Acórdão nº 324/21.3JAVRL.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelM. CARMO SILVA DIAS
Data da Resolução10 de Novembro de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Proc. n.º 324/21.3JAVRL.G1.S1 Recurso Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I-Relatório 1.

No processo comum (tribunal coletivo) nº 324/21.3JAVRL do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., da comarca de Vila Real, por acórdão de 03.05.2022, após alteração da qualificação jurídica dos factos, observado o disposto no n.º 1 e 3 do artigo 358.º do CPP, foi decidido, além do mais: Pelo exposto, julgando a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, nos termos e com a convolação supra exposta, acordam os juízes que constituem este Tribunal Colectivo:

  1. Condenar o arguido AA, como autor material, com dolo direto, de um crime de homicídio simples, na sua forma consumada, p.º e p.º pelo artigo 131.º, do Código Penal, na pena de 15 (quinze) anos de prisão.

    *** Mais acordam, julgar parcialmente procedente o Pedido de Indemnização Civil, por parcialmente provado e, consequentemente, decidem: b) Condenar o arguido/demandado AA a pagar aos demandantes filhos do falecido BB, CC e DD, na proporção do quinhão hereditário de cada um deles, a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), ou seja, € 20.000,00 (vinte mil euros) a cada um deles, pela perda do direito à vida do EE, a que acrescem juros moratórios calculados, à taxa legal, desde a data do presente acórdão, até ao efectivo e integral pagamento.

    c) Condenar o arguido/demandado AA a pagar a cada um dos quatro demandantes, companheira FF e filhos BB, CC e DD, a quantia de € 20.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais por cada um deles sofridos com a morte do companheiro e pai, a que acrescem juros moratórios calculados, à taxa legal, desde a data do presente acórdão, até ao integral e efectivo pagamento.

    d) julgar improcedente, por não provado, o demais peticionado e consequentemente absolver o arguido/demandado do demais peticionado.

    1. Desse acórdão interpôs recurso o Ministério Público e os assistentes EE e FF, os quais foram admitidos para a Relação de Guimarães mas, por decisão sumária de 02.09.2022, o TRG declarou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer dos recursos, por estarem confinados, exclusivamente, a matéria de direito, sendo competente o STJ, nos termos dos arts. 417.º, n.º 6, al. a), 434.º e 432.º, n.º 1, al. c), do CPP.

    2. Assim, no recurso interposto pelo Ministério Público foram apresentadas as seguintes conclusões[1]: 1- O MINISTÉRIO PÚBLICO recorre do douto acórdão proferido a 03 de maio de 2022 no qual se decidiu condenar o arguido AA como autor material, com dolo direto, de um crime de homicídio simples, na sua forma consumada, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de 15 (quinze) anos de prisão.

      2- Na verdade, muito embora concordemos que a conduta do arguido não é subsumível à qualificativa prevista na alínea e) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal não sufragamos o entendimento do Tribunal a quo no que tange ao afastamento da qualificativa do crime de homicídio por considerarmos a sua conduta enquadrável na alínea i) do mesmo normativo legal qualquer outro meio insidioso”).

      3- Se é certo que o arguido e a vitima encetaram, pouco tempo antes de aquele atentar contra a vida desta, uma discussão relacionada com a propriedade da residência onde habitava o arguido a verdade é que não foi nesse contexto de altercação que o arguido resolveu atentar contra a vida do EE, altura em que, estando ambos a discutir um com o outro, estariam em semelhantes condições para se defenderem de qualquer eventual ataque que o outro viesse a perpetrar, porque naturalmente atentos para uma eventual escalada da discórdia que poderia terminar num resultado semelhante ao verificado.

      4- Na realidade, o arguido optou por esperar que a discussão com a vitima cessasse, que esta se deitasse na sua cama e aproveitando tal facto (quer a posição de descanso da vitima quer o facto de já não estarem em contexto de altercação) abeirou-se da cama onde o EE se encontrava deitado e, sem que aquele tivesse qualquer oportunidade de reação ou oposição, desferiu-lhe, pelo menos, duas pancadas na zona da cabeça, atingindo-a com a extremidade de impacto da marreta/machado com o peso total de cerca de 4,5 Kg, provocando- lhe, assim, a sua morte.

      5- Tal atuação justifica, em nosso entender, por banda do Tribunal a quo um especial juízo de censura quanto à forma dissimulada, em forma de emboscada/armadilha que o arguido escolheu para agir e que lhe permitiu, naturalmente, estar numa especial situação de vantagem comparativamente à situação indefensável e vulnerável em que a vitima se encontrava e um especial juízo de perversidade revelador de uma postura cruel e de total desprezo pela vida da vítima, companheiro da sua irmã.

      6- Tais especiais juízos de censura e de perversidade conduzem de forma clara, na nossa perspetiva, ao preenchimento da alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

      7- E ainda que se venha a entender que a descrita conduta do arguido não suporta a qualificação do crime de homicídio pelo qual vinha acusado pelo preenchimento alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, entendemos, ainda assim, que o eventual não preenchimento de tal exemplo padrão não obsta à qualificação do crime de homicídio pelo qual deve ser condenado.

      8- Na verdade, a imagem global da atuação do arguido designadamente, o objeto utilizado, a opção de atingir a vitima quando esta se encontrava deitada e indefesa e o facto de esta ser companheiro da sua irmã - tem subjacente uma ideia condutora agravante que permite de forma sustentada um reconhecimento judicial de uma situação reconduzível a uma estrutura valorativa comparável à do exemplo padrão previsto na alínea i) do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal e portanto sustentadora da imputação ao arguido da prática do crime de homicídio qualificado.

      9- Concordamos na generalidade com o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo quanto à ponderação que efetuou, na determinação da medida concreta da pena, relativamente aos elementos que sopesam contra e a favor do arguido, a saber, considerando o grau de ilicitude e de culpa como elevado, a valoração conferida à confissão parcial, à ausência de antecedentes criminais, às acentuadas necessidades de prevenção geral, ao facto de o arguido estar socialmente inserido, de beneficiar de retaguarda familiar e de granjear boa imagem na comunidade onde se insere.

      10- Cremos, contudo, que o arguido agiu com dolo de intensidade elevada porque embora o seu comportamento tenha sido consentâneo com o seu “funcionamento intelectual na zona limite” e que não tenha havido a premeditação prevista na alínea j) do artigo 132.º n.º 2 do Código Penal, a prova produzida não permite extrair a conclusão de que ele agiu de modo irrefletido, instintivo ou reativo por si empreendido.

      11- Tal seria assim, se a agressão tivesse sido por ele infligida ao EE durante/no decurso da altercação que momentos antes haviam experimentado entre si, o que não aconteceu.

      12- Conforme decorre claramente dos factos dados como provados, embora aquela altercação tenha sido o “fundamento” da agressão ou aquilo que a despoletou, o arguido de forma pensada optou o não agredir o EE no decurso da mesma, certamente por estar ciente que nessa hipótese a vítima teria capacidade para se defender, capacidade essa que não teve, como já se explanou, no momento em que foi atacada, quando já estava deitada na sua cama.

      13- Pelo contrário, o arguido deixou que a altercação entre si e o companheiro da sua irmã terminasse, que este se deitasse na sua cama para dormir para então ir buscar um machado e, aproveitando a circunstância de o EE estar deitado o atingir da forma como fez, revelando, assim, que aquele ato foi pensado, ponderado ainda que apenas durante o pouco tempo que mediou o fim da discussão e o momento da consumação da agressão, pouco tempo esse que permitiu ao arguido munir-se daquele machado que antes não tinha consigo.

      14- O arrependimento do arguido, embora afirmado, deveria ter sido objeto de uma menor valoração em prol do mesmo no que tange à determinação da concreta medida da pena.

      15- Na verdade, o arguido procurou explicar a forma como a sua conduta fora levada a cabo de uma que a prova produzida manifestamente contrariou – afirmando que o EE estava de pé – para assim procurar demonstrar que a vítima não fora apanhada de surpresa e num momento em que não podia ter qualquer capacidade reativa.

      16- Em sede de determinação da medida concreta da pena deveria, em nosso entender, o Tribunal a quo ter também valorado contra o arguido, o facto de a vítima ser companheiro da sua irmã o que sempre lhe impunha uma especial ponderação do desvalor da sua conduta.

      17- O comportamento que o arguido adotou logo após ter atingido a vítima na cabeça com um machado, isto é, a circunstância de se ter apercebido que ela ficara prostrada na cama esvaindo-se em sangue até à morte e ter em face de tal cenário optado por ir dormir sem procurar auxílio que pudesse reverter o desfecho verificado é particularmente reveladora da especial desconsideração do arguido pela vida do companheiro da sua irmã e como tal deveria, a nosso ver, ter sido sopesada pelo Tribunal a quo contra o arguido em sede de determinação da medida concreta da pena (artigo 71.º n.º 2 alínea e) do Código Penal).

      18- Tendo em conta tudo o que assim vem exposto e os critérios que subjazem à determinação da medida das penas entendemos que o arguido deverá ser condenado numa pena não inferior a 19 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º n.º 1 e 2 alínea i) do Código Penal.

      Termina pedindo a procedência do recurso, com a consequente revogação do acórdão, o qual deve ser substituído por outro que, condene o arguido pela prática, em autoria material de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131.º e 132º n.º 1 e 2 alínea i) do Código Penal, sendo-lhe aplicada uma pena de prisão não inferior a 19 anos...

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