Acórdão nº 535/22 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Agosto de 2022

Magistrado ResponsávelCons. José Eduardo Figueiredo Dias
Data da Resolução04 de Agosto de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 535/2022

Processo nº 774/2022

Plenário

Relator: Conselheiro José Eduardo Figueiredo Dias

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira (doravante, RAM) requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) e dos artigos 57.º e seguintes da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), a fiscalização preventiva, e a consequente pronúncia pela inconstitucionalidade, de todas as normas constantes do Decreto que lhe foi enviado para assinatura como decreto legislativo regional intitulado «Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei n.º 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público», aprovado em sessão plenária da Assembleia Legislativa da RAM (doravante, ALRAM) no dia 15 de junho de 2022 e recebido, no seu Gabinete, no dia 8 de julho de 2022.

2. Parâmetros da constitucionalidade invocados

O requerente alega que as normas objeto do pedido violam os artigos 165.º, n.º 1, alínea q), 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), 228.º, n.º 1, e 237.º, n.º 1, da CRP, em virtude da ausência de competência legislativa do legislador regional, sendo, por isso, organicamente inconstitucionais, por invadirem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

3. Fundamento do pedido

Os fundamentos apresentados no pedido para sustentarem a inconstitucionalidade das normas impugnadas são os seguintes (sem assinalar os itálicos e os destacados):

«(…)

I

Enquadramento

1. Através do decreto intitulado “Adaptação à Região Autónoma da Madeira do Decreto-Lei n.º 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público”, pretende a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira que, na Região, os “órgãos municipais territorialmente competentes” passem a ser detentores de competência para, nos termos do respetivo artigo 2.º, n.º 1:

“a) A regulação e fiscalização do estacionamento nas vias e espaços públicos, dentro das localidades, para além dos destinados a parques ou zonas de estacionamento, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal;

b) A instrução e decisão de procedimentos contraordenacionais rodoviários por infrações leves relativas a estacionamento proibido, indevido ou abusivo nos parques ou zonas de estacionamento, vias e nos demais espaços públicos quer dentro das localidades, quer fora das localidades, neste caso desde que estejam sob jurisdição municipal, incluindo a aplicação de coimas e custas.”

O n.º 2 do referido artigo 2.º acrescenta ainda que “O disposto no número anterior não obsta a que empresas concessionárias de estacionamento sujeito ao pagamento de taxa em vias sob jurisdição municipal possam exercer a atividade de fiscalização do estacionamento nas zonas que lhe estão concessionadas, nos termos do Decreto-Lei n.º 146/2014, de 9 de outubro.”

2. O Decreto-Lei n.º 107/2018, de 29 de novembro, que o legislador regional pretende agora adaptar, “concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público”. O artigo 2.º deste Decreto-Lei é de conteúdo idêntico ao do citado artigo 2.º do decreto regional ora sob apreciação (o mesmo sucedendo com grande parte das suas restantes normas, face ao Decreto-Lei cuja adaptação se pretende).

3. O Decreto-Lei n.º 107/2018, de 29 de novembro, surgiu na sequência da Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto, intitulada “Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais” (doravante, também simplesmente referida como “Lei-quadro”).

4. Nos termos do seu artigo 1.º, a Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto, “estabelece o quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, concretizando os princípios da subsidiariedade, da descentralização administrativa e da autonomia do poder local”.

5. Muito embora o artigo 3.º da Lei-quadro estabeleça que “[a] transferência das novas competências tem caráter universal”, o artigo 9.º, n.º 1, determinou que “[o] disposto na presente lei não abrange as atribuições e competências das regiões autónomas.”

6. Assim, segundo o n.º 2 do mesmo artigo 9.º da Lei-quadro, “[a] transferência de atribuições e competências para as autarquias locais nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira é regulada por diploma próprio, mediante iniciativa legislativa das respetivas assembleias legislativas, nos termos da alínea q) do n.º 1 do artigo 165.º, do n.º 1 do artigo 167.º e da alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição, tendo em conta os princípios da autonomia regional e da especificidade da relação entre os órgãos dos governos regionais e as autarquias locais”.

