Acórdão nº 506/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 506/2022

Processo n.º1062-A /2020

3ª Secção

Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Competência Genérica de Soure, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal, que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do artigo 153.º do Código Civil («CC») e do artigo 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil («CPC»).

2. O Ministério Público propôs ação especial de acompanhamento, relativamente ao ora recorrido, requerendo a aplicação das seguintes medidas de acompanhamento: (i) representação geral, nomeadamente a administração total dos seus bens; (ii) para além dos atos de representação geral, o acompanhante do requerido deverá ser incumbido de intervenção noutros atos, nomeadamente, deverá providenciar pela toma adequada da medicação prescrita, pelo agendamento e acompanhamento médico, pela toma de vacinas e/ou a sua submissão a atos e outros tratamentos médicos que sejam prescritos e/ou sejam considerados imprescindíveis (máxime marcação de consultas, comparência nas mesmas, adesão à terapêutica prescrita/intervenções cirúrgicas) e, bem assim, todas as outras medidas específicas que se venham a apurar necessárias após prova produzida; (iii) o requerido deverá ser acompanhado em todos os atos da vida corrente que lhe disserem respeito e para os quais não tenha discernimento; (iv) o requerido deverá ser impedido de exercer, designadamente, e sem prejuízo de outros que se mostrem necessários e adequados, os seguintes atos de carácter pessoal: fixar domicílio ou residência e deslocar-se para o estrangeiro e testar.

Na sequência da apreciação liminar do aludido requerimento, o Juiz a quo ordenou a citação pessoal do beneficiário nos termos previstos nos artigos 895.º e 231.º do Código de Processo Civil, mas não determinou a publicidade da «decisão», por ter julgado inconstitucionais as normas contidas nos artigos 153.º do Código Civil e 893.º, n.º 1, do CPC, recusando a respetiva aplicação ao caso sub judice.

3. Na parte que aqui releva, consta da decisão recorrida a seguinte fundamentação:

«2.

PUBLICIDADE

[artigo 153.º do Código Civil e artigo 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil]

Não se determina qualquer necessidade de publicidade da decisão, porquanto a previsão de publicidade viola o direito fundamental a beneficiário à sua autodeterminação informacional. Direito este tutelado pela dignidade da pessoa humana e pelo direito ao livre desenvolvimento da personalidade e reserva da vida privada (artigos 1.º, 26.º, n.º 1 da Constituição). Este último igualmente tutelado no artigo 8.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Este direito confere a faculdade à pessoa para determinar autonomamente a revelação e uso de informação pessoal. Isto é, ao indivíduo é reconhecido o poder de decidir por si próprio sobre a divulgação e utilização dos seus dados pessoais. Aqui se inclui a proteção da informação pessoal respeitante à condição pessoal e médica, bem como as circunstâncias pessoais que justificam a instauração de uma ação especial de acompanhamento de maior. A tutela da autodeterminação informacional encontra-se na dimensão central de proteção constitucional e jurídica da individualidade humana. Em particular, quando a esta tutela acresce a proibição de não discriminação (artigo 13.º, n.º 1 da constituição e artigo 5.º da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência), isto é, a justificação para divulgar a pendência da ação tem que se ancorar em interesses individuais próprios ou supra-individuais e não na mera condição de deficiência como pressuposto para a insaturação da ação de maior acompanhado.

Não obstante os artigos 153.º, n.º 1, do Código Civil e 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil conferirem ao Tribunal competência para concretizar a proporcionalidade da publicidade, quer quanto à necessidade, quer quanto à adequação dos meios a utilizar, a verdade é que a mudança de paradigma imposta pela Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas com deficiência, que Portugal ratificou, altera o fim da medida de salvaguarda de interesses da pessoa maior.

