Acórdão nº 5366/21.6T8LSB.L1-2 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 27 de Outubro de 2022

Magistrado ResponsávelPEDRO MARTINS
Data da Resolução27 de Outubro de 2022
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados: B - Unipessoal, Lda, intentou a presente acção declarativa comum contra T- Unipessoal, Lda, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe 17.330€, acrescida dos correspondentes juros de mora legais à taxa de 5% a contar da data da reclamação escrita à ré, ou seja, desde o dia 07/04/2020, até efectivo e integral pagamento, cfr. 27/1 da CMR; mais 106,89€ a título de reembolso do valor do transporte que não foi cumprido.

Para tanto alega, em síntese, que contratou com a ré o transporte de uma encomenda, contendo dois equipamentos de uso médico, para a Alemanha. Contudo, uma vez que o destinatário não a recebeu no prazo esperado, a autora contactou a ré que, depois de diligências várias, admitiu o extravio da mercadoria. A ré propôs pagar uma indemnização de 286€, o que a autora não aceita, porquanto entende ter direito ao valor da mercadoria transportada, que totalizava 17.330€, equivalente ao custo da mercadoria nova. A actuação da ré no transporte, cujos pormenores desconhece, constitui culpa grave, pelo que não há lugar à aplicação de qualquer limite da responsabilidade do transportador.

A ré contestou, invocando a limitação da sua responsabilidade, (art.º 23 da CMR) que não poderá ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta, de acordo com a convenção aplicável. Para além disso, disse desconhecer o conteúdo da encomenda transportada, o seu valor e estado de conservação.

A autora foi convidada a responder à matéria da excepção, o que fez, reiterando a argumentação (art.º 29 da CMR) que já tinha deduzido na petição. (utilizou-se até aqui, no essencial, o relatório da sentença recorrid

  1. Depois de realizada a audiência final foi proferida sentença condenando a ré apenas no pagamento à autora de 261,39€, que já incluiu o preço do transporte (106,89€) e 1,81€ de juros.

A autora recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por acórdão que julgue procedente os pedidos deduzidos pela autora -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: 1ª - Face à matéria de facto dada como assente e provada nos autos, o tribunal a quo errou ao entender que, por não se encontrar demonstrado o dolo da transportadora ré, se aplica a limitação de responsabilidade prevista no artigo 23/3 da CMR.

  1. - Está em causa o incumprimento de um contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias, celebrado entre a autora e ré segundo o qual esta obrigou-se ao transporte de dois equipamentos, da propriedade da autora, por via terrestre, que foram recolhidos nas instalações da sede da autora (no dia 09/03/2020) e que deveriam ter sido entregues na Alemanha, mas que na realidade não chegaram ao destino, por terem sido extraviados.

  2. - Nos termos do disposto no artigo 17/1 da CMR, aplicável ao caso em apreço, o "transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim, como pela demora na entrega".

  3. - De acordo com o art.º 17/2 da CMR "o transportador só fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar".

  4. - A ré, em momento algum, alegou e muito menos comprovou que a perda decorreu de alguma das circunstâncias enunciadas no artigo 17/2 da CMR e, tal como dispõe o artigo 18 da CMR, era sobre ela que recaia o ónus de fazer essa alegação e prova.

  5. - A ré não alegou um só facto relativo às circunstâncias da perda, desconhece-se por completo o que sucedeu à mercadoria, bem como desconhece-se quais as medidas que a ré se rodeou para que tal não sucedesse e nem tão pouco a ré sequer arguiu uma justificação para o sucedido extravio.

  6. - Está em causa, no contrato de transporte, uma obrigação de resultado, por parte do transportador, bastando a demonstração pelo credor – expedidor – da não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria no destino, para se estabelecer o incumprimento do devedor -transportador.

  7. - Encontra-se demonstrado nos autos, que pese embora a ré tenha recolhido a mercadoria nas instalações da autora, a mesma desapareceu in itinere.

  8. - Impendia sobre a ré o dever de custódia, guarda e conservação da mercadoria.

  9. - O extravio da mercadoria em causa nos autos revela um elevado grau de incúria no cumprimento desse dever que se inscreve na esfera jurídica de entidades como a ré que se dispõem profissionalmente a realizar a deslocação geográfica de bens.

  10. - A autora demonstrou a não entrega da mercadoria no destino, tal como resulta do facto K: “A ré extraviou a mercadoria que lhe foi confiada para ser entregue ao destinatário na Alemanha, não tendo fornecido à autora qualquer explicação para o que sucedeu." 12ª - A ré não fez prova de circunstâncias que não podia evitar ou cujas consequências não podia obviar, de modo a excluir ou limitar a sua responsabilidade.

