Acórdão nº 521/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 521/2022

Processo n.º 555/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente o Município de Sines e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 4 de janeiro (Lei do Tribunal Constitucional [LTC]).

2. Através da Decisão Sumária n.º 378/2022, decidiu-se, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso, com a seguinte fundamentação:

«5. O recorrente define como objeto do recurso a norma contraordenacional extraída dos números 1 e 3 do artigo 3.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 2 de março (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de junho); do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (na redação conferida pelas Leis n.º 89/2009, de 31 de agosto, e n.º 114/2015, de 28 de agosto); e do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas «no sentido de abranger as autarquias locais quando estas se encontram vestidas de poderes de autoridade».

Ora, nos termos do disposto no artigo 79.º-C da LTC, não pode tomar-se conhecimento do objeto do recurso, por não ter o tribunal a quo aplicado, enquanto ratio decidendi, a norma enunciada pelo recorrente. Não existe correspondência entre a norma que o recorrente quer ver sindicada e aquela que foi efetivamente aplicada na decisão recorrida, a implicar que — atenta a instrumentalidade dos recursos de constitucionalidade — o acórdão ora impugnado sempre se mantivesse intocado ainda que fosse julgada a inconstitucionalidade da norma objeto do recurso.

Vejamos.

A norma que o recorrente pretende ver apreciada é a norma contraordenacional desvelada dos preceitos legais indicados (por violação do dever de gestão de RDC) «no sentido de abranger as autarquias locais quando estas se encontram vestidas de poderes de autoridade». De acordo com o requerimento de interposição de recurso — e, de resto, tal como foi suscitada a questão de constitucionalidade junto do tribunal a quo – pretende-se o julgamento da inconstitucionalidade da regra segundo a qual as autarquias, quando «se encontram vestidas de poderes de autoridade», estão sujeitas àquele tipo contraordenacional.

Sucede que a decisão recorrida em momento algum aplicou norma segundo a qual as autarquias respondem por aquela contraordenação quando «se encontram vestidas de poderes de autoridade». Ao invés, e como resulta da fundamentação do acórdão ora impugnado, mobilizou-se norma segundo a qual as autarquias são abrangidas por aquele tipo contraordenacional independentemente de estarem ou não no exercício de poderes de autoridade. Tal é especialmente claro quando se considera existir «um imperativo ético, coisa mal percebida na sociedade portuguesa, que impõe que o Estado e outras entidades públicas respondam igualmente pelas condutas violadoras de normas que elas próprias impõem» e quando se conclui que «tais entidades não têm — nem devem ter — licença para delinquir através dos seus agentes, o que seria uma forma de consagrar uma medieval burocracia distinta, com diverso enquadramento do comum cidadão, a melhor forma de corroer o contrato social que constitui a base filosófica de uma sociedade e de um Estado de Direito» (fls. 422).

Com efeito, a circunstância de estar a autarquia ou não «vestida de poderes de autoridade» — que seria decisiva caso a norma efetivamente aplicada fosse aquela que o recorrente invoca — não constituiu pressuposto lógico da decisão: a interpretação normativa que o tribunal mobilizou foi a regra segundo a qual «o Estado (em qualquer sentido) e qualquer outra entidade pública respondem pelos ilícitos contra-ordenacionais praticados pelos seus órgãos no exercício das suas funções na medida em que inexiste norma que lhes atribua impunidade neste tipo de ilícito» (fls 421), sem ter o tribunal a quo ponderado ou sequer se indagado se essas funções se enquadrariam ou não no exercício de poderes de autoridade.

