uma recente aceitação tácita, mas sim que está, por razões evidentes e conhecidas de toda a ordem jurídica comunitária, sobrelotado de pedidos.

  12. Ainda que demonstrado que o demandado remetesse, em 13/12/2021, um pedido de retoma a cargo do autor às autoridades francesas e que estas, em 27/12/2021, aceitassem essa retoma, a obrigatoriedade do cumprimento do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT