Acórdão nº 528/22 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Assunção Raimundo
Data da Resolução27 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 528/2022

Processo n.º 670/22

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é reclamante A e reclamado o Ministério Público, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante «LTC»), da decisão daquele Tribunal, de 4 de maio de 2022, que negou provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo a decisão que, procedendo ao reexame dos pressupostos da medida de coação de prisão preventiva, determinou que continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à mesma medida de coação, por indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes.

2. Pela decisão sumária n.º 448/2022, proferida ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, decidiu-se não conhecer do mérito do recurso, atenta a falta de coincidência entre o enunciado normativo e a ratio decidendi da decisão recorrida e de delimitação de uma questão, com caráter normativo. Nela se convocou a seguinte fundamentação (cf. fls. 109-115):

«[…]

4. Conforme relatado, o recorrente delimita a presente pretensão de constitucionalidade por referência às alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Todavia, a mencionada alínea c) reporta-se a decisões «que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado». Ora, não resulta dos autos que o tribunal a quo tenha procedido a qualquer recusa de aplicação de norma, muito menos de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado. Na verdade, isso mesmo reconhece o recorrente, ao afirmar que «pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a ilegalidade do artº 213 nº 3 do Código Processo Penal na interpretação dada pelo douto Juiz de in[s]trução» (fls. 101). Para além isso, afigura-se contraditório considerar que o tribunal recorrido aplicou e recusou a aplicação do mesmo preceito, no mesmo sentido. Isto dito, cumpre apenas analisar a pretensão do recorrente à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.

Ainda a título preliminar, importa recordar que o recorrente indica como objeto do presente recurso de fiscalização concreta o artigo 213.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, relativo ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação. A este propósito, constata-se desde já que, no requerimento de interposição de recurso apresentado perante este Tribunal Constitucional, o recorrente não logra delimitar um verdadeiro enunciado normativo assente no referido preceito legal. De facto, não chega a esclarecer o sentido normativo que entende ter sido aplicado pelo tribunal recorrido, insurgindo-se reiteradamente contra a circunstância de não ter sido «ouvido previamente pelo Juiz de Instrução» e de a disposição em causa «conferir tal poder discricionário ao Juiz de Instrução» (fls. 101).

Deste modo, dir-se-ia que os requisitos formais do requerimento de interposição de recurso previstos no n.º 2 do artigo 75.º-A da LTC não se encontram cumpridos. Em regra, entendem-se estes requisitos de natureza formal supríveis através do convite ao aperfeiçoamento previsto no n.º 6 da mencionada norma legal. Neste caso concreto, porém, não será de endereçar tal convite, por se constatar também a ausência de outros pressupostos essenciais ao conhecimento do mérito do recurso – pressupostos esses insupríveis e cuja falta acarreta, irremediavelmente, a impossibilidade de conhecer o objeto do recurso de constitucionalidade. O convite ao aperfeiçoamento seria, por isso, neste caso, inútil e, como tal, é vedado por lei (artigo 130.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 69.º da LTC).

5. Como resulta de entendimento jurisprudencial constante, os recursos deduzidos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, estão condicionados à efetiva aplicação pelo tribunal a quo da norma (ou interpretação normativa) cuja constitucionalidade é suscitada. Exige-se, por força do carácter instrumental do recurso de constitucionalidade, que a norma sindicada constitua a ratio decidendi da decisão recorrida. Nessa medida, só haverá um verdadeiro interesse processual no conhecimento da questão de constitucionalidade – que constitui o objeto (material) desse recurso – se essa norma (ou interpretação) constituir o critério da decisão recorrida.

Neste sentido, sintetiza o Acórdão n.º 169/92 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):

«Entre nós, os tribunais comuns (expressão que se usa, aqui, para designar todos os outros tribunais com exceção do Tribunal Constitucional), têm acesso direto à Constituição. Dispõem, por isso, de competência para, eles próprios, apreciarem e decidirem as questões de constitucionalidade que se suscitem nas causas que têm que julgar.

Tal competência, própria de um sistema de judicial review, é, no entanto, uma competência "vinculada", no sentido de que os tribunais comuns só podem decidir as questões de constitucionalidade, que tenham por objeto as normas jurídicas que forem aplicáveis ao caso concreto submetido a julgamento, recusando aplicação às que tiverem por inconstitucionais.

Por isso, se determinada norma jurídica não for aplicável ao caso submetido a julgamento (isto é: se a decisão do caso sub iudicio não convocar a sua aplicação), o tribunal da causa não deve pronunciar-se sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade dessa norma. Se o fizer, profere ele uma decisão sem interesse para o julgamento da causa. E mais: nessa hipótese, se o julgamento proferido for no sentido da inconstitucionalidade, não há desaplicação dessa norma, justamente porque ela não era aplicável ao caso; e, por este mesmo motivo, se julgar tal norma não inconstitucional, também não existe aplicação dela.

Vale isto por dizer que, em tal hipótese, não se abre a via do recurso de constitucionalidade - recurso que se interpõe das decisões dos outros tribunais para o Tribunal Constitucional, que é a quem cabe a última e definitiva palavra na matéria.

Só quando a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT