Acórdão nº 695/22 de Tribunal Constitucional (Port, 25 de Outubro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. José João Abrantes
Data da Resolução25 de Outubro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 695/2022

Processo n.º 388/2022

Plenário

Relator: Conselheiro José João Abrantes

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Um grupo de deputados à Assembleia da República veio, ao abrigo do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das seguintes normas constantes do Decreto-Lei n.º 15/2021, de 23 de fevereiro, que cria um regime especial de expropriação e constituição de servidões administrativas para a execução de projetos integrados no Programa de Estabilização Económica e Social (“PEES”), e da Lei n.º 59/2020, de 12 de outubro, que autoriza o Governo a aprovar um regime especial aplicável à expropriação e à constituição de servidões administrativas:

a) Do artigo 1.º, do n.º 1 do artigo 2.º, dos n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º, do artigo 5.º, dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 6.º e, consequentemente, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 15/2021, de 23 de fevereiro, bem como do artigo 1.°, das alíneas a), b) e c) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 59/2020, de 12 de outubro, alegando que violam o direito de propriedade privada, consagrado no artigo 62.º da Constituição, e impõem uma restrição desproporcional a esse direito, em violação dos artigos 62.º e 18.º, n.º 2, da Constituição;

b) Do artigo 1.° do Decreto-Lei n.º 15/2021, de 23 de fevereiro, e do artigo 1.° da Lei n.º 59/2020, de 12 de outubro, entendendo que violam o n.º 5 do artigo 112.º da Constituição.

2. Os requerentes sustentaram o seu pedido nos termos que constam de fls. 3 a 34 dos autos, sendo os seus fundamentos, numa síntese da argumentação nele expendida, os seguintes:

«(…)

a) A Lei n.º 59/2020, de 12 de outubro, veio autorizar o Governo a aprovar um regime especial aplicável à expropriação e à constituição de servidões administrativas, com o objeto, sentido, extensão e duração previstos nos respetivos artigos 1.º a 3.º.

b) No âmbito deste processo legislativo foram recebidos, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, os pareceres do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior do Ministério Público, da Ordem dos Advogados e da Associação Nacional dos Municípios Portugueses.

c) Várias destas entidades, apreciando a Proposta de Lei n.º 52/XIV/1 e o projeto de Decreto-Lei autorizado que acompanhou aquela iniciativa legislativa do Governo, suscitaram questões de índole constitucional, em especial, o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e a Ordem dos Advogados (OA).

d) Com efeito, o parecer do CSMP contém vários reparos em relação à "conformidade constitucional" quanto à "necessidade, adequação e proporcionalidade da restrição ao direito de propriedade" e o parecer da OA afirma, de forma perentória, que, "para além de serem desconformes com o artigo 62.º da CRP, violam igualmente o princípio da proporcionalidade, plasmado no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, já que tal princípio implica a necessidade de adequação das medidas administrativas aos objetivos a serem prosseguidos e a necessidade de equilíbrio entre os interesses públicos e privados, não devendo comportar sacrifícios desnecessários aos destinatários das decisões administrativas".

e) No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 59/2020, de 12 de outubro, o Governo aprovou, no Conselho de Ministros de 7 de janeiro de 2021, o Decreto-lei autorizado.

f) Trata-se do Decreto-Lei n.º 15/2021, de 23 de fevereiro, que cria um regime especial de expropriação e constituição de servidões administrativas para a execução de projetos integrados no Programa de Estabilização Económica e Social.

g) Sendo verdade que a redação do Decreto-Lei n.º 15/2021, de 23 de fevereiro, corrigiu e melhorou muitos aspetos do projeto de decreto-lei anexo à Proposta de Lei n.º 52/XIV/1, a verdade é que o mesmo não se encontra totalmente sanado de inconstitucionalidades.

h) Na verdade, subsistem várias das reservas de constitucionalidade apontadas, quer no parecer do CSMP, quer no parecer da OA.

i) Pela sua relevância e atualidade, passamos a destacar as passagens dos referidos pareceres, a cuja fundamentação aderimos para sustentar o presente pedido, que, no nosso entender, mantêm plena atualidade em face do teor quer da Lei n.º 59/2020, de 12 de outubro, quer do Decreto-Lei n.º 15/2021, de 23 de fevereiro.

j) O parecer do CSMP salienta que "a clara compressão que a proposta de lei visa introduzir terá de passar o crivo da proporcionalidade..., nos termos que resultam do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que o direito de propriedade, inserido no catálogo dos direitos económicos, sociais e culturais, goza de proteção análoga aos direitos, liberdades e garantias".

