Acórdão nº 19526/19.6T8LSB.L2-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelFREITAS NETO
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (1ª SECÇÃO) I - RELATÓRIO CUTELARIA POLICARPO, LDª demandou em acção sob a forma de processo comum SEGURADORAS UNIDAS, S.A., pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 59.300,40 acrescida de juros de mora vincendos desde a citação até integral pagamento, à taxa supletiva legal.

Alegou para tanto, e em síntese, que em 1917 tomou de arrendamento um determinado espaço (“loja”) integrado num imóvel que a Ré adquiriu em 2003; em 2013 a Ré comunicou-lhe que pretendia a denúncia do contrato de arrendamento com fundamento na realização no locado de obras de demolição e de remodelação profundas tendentes à instalação no mesmo de uma unidade hoteleira; o que era incompatível com a manutenção do referido arrendamento; não tendo sido possível às partes chegar a acordo, a Ré propôs no Balcão Nacional de Arrendamento um procedimento especial de despejo, ao qual se opôs a A.; em sede de audiência e julgamento A. e Ré puseram termo ao litígio por transacção homologada por sentença; a Ré pagou a 1ª e a 2ª prestação da indemnização acordada; a A. entregou o locado em 2015, tendo liquidado a última renda no valor de € 494,17; sucede que a Ré veio a alienar o imóvel sem proceder às obras a que se comprometera; a transacção teve como pressuposto o de que a Ré ia efectivamente implementar as obras de demolição e reconstrução do edifício que implicavam a desocupação do locado; uma vez que não efectuou quaisquer obras, a Ré incumpriu o acordado e está obrigada a pagar à A. uma indemnização correspondente a 10 anos de renda.

Contestou a Ré contrapondo que a A. deduziu oposição ao procedimento especial de despejo porque o contrato era de duração indeterminada e, como tal, insusceptível de denúncia; mediante a transacção as partes acordaram simplesmente em pôr termo ao contrato mediante o pagamento de uma indemnização à A.; a transacção não ficou sujeita a qualquer condição, nomeadamente a relativa à continuação pela Ré do projecto que se havia proposto, visando apenas alcançar um acordo global com a A..

Para o caso de a acção ser julgada procedente, deduziu a Ré reconvenção, pedindo que lhe fosse reconhecido um crédito sobre a Autora no valor de € € 44.069,96, operando-se a competente compensação sobre o crédito que, eventualmente, a esta venha a ser reconhecido; e, bem assim, a condenação da Autora como litigante de má-fé no pagamento de multa e indemnização não inferior a € 10.000,00.

Em 14.04.2020, após dispensa de audiência prévia, declarando-se o Sr. Juiz habilitado a conhecer imediatamente do mérito da causa, proferiu-se saneador-sentença no qual se julgou a acção não provada e improcedente, condenando-se ainda a A. como litigante de má-fé.

Porém, interposto recurso desta decisão, viria a Relação a revogá-la por acórdão 19.11.2020, sendo aí ordenado o “prosseguimento dos ulteriores termos processuais, retomando a fase do saneamento do processo, com a elaboração do despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova”.

Após julgamento, foi em 06.06.2021 proferida sentença final na qual se julgou a acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência, se absolveu a Ré de tudo o peticionado e se julgou prejudicada a reconvenção deduzida pela Ré.

Para tanto, a sentença aduziu essencialmente a seguinte fundamentação: “(…) Em primeiro lugar – embora sistematicamente apareça em segundo lugar -sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida - n.º 2 do art.º 236º do CC -, sendo que por vontade real deve entender-se o significado que as partes pretenderam atribuir ás suas declarações.

Ou seja, o sentido querido realmente pelo declarante releva, mesmo quando a formulação seja ambígua ou inexacta, se o declaratário conhecer este sentido; a ambiguidade objectiva ou até a inexactidão da expressão externa não impedem a relevância da vontade real, se o destinatário a conheceu (Mota Pinto in ob. cit., pág. 449).

Se num contrato, o destinatário da proposta a aceita, conhecendo a vontade real do proponente, entende-se que está a aceitar o sentido real correspondente a essa vontade real, de acordo com o qual “vale a declaração emitida”, único sentido no qual podia legitimamente confiar (se não queria aceitar, deveria ter-se esclarecido junto do declarante).

No que aos autos respeita, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que a alegação da A. de que a transação foi alcançada (…) no pressuposto que a aqui Ré ia efectivamente implementar as obras de demolição e reconstrução do edifício dos autos, que obrigavam à desocupação do locado e a alegação de que foi apenas nesse pressuposto que a A. ali aceitou transacionar nos temos em que o fez, traduzia a alegação da vontade real dos declarantes na referida «transacção», comum a ambos e que tem um mínimo de correspondência com a letra.

Produzida a prova, não só a referida factualidade resultou não provada – pontos 3.3.1. e 3.3.2. – como, além disso ficou provado que a vontade real da Ré era outra e bem oposta, como resulta do ponto 3.2.7. – a Ré jamais celebraria a Transação referida em 3.1.17. e concretamente jamais pagaria a indemnização ali referida, se tivesse de continuar vinculada às obrigações que resultavam das regras legais relativas á denúncia dos contratos de arrendamento para execução de obras de remodelação profunda, ou seja, para a Ré a transacção não traduz a denúncia do contrato, mas sim a sua revogação.

E não existem quaisquer outros elementos que permitam afirmar que a vontade real das partes – de ambas as partes – foi a de denunciar o contrato de arrendamento para a realização, pela Ré, de obras de demolição e reconstrução do edifício dos autos.

Não foi invocado que subjacente á transação estava a vontade real das partes em resolver a controvérsia quanto à questão da validade e eficácia da denúncia (fosse em que sentido fosse).

Não foi invocado que a vontade real da aqui A., subjacente à transação, era a aceitação da denúncia do contrato de arrendamento e que a aqui Ré conhecia essa vontade.

Em segundo lugar, se a vontade real do declarante, não for conhecida do declaratário, a declaração valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) - artº 236, nº1 do mesmo Código.

Em homenagem aos interesses do declaratário (protecção da confiança ) e do comércio jurídico e partindo da ideia, manifestamente razoável, de imposição ao declarante de um ónus de clareza na manifestação do seu pensamento, concede-se, pelo menos em tese geral, primazia ao ponto de vista do destinatário, a partir do qual a declaração deve ser focada.

A declaração deve ser analisada do ponto de vista do receptor.

De acordo com a lei, a interpretação não visa determinar a vontade do declarante ou um sentido que este tenha querido declarar, estando antes em causa o sentido objectivo que se pode depreender do seu comportamento.

A lei não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratário) – cfr. Ac. do STJ de 28.10.97, BMJ 470, 597.

A lei concede primazia a um declaratário normal colocado na posição real do declaratário. Há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-o na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este concretamente conheceu e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.

A declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria; considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável -V. Mota Pinto, ob. e loc. cit.,pág. 448.

(…) a transacção foi celebrada em sede de processo judicial, pelo que há que atender ao que dispõe o art.º 290º do CPC e que é: n.º 1 - a transação pode fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo; n.º 4 – a transação pode também fazer-se em ata, quando resulte de conciliação obtida pelo juiz; em tal caso, limita-se este a homologá-la por sentença ditada para a ata, condenando nos respetivos termos. Daqui decorre que a transacção é um negócio formal, pelo que tem plena aplicação o disposto no art.º 238º n.º 1 do CC: nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

No entanto e nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, esse sentido (correspondente à impressão do destinatário e sem correspondência no texto do documento) pode valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem. (…)” Em face de tudo o exposto, não havendo quaisquer elementos que permitam afirmar que a vontade real das partes foi a denunciar o contrato de arrendamento para a realização de obras de demolição e remodelação do prédio dos autos, deve interpretar-se...

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