Sempre se dirá, de resto, que nos presentes autos, não estava o município «vestido de poderes de autoridade». A imputação da contraordenação ocorreu por ser proprietário do prédio (domínio privado da autarquia) em que foram encontrados RDC — como o próprio recorrente reconhece (fls. 191, artigo 5.º da resposta à acusação) — e não por se encontrar no exercício de quaisquer poderes públicos. Nessa medida, um eventual julgamento de inconstitucionalidade da norma segundo a qual a contraordenação abrange «as autarquias locais quando estas se encontram vestidas de poderes de autoridade» sempre se revelaria inútil, já que não geraria a modificação da decisão impugnada (n.º 2 do artigo 80.º da LTC).».

3. Inconformado com tal decisão, o recorrente reclamou para a Conferência, nos seguintes termos:

« Ao contrário do entendimento perfilhado na douta decisão reclamada, o tribunal da Relação de Évora, ao revogar a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Criminal de Santiago do Cacém - Juiz 2, aplicou as normas cuja a inconstitucionalidade vem invocada, o que fez da seguinte forma: - Cfr. Acórdão do TRE proferido nos autos.

(...)

“São muitas as normas que serão, eventualmente, aplicáveis ao caso dos autos. Convém expô-las sucintamente para sistematizarmos a aplicação do direito aos factos e saber que direito é aplicável, de onde resulta naturalmente o saber o óbvio, a natureza da sanção a impor, como passo inicial essencial.

A previsão legal da conduta e a previsão da sanção aplicável ao caso, no entendimento da entidade administrativa (o tribunal recorrido remeteu para a fundamentação da impugnação) assenta nas seguintes normas:

O Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março:

- cujo artigo 18.°, n.° 2 - na sua al a) - classifica esta suposta contra-ordenação ambiental como grave [«a) O incumprimento do dever de assegurar a gestão de RCD, a quem, nos termos do previsto no artigo 3.º, caiba essa responsabilidade, com exceção dos casos previstos no n.º 1»];

- cujo artigo 3.°, ns. 1 e 3 concretizam a responsabilidade [« n.° 1 - A gestão dos RCD é da responsabilidade de todos os intervenientes no seu ciclo de vida, desde o produto original até ao resíduo produzido, na medida da respetiva intervenção no mesmo, nos termos do disposto no presente decreto-lei; 3 - Em caso de impossibilidade de determinação do produtor do resíduo, a responsabilidade pela respetiva gestão recai sobre o seu detentor»].

A punição da conduta consta da Lei n.° 50/2006, de 29 de Agosto, cujo artigo 22.°, n.° 3, al. b) reza sobre o montante das coimas das contra-ordenações graves (ao sabor das alterações legais):

- na redação original da Lei - «b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 25000 a (euro) 34000 em caso de negligência e de (euro) 42000 a (euro) 48000 em caso de dolo.»;

- na redação da Lei n.0 89/2009, de 31 de Agosto - «b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 15 000 a (euro) 30 000 em caso de negligência e de (euro) 30 000 a (euro) 48 000 em caso de dolo.»;

- na redação da Lei 114/2015 - «b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 12 000 a (euro) 72 000 em caso de negligência e de (euro) 36 000 a (euro) 216 000 em caso de dolo.»;

E estamos de acordo quanto à potencial aplicabilidade destas normas, semeadas em vento forte por vários diplomas de forma a facilitar o seu conhecimento pelo cidadão, leitor assíduo e atento do D.R..

(...)

B.2.2 — Relativamente à criação de uma plêiade de entidades isentas de responsabilização criminal temos o artigo 11.º do Código Penal que, no seu n.º 2 estabelece:

2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.°-B, 152.°-A, 152.°-B, 159.° e 160.°, nos artigos 163.° a 166.° sendo a vítima menor, e nos artigos 168.°, 169.°, 171.° a 176°, 203.° a 205.°, 209.° a 211.°, 217.° a 223.°, 225.°, 231.°, 232.°, 240.°, 256.°, 258.°, 262.° a 283.°, 285.°, 299.°, 335.°, 348.°, 353.°, 363.°, 367.°, 368. °-A e 372.° a 376.°, quando cometidos:

a) Em. seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em...

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