Acórdão nº 496/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 496/2022

Processo n.º 435/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorridos o Banco B., S.A. e outros, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal, de 11 de janeiro de 2021.

2. Pela Decisão Sumária n.º 371/2022 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:

«4. Como resulta do relatório que antecede, nos presentes autos foram proferidos dois arestos pelo Tribunal da Relação de Coimbra. Um datado de 11 de janeiro de 2022, pelo qual se julgou o recurso interposto pela insolvente da decisão final do incidente de exoneração do passivo restante; um segundo, proferido em 17 de março de 2022, que apreciou a nulidade assacada ao anterior, desatendendo-a.

No requerimento de interposição de recurso a recorrente não é clara sobre qual o acórdão de que pretende recorrer, referindo ambos. Porém, afigura-se que, em face das normas cuja constitucionalidade pretende controverter, apenas o acórdão de 11 de janeiro de 2022 pode estar em causa como decisão recorrida. Com efeito, constitui requisito do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente. Tal não se verifica no que concerne ao acórdão que apreciou a nulidade assacada ao acórdão que julgou o mérito do recurso, onde apenas foram aplicadas normas que tipificam os vícios dos atos decisórios invocados, nomeadamente dos artigos 614.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) e n.º 4, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 666.º do mesmo diploma. A decisão recorrida é, pois, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11 de janeiro de 2022.

5. São três as normas cuja constitucionalidade a recorrente pretende controverter:

i. O artigo 241.º n.º 1, do CIRE, quando interpretado no sentido de «o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los, e afeta os montantes recebidos, apenas no final do prazo de cinco anos em que dure a cessão, estando desobrigado da elaboração de relatórios e interpelações anuais»;

ii. O artigo 241.º n.º 1, do CIRE, quando interpretado no sentido de «o fiduciário fica desonerado de elaborar relatórios anuais durante os cinco anos em que dure a cessão, podendo unicamente apresentar um relatório único a englobar todo o período em causa, e sem que ao Tribunal, ao Ministério Público e aos credores caiba qualquer dever de vigilância ou controlo do cumprimento de tal dever»

iii. O artigo 244.º n.º 2, do CIRE, quando interpretado no sentido de que «é de recusar a exoneração do passivo restante à insolvente que no final de cada um dos cinco anos de duração da cessão nunca foi contatada pelo Administrador de Insolvência nem em relação à qual foram elaborados relatórios anuais, e que vindo a final a ser confrontada com relatório único a englobar todo o período de cinco anos não tem capacidade financeira para liquidar tais obrigações de dimensão pecuniária considerável e num quadro de crises económica e pandémica/sanitária».

Como se disse, constitui requisito do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente.

Tal requisito não se pode dar como verificado nos presentes autos no que respeita às normas enunciadas nos pontos i. e ii. Para concluir que a recorrente violou grosseiramente os deveres que sobre si impendiam no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, designadamente de entrega pontual do rendimento mensal que excedesse o valor fixado judicialmente, o Tribunal da Relação não interpretou o artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, no sentido de que o fiduciário estivesse «desobrigado da elaboração de relatórios e interpelações anuais, podendo unicamente apresentar um relatório único a englobar todo o período em causa, e sem que ao Tribunal, ao Ministério Público e aos credores caiba qualquer dever de vigilância ou controlo do cumprimento de tal dever» ou que o fiduciário apenas estivesse adstrito a afectar os montantes recebidos «no final do prazo de cinco anos em que dure a cessão». Ao invés, o Tribunal a quo explicitou que o fiduciário violou o dever que sobre si impendia, nos termos do artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, ao omitir a elaboração de relatórios anuais, o que é suscetível de o fazer incorrer em responsabilidade nos termos do artigo 59.º, n.º 1, do mesmo diploma. E, no que concerne à data da entrega dos valores recebidos do insolvente, o Tribunal a quo nada teve de decidir, uma vez que a ora recorrente não procedeu à entrega de qualquer valor, pelo que a questão não se chegou a colocar. Contudo, não obstante ter verificado estes incumprimentos por parte do fiduciário, o que o Tribunal a quo entendeu foi que eles não exoneravam a ora recorrente dos seus deveres decorrentes do incidente de exoneração do passivo restante, os quais lhe haviam sido oportunamente comunicados e eram independentes de tais violações, até porque começaram a ocorrer em momento anterior àquele em que o fiduciário deveria ter produzido o primeiro relatório.