  11. - Com efeito, apesar de não haver elementos que permitam afirmar que o extravio da mercadoria se possa enquadrar numa falta considerada dolosa, na qual se possa apontar a intencionalidade inerente a esse tipo de imputação, o que é certo é que não se pode deixar de qualificar a falta como culpa grave.

  12. - A limitação da indemnização, decorrente do regime previsto no mencionado artigo 23 da CMR não ocorre se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, nomeadamente segunda a lei portuguesa, seja considerada equivalente ao dolo, atento o disposto no artigo 29/1 da CMR.

  13. - Como reza [o acórdão] do STJ de 12/10/2017, “Face ao regime português que equipara o dolo a mera culpa, para efeitos de responsabilidade contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a reparar integralmente os danos sofridos pelo expedidor. Nesta conformidade, a ré, ainda que possa não ter agido com dolo, não pode aproveitar-se da limitação da indemnização prevista nos artigos 23 e 24 da CMR, pois que, sendo o incumprimento do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada imputável, a título de culpa, responde pelos prejuízos causados ao expedido, nomeadamente nos termos previstos no 17/1 da CMR.” 16ª - Pelo que, de acordo com a culpa grave da ré, resultante do elevado grau de incúria no cumprimento da prestação de serviços, sem que tivesse sequer logrado uma explicação para o sucedido, limitando-se a assumir que após buscas não conseguiu localizar a mercadoria, ou seja, nem sequer conseguiu apurar as circunstâncias do extravio, as quais são desconhecidas, está afastado o regime especial de indemnização, previsto no artigo 23 da CMR.

  14. - Deste modo, a autora tem o direito ressarcitório que vem estipulado no artigo 562 do CC, ou seja, a reconstituição da situação em que a autora se encontrava se não fosse a lesão, o que equivale ao montante necessário para adquirir equipamentos equivalentes, ou seja, tal como peticionado na ação tem direito à quantia peticionada de 17.330€, acrescida dos juros de mora à taxa de 5 %, desde a data da reclamação escrita - 07/04/2020 – até efetivo e integral pagamento, de acordo com o art.º 27/1 da CMR.

  15. - A sentença recorrida, ao limitar a responsabilidade da ré nos termos previstos no artigo 23/3 da CMR, fez uma incorreta aplicação do direito aos factos, violando, entre outros, o disposto nos artigos 17, 18 e 29 da CMR.

A ré contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

Na parte da resposta, a ré, no essencial, segue a posição da sentença, que, por sua vez, no essencial, seguiu a sua contestação, onde ela, com argumentos já muito vistos na jurisprudência e doutrina que segue, defende que a culpa grave não pode ser equiparada ao dolo para efeitos do art.º 29 da CMR, com apelo, para além de ao regime interno, do Decreto-Lei 239/2003, principalmente à posição de José Luís Saragoça, A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias e o dolo ou falta equivalente ao dolo”, Temas de Direito dos Transportes (coord. M. Januário da Costa Gomes), vol. III, Coimbra, Almedina, 2015), segundo o qual “o segmento final do artigo 29.º que se refere a ‘falta equivalente ao dolo’ só é de aplicar nas jurisdições em que a noção de dolo não seja conhecida” (págs. 425 a 428), o que não é caso de Portugal. Invoca ainda o abuso de direito da autora.

Na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, a ré apresenta as seguintes conclusões: i. A ré considera que o tribunal a quo não deu como provados factos que resultam efectivamente do julgamento e discussão da causa, com referência a todas as soluções plausíveis de Direito.

ii. Segundo as regras de repartição do ónus da prova, a autora não só não provou que a ré sabia do valor da mercadoria, como a própria ré, que nada lhe competia sobre a prova desta matéria, provou que nada sabia sobre as características, o valor e o estado de conservação da mercadoria transportada, ou seja, fez a prova negativa.

iii. Com referência ao alegado no artigo 55 da contestação, resulta claramente de toda a prova produzida e, designadamente, dos depoimentos das testemunhas TC e DC, que a ré não tinha conhecimento do valor real da mercadoria transportada e do seu estado de conservação.

iv. Assim, deve ser aditado aos factos provados, a seguinte factualidade: “A ré não tinha conhecimento das características das mercadorias que estava a transportar, o valor das mesmas e o respectivo estado de conservação.” v. Esta factualidade é relevante na medida em que a ré conseguiu ir além daquilo que lhe era exigido segundo as regras de repartição de ónus da prova, tendo logrado fazer uma prova negativa, a qual sempre terá de ser tida em...

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