Acórdão nº 495/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 495/2022

Processo n.º 351/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente A. e recorrida a Autoridade Tributária e Aduaneira, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 24 de fevereiro de 2022.

2. Pela Decisão Sumária n.º 329/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:

«4. Segundo o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º, da Constituição, e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, «identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso» (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98).

No caso vertente, o recorrente começa por invocar a inconstitucionalidade de três normas, todas extraídas dos artigos 87.º, n.º 1, alínea d) e 89.º-A, ambos da Lei Geral Tributária (LGT), com as seguintes formulações:

i. Norma dos «artigos 87.°, alínea d) e 89.°-A da Lei Geral Tributária ("LGT"), no sentido de que a mera aquisição de imóveis de valor igual ou superior a € 250.000 é suficiente para efeitos de aplicação do instituto das manifestações de fortuna nos termos dos artigos 87.°, alínea d) e 89.°-A da LGT mesmo nos casos em que os contribuintes disponibilizem todos os elementos de prova possíveis e exigíveis (considerando tratar-se de um facto negativo) para demonstrar que não pagaram os preços de aquisição dos imóveis e que, por isso, não existe qualquer ocultação ou omissão de rendimentos tributáveis em IRS que o regime de aplicação daquela presunção de rendimentos visa tributar»,

ii. Norma dos «artigos 87.°, alínea d) e 89.°-A da Lei Geral Tributária ("LGT"), no sentido de que a mera aquisição de imóveis de valor igual ou superior a € 250.000 é suficiente para efeitos de aplicação do instituto das manifestações de fortuna nos termos dos artigos 87.°, alínea d) e 89.°-A da LGT mesmo nos casos em que os contribuintes demonstrem ou resulte indiciado que os preços de aquisição não foram pagos e em que, por conseguinte, não existe qualquer ocultação ou omissão de rendimentos tributáveis em IRS que o regime de aplicação daquela presunção de rendimentos visa tributar» e

iii. Norma dos «artigos 87.°, alínea d) e 89.°-A da Lei Geral Tributária ("LGT"), no sentido de que à AT basta provar a verificação de uma das manifestações de fortuna tipificadas no artigo 89.° A da LGT, mesmo quando se hajam carreado aos autos todos os elementos probatórios possíveis e disponíveis de que os preços de aquisição de imóveis não foram pagos e que, por conseguinte, não existe qualquer riqueza ou rendimento não tributado na origem da manifestação de fortuna».

Não obstante ligeiras variações quanto à formulação e ao ponto de vista adotado, as três «normas» aqui em discussão gravitam em torno de uma única questão, cuja natureza é essencialmente probatória: a de saber se o recorrente fez ou não prova suficiente de que, apesar de ter adquirido por compra certos imóveis de valor superior a 250.000 euros – que constituem manifestações de fortuna, nos termos do artigo 89.º-A, n.º 4, da LGT –, essas compras não são incompatíveis com os rendimentos por si declarados (numa desproporção superior a 30%, para menos, como exige o n.º 1 do mesmo artigo), visto que nunca chegou a pagar os preços dessas aquisições.

O recorrente entende – e procura incorporar esse entendimento nas formulações normativas que enuncia – que fez prova dessa ausência de pagamento de preço ou, ao menos, que ofereceu todos os elementos probatórios que lhe seriam exigíveis para a prova de um tal facto negativo, pelo que a sua não aceitação equivale substancialmente a tornar inilidível uma presunção que o legislador pretendeu fosse ilidível. Já o Tribunal a quo decidiu em sentido inverso, considerando que essa prova não foi efetuada (segundo o Tribunal a quo, o recorrente provou apenas que não pagou com depósitos bancários ou aplicações financeiras, mas não provou que não pagou por outros meios, o que não é de excluir até dadas as assumidas relações de proximidade pessoal entre vendedora e comprador) e que outros meios de prova poderiam ter sido analisados com vista a esclarecer a questão.

Por outras palavras, em causa está a divergência sobre os resultados de uma determinada atividade probatória, ou seja, e na perspetiva do recorrente, na imputada violação, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, das regras de direito probatório, consubstanciadas numa eventual errada apreciação da prova. Tal forma de colocar a questão demonstra que aquilo que o recorrente pretende é sindicar a própria decisão judicial em causa, imputando-lhe – e não a qualquer norma legal pela mesma aplicada – a violação dos parâmetros constitucionais que identifica.

Na verdade, as formulações apresentadas pelo recorrente não constituem verdadeiras normas, no sentido funcionalmente adequado em que podem ser objeto de recurso de constitucionalidade, escondendo antes a pretensão de sindicância da actividade e dos juízos probatórios efectuados pelo Tribunal a quo, matéria absolutamente excluída dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas. Veja-se que a invocada inconstitucionalidade depende de nelas serem incluídos certos juízos, como o de que os contribuintes disponibilizaram todos os elementos de prova possíveis, exigíveis, disponíveis ou que demonstraram o contrário, quando a sua justeza ou veracidade supõe já determinadas valorações probatórias concretas. Ora, não se pode enunciar uma norma onde surja como pressuposto que foram oferecidas todas as provas necessárias ou exigíveis para demonstrar o facto controvertido e pretender que ela foi aplicada ao caso, como ratio decidendi, sem inspecionar as provas concretamente oferecidas e aferir o processo da sua valoração. Dizer-se que o Tribunal a quo adoptou tais normas como critério decisório implica a adesão às concretas valorações probatórias pelas quais o recorrente pugna, mas que o Tribunal a quo expressamente rejeitou. O Tribunal Constitucional não pode tomar posição nessa matéria.

Vale isto por dizer que o objecto do presente recurso carece de natureza normativa, pois que esta supõe que o seu objecto seja a violação da Constituição pela lei, tal como interpretada na decisão recorrida, e não a violação da Constituição pelo Tribunal recorrido, como reclama o recorrente.

5. O recorrente pretende também que seja apreciada a eventual inconstitucionalidade da norma do artigo 89.º-A, n.º 2, alínea a), da LGT, no sentido de que «no contexto da aplicação do mecanismo das manifestações de fortuna; é possível proferir decisão de fixação da matéria coletável em IRS para além do prazo de caducidade do direito à liquidação».

De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que há-de ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).

Tal requisito que não se pode dar como verificado nos presentes autos no que concerne à norma enunciada.

Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que para satisfação do ónus processual contido no n.º 2 do artigo 72.º, da LTC, só releva a suscitação da inconstitucionalidade de determinada norma que tenha sido feita perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Dado que a decisão recorrida é o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, que julgou o recurso interposto da decisão do Tribunal Tributário de Lisboa, não é de relevar, para este efeito, o que o recorrente tenha alegado em momentos prévios do processo, designadamente perante o Tribunal de 1.ª instância.

Em segundo lugar, quer na contra-alegação original, quer na alegação complementar àquela, designadamente na conclusão R desta segunda peça, o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade de nenhuma norma reportada ao artigo 89.º-A, n.º 2, alínea a), da LGT. O que aí invocou foi, por um lado, a ilegalidade da decisão, por violação do artigo 45.º, n.º 1, da LGT, entendendo que o direito a liquidar o tributo em causa já estava caducado relativamente a factos ocorridos em 2015; e, por outro lado, no corpo da alegação, que o artigo 89.º-A, n.º 2, alínea a), da LGT, deveria ser interpretado de modo conforme à Constituição, propondo que lhe fosse dado o sentido de que a AT pode relevar os bens adquiridos no ano em causa ou nos três anos anteriores, desde que conserve ainda o direito a tributar os anos em causa, isto é, desde que não haja já transcorrido o prazo de caducidade do direito a liquidar.

Ora, se a primeira alegação se traduz na imputação da inconstitucionalidade à própria decisão judicial e não a qualquer norma que a mesma tenha aplicado como ratio decidendi – deslocando a inconstitucionalidade da norma para a decisão judicial –, à segunda corresponde uma forma processualmente inadequada de suscitar a inconstitucionalidade.

É certo que o recorrente identifica a forma que considera adequada e constitucionalmente conforme de entender o regime previsto no 89.º-A, n.º 2...

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