Em face do exposto, é de concluir que as duas normas em causas não foram aplicadas na decisão recorrida, como rationes decidendi, o que obsta a que possam ser apreciadas, pelo que, quanto a esta parte, não se pode conhecer do objeto do recurso.

6. Vejamos agora a norma descrita em iii.

Também neste caso se não pode tomar conhecimento do objecto do recurso, por o mesmo carecer de natureza normativa. Com efeito, segundo o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º, da Constituição, e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, «identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso» (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98).

Em primeiro lugar, importa notar que só pode ter-se por interpretação de um preceito uma proposição que tenha com a letra daquele um mínimo de correspondência. A não ser assim, o conceito de «interpretação normativa» perderia a sua razão de ser, pois a norma sindicada deixaria de traduzir um dos sentidos possíveis da lei (v. os Acórdãos 367/94 e 107/99). Ora, no caso vertente, não é possível extrair a norma sindicada somente do preceito referido pela recorrente – o artigo 244.º, n.º 2, do CIRE –, uma vez que este se limita a equiparar os fundamentos para a recusa da exoneração do passivo restante, findo o período de cessão, àqueles que poderiam ter fundamentado a recusa liminar do pedido – fundamentos estes que constam do artigo 243.º. Dado que a questão de constitucionalidade incide precisamente sobre o conteúdo dos fundamentos de recusa, importa concluir que a norma objeto do presente recurso não é extraível somente do artigo 244.º, n.º 2, do CIRE, e que, ao não incluir o segmento ou segmentos relevantes do artigo 243.º do CIRE no bloco legal a que reporta a norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, a recorrente afastou-se irremediavelmente da norma efetivamente aplicada pelo Tribunal recorrido.

Em segundo lugar, o objeto do recurso, tal como a recorrente o enunciou, mostra que não se trata da eventual inconstitucionalidade de uma norma, mas sim da própria decisão judicial. Com efeito, a recorrente integra no objeto do recurso vários elementos do caso concreto, como seja a sua incapacidade financeira para, neste fase, entregar aos credores a totalidade dos valores auferidos ao longo do período de cessão e tidos por excedentes por referência ao fixado na decisão inicial do incidente; a dimensão «considerável» dos montantes pecuniários em causa; e as contingências do «quadro de crises económica e pandémica/sanitária». Esta forma de colocar a questão demonstra que a recorrente pretende sindicar a decisão judicial, imputando-lhe – e não a uma norma legal pela mesma aplicada – a violação dos parâmetros constitucionais identificados.

Em face de todo o exposto, justifica-se a prolação da presente decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.»

3. De tal decisão vem agora a recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, invocando as seguintes razões:

«A., insolvente/recorrente nos autos supra referenciados e nos mesmos melhor identificada, tendo sido notificada de douta decisão sumária proferida, com o n.° 371/2022, no sentido de não tomada de conhecimento do recurso interposto, vem, nos termos e para os efeitos do n.° 3 do art.º 78.°-A da Lei do Tribunal Constitucional (doravante LTC brevitatis causa), apresentar

RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA

nos termos e com os seguintes

FUNDAMENTOS:

I) Considerações gerais

Mediante douta decisão sumária, proferida pelo Ex.mo Juiz Conselheiro relator, foi decidido não se tomar conhecimento do objeto do recurso apresentado pela alegada ausência de reflexo de dois enunciados sindicados na ratio decidendi da decisão recorrida e pelo facto de, relativamente à outra dimensão normativa, se tratar de eventual inconstitucionalidade da...

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