7. É justamente o disposto neste artigo 9.º da Lei-quadro que revela a questão de constitucionalidade relativamente ao decreto objeto do presente requerimento: pois se a lei ao abrigo da qual foi emitido o Decreto-Lei que a Região Autónoma da Madeira pretende adaptar não vigorar para as regiões autónomas, tendo em conta que a matéria em causa — atribuições e competências das autarquias locais — pertence à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, al. q), da Constituição da República Portuguesa, doravante “CRP”), o decreto de adaptação pode ofender os limites da competência legislativa regional emergentes do disposto nos artigos 227.º e 228.º, n.º 1, da Lei Fundamental.

8. No caso do decreto em apreço, está apenas em causa o âmbito material do estacionamento público (permita-se-nos dizer assim de forma simplificada). Até ao momento, aliás, não foi enviado ao Representante da República para assinatura qualquer outro diploma regional sobre transferência de competências para as autarquias locais na Região Autónoma da Madeira.

9. Porém, atentando no elenco legislativo nacional, é possível, senão provável, que outros se lhe sigam.

10. Como é sabido, o artigo 4.º, n.º 1, da Lei-quadro estabelece que “[a] transferência das novas competências, a identificação da respetiva natureza e a forma de afetação dos respetivos recursos são concretizadas através de diplomas legais de âmbito setorial relativos às diversas áreas a descentralizar da administração direta e indireta do Estado, os quais estabelecem disposições transitórias adequadas à gestão do procedimento de transferência em causa.”

11. Ao abrigo desta última norma, o Governo da República emitiu já um considerável acervo de decretos-leis de concretização da descentralização, a saber:

a. O Decreto-Lei n.º 97/2018, de 27 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio das praias marítimas, fluviais e terrestres.

b. O Decreto-Lei n.º 98/2018, de 27 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da autorização de exploração das modalidades afins e de jogos de fortuna e azar.

c. O Decreto-Lei n.º 99/2018, de 28 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos das entidades intermunicipais no domínio da promoção turística interna sub-regional.

d. O Decreto-Lei n.º 100/2018, de 28 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio das vias de comunicação.

e. O Decreto-Lei n.º 101/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais e das entidades intermunicipais no domínio da justiça.

f. O Decreto-Lei n.º 102/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos das entidades intermunicipais no domínio dos projetos financiados por fundos europeus e programas de captação de investimento.

g. O Decreto-Lei n.º 103/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do apoio às equipas de intervenção permanente das associações de bombeiros.

h. O Decreto-Lei n.º 104/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da instalação e gestão de Lojas de Cidadão e de Espaços Cidadão, Gabinetes de Apoio aos Emigrantes e Centros Locais de Apoio e Integração de Migrantes, bem como para os órgãos das freguesias no domínio de Espaços Cidadão.

i. O Decreto-Lei n.º 105/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da habitação.

j. O Decreto-Lei n.º 106/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da gestão do património imobiliário público sem utilização.

k. O Decreto-Lei n.º 107/2018, de 29 de novembro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio do estacionamento público (que é o diploma que o decreto em apreço visa adaptar à Região Autónoma da Madeira).

l. O Decreto-Lei n.º 32/2019, de 4 de março, que alarga as competências dos órgãos municipais no domínio do policiamento de proximidade.

m. O Decreto-Lei n.º 20/2019, de 30 de janeiro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio de proteção e saúde animal e de segurança dos alimentos.

n. O Decreto-Lei n.º 21/2019, de 30 de janeiro, que concretiza o quadro de transferência de competências para os órgãos municipais e para as entidades intermunicipais no domínio da educação.

o. O Decreto-Lei n.º 22/2019, de 30 de janeiro, que concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da...

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