k) O referido parecer indica que "poderá haver outros meios com o mesmo nível de adequação à prossecução da apontada finalidade e que se revelem menos restritivos para os direitos dos expropriados: como a aquisição por via privada, correspondente à fase prévia da expropriação", destacando que "a proporcionalidade em sentido estrito e a necessidade poderão, desde logo, em nosso entendimento, ser questionadas quando o regime especial afasta sem mais e para todos os casos de execução das obras previstas no PEES as fases de aquisição por via de direito privado (cfr. artigo 11.º do Código das Expropriações), em virtude de estabelecer o carácter de urgência em todos e quaisquer casos".

l) Também no tocante a este ponto, relativo à total eliminação, por parte quer da Lei n.º 59/2020, de 12 de outubro, quer do Decreto-Lei n.º 15/2021, de 23 de fevereiro, da fase da tentativa de aquisição do direito privado, o parecer da OA também se pronuncia negativamente.

m) Refere o mencionado parecer que "ao considerar-se, automaticamente e por mero efeito da lei, de utilidade pública e com carácter urgente tais expropriações..., significa isto que se elimina a fase da tentativa de aquisição por via do direito privado, isto é, elimina-se a possibilidade da entidade expropriante e demais intervenientes no procedimento poderem almejar acordos e alcançar a aquisição dos bens por via do direito privado".

n) A Ordem dos Advogados salienta que se elimina "a possibilidade da resolução de expropriar... ser notificada previamente aos expropriados e aos interessados, dando-lhes conta da proposta de aquisição por via do direito privado", "impedindo-se que estes possam, de alguma forma, agir ou exercer o seu contraditório".

o) Segundo a Ordem dos Advogados, isto significa que a declaração de utilidade pública "só pode ser impugnada em sede de contencioso administrativo, com toda a morosidade a que já nos habituamos, traduzindo-se, muitas vezes, em sérios prejuízos para o expropriado/interessados."

p) Com base nos pareceres suprarreferidos, a que aderimos, entendemos que o absoluto afastamento da fase da tentativa de aquisição por via do direito privado, decorrente do disposto no artigo 2.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 59/2020, de 12 de outubro, e nos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/2021, de 23 de fevereiro, constitui uma restrição desproporcional ao direito à propriedade privada, em violação dos artigos 62.º e 18.º, n.º 2, da CRP.

q) O parecer da Ordem dos Advogados é contundente ao afirmar que "o conteúdo da Lei de Autorização legislativa, nos termos em que se encontra formulado, poderá violar o artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa", justificando que "não se acautelam devidamente os interesses dos expropriados e demais interessados afetados com as decisões adotadas no âmbito dos procedimentos em causa, impedindo-os de tomar uma posição esclarecida sobre tais despachos e deliberações, sendo os mesmos confrontados com factos já consumados, de declaração de utilidade pública e posse administrativa, tendo por base a mera e tão só aprovação dos respetivos projetos de construção necessários à preconização das obras em questão".

r) Tal parecer sublinha ainda que diploma autorizado do Governo "teve apenas como única preocupação considerar de utilidade pública e com carácter de urgência... , as expropriações dos imóveis e dos direitos inerentes necessários à construção, ampliação, reabilitação ou beneficiação de equipamentos, redes e infraestruturas no âmbito da execução dos investimentos a realizar no quadro das intervenções referidas no PEES", "limitando-se seriamente os interesses dos expropriados e dos interessados..., limitação essa que, no nosso modesto entender, atenta a proteção do direito de propriedade privada, plasmada no artigo 62.º da CRP".

s) Muito embora o Decreto-Lei autorizado tenha introduzido, por pressão do Presidente da República, a necessidade de a declaração de utilidade pública ser devidamente justificada (cfr. artigo 3.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º15/2021, de 23 de fevereiro), a verdade é que essa exigência pura e simplesmente inexiste no artigo 2.º da Lei de autorização legislativa, motivo de a mesma se encontrar, com base nos pareceres supracitados, a que aderimos, ferida de inconstitucionalidade, por atentar frontalmente a garantia da proteção da propriedade privada, consagrada no artigo 62.º da Lei Fundamental.

t) O parecer do CSMP salienta ainda que "o princípio da legalidade e o seu corolário da reserva de lei para restrições de direitos, liberdades e garantias (e direitos de natureza análoga) exige que, nesta matéria, se limite de modo rigoroso - ou se elimine de todo - o poder discricionário da Administração. Isto é, as normas legais restritivas terão de definir de modo claro e preciso os pressupostos da sua aplicação e os concretos efeitos jurídicos que daí decorrem", evidenciando que "perante a indefinição das concretas obras a realizar e a abrangência do PEES, existirá...

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