Ora, prever a mera faculdade de publicidade, mesmo que sujeita a controlo judicial, resulta num enfraquecimento do direito objetivo meramente em função da condição de deficiência e não da necessidade per se de tutela dos interesses do beneficiário. O direito à autodeterminação informacional não é somente violado quando o Estado exige que a pessoa revele dados pessoais ou os transfira para o tratamento automatizado de dados. Também é violado quando a revelação de dados pessoais (mesmo que somente o nome e a identificação da pendência de uma ação de maior acompanhado) é feita em prol de critérios não legalmente definidos e destinados a serem transmitidos a um grupo indefinido e incontrolável de destinatários, no interesse dos destinatários, e não do próprio sem previsão de restrições de utilização ou salvaguardas processuais adicionais. Há, desta feita, a violação do artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição. Os requisitos de lei formal não podem, desta forma, ser menorizados, são os instrumentos de garantia a favor do titular dos direitos fundamentais restringidos e justificadores de uma intervenção lícita do Estado, enquanto inexigibilidade de demandar o cumprimento da obrigação negativa que sobre este recai. Assim, vale a tríplice exigência de previsão de lei formal (princípio da legalidade), subsidiariedade e proporcionalidade da medida de tratamento compulsivo (cf. JOÃO LOUREIRO. — Sida e discriminação social – escola, habitação, imigração, rastreio obrigatório, isolamento clínico, tratamento forçado. In Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde. 3 (2005)).

Tendo em conta os princípios constitucionais (em especial o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), a ausência de uma norma clara e expressa não permite extrapolar o sentido normativo além do que compõe o seu sentido literal, em particular suprir as insuficiências do legislador na consagração de uma norma restritiva dos direitos fundamentais do cidadão. Estamos a falar de um domínio em que se confere ao Tribunal o poder-dever de apreciar a adequação e necessidade de publicidade, sem previsão de pressupostos e critérios especiais de decisão, bem como se apresentando aquela publicidade enquanto medida a adotar automaticamente e não como possibilidade residual a ponderar a partir das circunstâncias do caso. A publicidade, tal como prevista no artigo 153.º, do Código Civil e artigo 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, apresenta-se como hipótese normativa a considerar obrigatoriamente e não como mera exceção circunscrita e exigida a partir do caso. Se dermos espaço de aplicação a esta disposição, mesmo que sujeita a reserva de jurisdição, cometemos o risco de admitir a coisificação do beneficiário, uma vez que este se torna «objeto» da decisão de outrem sobre a sua esfera de interesses, dispondo-se sobre o seu corpo, saúde e liberdade para prossecução de interesses alheios, mesmo que de acordo com o seu melhor interesse objetivo. Tanto mais que a possibilidade de publicidade é reconhecida antes mesmo de o beneficiário ter sido citado e de se poder pronunciar sobre a adequação e necessidade da mesma.

A imposição de publicidade viola o direito de autodeterminação informacional do beneficiário quanto à informação que pretende ou não revelar e usar. A mera publicitação traz apenas a notícia da situação de saúde e pessoal, sem qualquer garantia de assegurar os fins da medida de acompanhamento, nem mesmo nos casos em que seja decretada a incapacidade jurídica de agir (artigo 145.º, n.º 2, alínea d) do Código Civil) e jurídica de gozo (artigo 147.º, n.º 1 in fine do Código Civil).

A informação que é prestada, mesmo que circunscrita à existência de um processo atinge inexoravelmente o núcleo essencial o direito à autodeterminação informacional ao colocar a público informações que dizem respeito à pessoa como um todo e não apenas a uma sua esfera de atuação.

Assim como a publicidade, ao atingir um número indeterminado de pessoas, replica um efeito danoso e discriminatório do beneficiário apenas para tutela de interesses supra-individuais, conducentes a proteger quem estabeleça contacto com o beneficiário, e que são alheios aos interesses deste, pelo menos mediatamente, sem que se assegure uma equivalência entre o meio de publicidade e o fim de tutela do beneficiário. O juízo de perigosidade que a publicidade encerra a respeito do beneficiário repercute-se numa tutela preventiva e de quarentena daquele para fins exclusivos do comércio jurídico, não sendo eficaz para a tutela do beneficiário, mesmo que seja para publicitar uma incapacidade, porquanto a garantia da não realização de atos danosos ao património daquela passa pelo exercício dos poderes-deveres do acompanhante e atuação preventiva.

A previsão de publicidade de uma ação, como a de maior acompanhado, viola o princípio da proporcionalidade. Não existem razões de interesse público que justifiquem a limitação à autodeterminação informacional, como os meios, quer por divulgação por recurso a meios de comunicação social, editais ou sítio oficial, apenas permitem e promovem a devassa dos dados pessoais do beneficiário, sem que seja alcançado uma finalidade de salvaguarda dos seus interesses e que tenderão apenas a ser determinados após feita a inventariação das suas necessidades e definida em concreto a medida do objeto de acompanhamento (artigo 145.º, do Código Civil).

Tanto mais que no estudo legislativo que antecedeu a proposta e aprovação...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT