Acórdão nº 507/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 507/2022

Processo n.º 1063-A/2020

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Competência Genérica de Soure, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do artigo 153.º do Código Civil («CC») e do artigo 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil («CPC»).

2. O Ministério Público propôs ação especial de acompanhamento, relativamente ao ora recorrido, requerendo a aplicação das seguintes medidas de acompanhamento: (i) representação geral; e (ii) limitação dos direitos pessoais de casar ou de constituir situações de união de facto, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de se deslocar no país ou no estrangeiros, de fixar domicílio e residência e de testar.

Na sequência da apreciação liminar do aludido requerimento, o Juiz a quo ordenou a citação pessoal do beneficiário nos termos previstos nos artigos 895.º e 231.º do Código de Processo Civil, mas não determinou a publicidade da «decisão», por ter julgado inconstitucionais as normas contidas nos artigos 153.º do Código Civil e 893.º, n.º 1, do CPC, recusando a respetiva aplicação ao caso sub judice.

3. Na parte que aqui releva, consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:

«2.

PUBLICIDADE

[artigo 153.º do Código Civil e artigo 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil]

Não se determina qualquer necessidade de publicidade da decisão, porquanto a previsão de publicidade viola o direito fundamental a beneficiário à sua autodeterminação informacional. Direito este tutelado pela dignidade da pessoa humana e pelo direito ao livre desenvolvimento da personalidade e reserva da vida privada (artigos 1.º, 26.º, n.º 1 da Constituição). Este último igualmente tutelado no artigo 8.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Este direito confere a faculdade à pessoa para determinar autonomamente a revelação e uso de informação pessoal. Isto é, ao indivíduo é reconhecido o poder de decidir por si próprio sobre a divulgação e utilização dos seus dados pessoais. Aqui se inclui a proteção da informação pessoal respeitante à condição pessoal e médica, bem como as circunstâncias pessoais que justificam a instauração de uma ação especial de acompanhamento de maior. A tutela da autodeterminação informacional encontra-se na dimensão central de proteção constitucional e jurídica da individualidade humana. Em particular, quando a esta tutela acresce a proibição de não discriminação (artigo 13.º, n.º 1 da constituição e artigo 5.º da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência), isto é, a justificação para divulgar a pendência da ação tem que se ancorar em interesses individuais próprios ou supra-individuais e não na mera condição de deficiência como pressuposto para a insaturação da ação de maior acompanhado.

Não obstante os artigos 153.º, n.º 1, do Código Civil e 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil conferirem ao Tribunal competência para concretizar a proporcionalidade da publicidade, quer quanto à necessidade, quer quanto à adequação dos meios a utilizar, a verdade é que a mudança de paradigma imposta pela Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas com deficiência, que Portugal ratificou, altera o fim da medida de salvaguarda de interesses da pessoa maior.

Ora, prever a mera faculdade de publicidade, mesmo que sujeita a controlo judicial, resulta num enfraquecimento do direito objetivo meramente em função da condição de deficiência e não da necessidade per se de tutela dos interesses do beneficiário. O direito à autodeterminação informacional não é somente violado quando o Estado exige que a pessoa revele dados pessoais ou os transfira para o tratamento automatizado de dados. Também é violado quando a revelação de dados pessoais (mesmo que somente o nome e a identificação da pendência de uma ação de maior acompanhado) é feita em prol de critérios não legalmente definidos e destinados a serem transmitidos a um grupo indefinido e incontrolável de destinatários, no interesse dos destinatários, e não do próprio sem previsão de restrições de utilização ou salvaguardas processuais adicionais. Há, desta feita, a violação do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição. Os requisitos de lei formal não podem, desta forma, ser menorizados, são os instrumentos de garantia a favor do titular dos direitos fundamentais restringidos e justificadores de uma intervenção lícita do Estado, enquanto inexigibilidade de demandar o cumprimento da obrigação negativa que sobre este recai. Assim, vale a tríplice exigência de previsão de lei formal (princípio da legalidade), subsidiariedade e proporcionalidade da medida de tratamento compulsivo (cf. JOÃO LOUREIRO. — Sida e discriminação social – escola, habitação, imigração, rastreio obrigatório, isolamento clínico, tratamento forçado. In Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde. 3 (2005)).

Tendo em conta os princípios constitucionais (em especial o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), a ausência de uma norma clara e expressa não permite extrapolar o sentido normativo além do que compõe o seu sentido literal, em particular suprir as insuficiências do legislador na consagração de uma norma restritiva dos direitos fundamentais do cidadão. Estamos a falar de um domínio em que se confere ao Tribunal o poder-dever de apreciar a adequação e necessidade de publicidade, sem previsão de pressupostos e critérios especiais de decisão, bem como se apresentando aquela publicidade enquanto medida a adotar automaticamente e não como possibilidade residual a ponderar a partir das circunstâncias do caso. A publicidade, tal como prevista no artigo 153.º, do Código Civil e artigo 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, apresenta-se como hipótese normativa a considerar obrigatoriamente e não como mera exceção circunscrita e exigida a partir do caso. Se dermos espaço de aplicação a esta disposição, mesmo que sujeita a reserva de jurisdição, cometemos o risco de admitir a coisificação do beneficiário, uma vez que este se torna «objeto» da decisão de outrem sobre a sua esfera de interesses, dispondo-se sobre o seu corpo, saúde e liberdade para prossecução de interesses alheios, mesmo que de acordo com o seu melhor interesse objetivo. Tanto mais que a possibilidade de publicidade é reconhecida antes mesmo de o beneficiário ter sido citado e de se poder pronunciar sobre a adequação e necessidade da mesma.

A imposição de publicidade viola o direito de autodeterminação informacional do beneficiário quanto à informação que pretende ou não revelar e usar. A mera publicitação traz apenas a notícia da situação de saúde e pessoal, sem qualquer garantia de assegurar os fins da medida de acompanhamento, nem mesmo nos casos em que seja decretada a incapacidade jurídica de agir (artigo 145.º, n.º 2, alínea d) do Código Civil) e jurídica de gozo (artigo 147.º, n.º 1 in fine do Código Civil).

A informação que é prestada, mesmo que circunscrita à existência de um processo atinge inexoravelmente o núcleo essencial o direito à autodeterminação informacional ao colocar a público informações que dizem respeito à pessoa como um todo e não apenas a uma sua esfera de atuação.

Assim como a publicidade, ao atingir um número indeterminado de pessoas, replica um efeito danoso e discriminatório do beneficiário apenas para tutela de interesses supra-individuais, conducentes a proteger quem estabeleça contacto com o beneficiário, e que são alheios aos interesses deste, pelo menos mediatamente, sem que se assegure uma equivalência entre o meio de publicidade e o fim de tutela do beneficiário. O juízo de perigosidade que a publicidade encerra a respeito do beneficiário repercute-se numa tutela preventiva e de quarentena daquele para fins exclusivos do comércio jurídico, não sendo eficaz para a tutela do beneficiário, mesmo que seja para publicitar uma incapacidade, porquanto a garantia da não realização de atos danosos ao património daquela passa pelo exercício dos poderes-deveres do acompanhante e atuação preventiva.

A previsão de publicidade de uma ação, como a de maior acompanhado, viola o princípio da proporcionalidade. Não existem razões de interesse público que justifiquem a limitação à autodeterminação informacional, como os meios, quer por divulgação por recurso a meios de comunicação social, editais ou sítio oficial, apenas permitem e promovem a devassa dos dados pessoais do beneficiário, sem que seja alcançado uma finalidade de salvaguarda dos seus interesses e que tenderão apenas a ser determinados após feita a inventariação das suas necessidades e definida em concreto a medida do objeto de acompanhamento (artigo 145.º, do Código Civil).

Tanto mais que no estudo legislativo que antecedeu a proposta e aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14-08, se manifestam preocupações com o potencial carácter «vexatório para o visado e para os próximos», sem concretizar quis os interesses que visa tutelar com a publicidade e que, se infere, sejam somente do comércio jurídico e não propriamente do próprio beneficiário (cf. Da situação jurídica do maior acompanhado. Estudo de política legislativa relativo a um nome regime das denominadas incapacidades dos maiores. p. 127 e p. 147, disponível no sítio www.smmp.pt). Em particular face às consequências que atribui para os atos praticados pelo beneficiário, previstas no artigo 154.º, do Código Civil.

Aliás, a possibilidade de publicidade em confronto com o carácter reservado do processo (artigo 164.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil) não se coaduna...

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